Artur Queiroz*, Luanda
O político Viriato da Cruz matou o poeta. Carlos Eduardo (Ervedosa) e Costa Andrade (Nunduma) esforçaram-se por dar a conhecer o genial autor de Makezu e Namoro na Colecção Autores Ultramarinos, da Casa dos Estudantes do Império. O primeiro número, “Amor”, é de Mário António, o número dois, “A Cidade e a Infância”, de Luandino Vieira, número três, “Fuga”, de Arnaldo Santos e o quatro, “Poemas”, de Viriato da Cruz. Eis os títulos das peças publicadas: Makezu, Sô Santo, Namoro, Serão de Menino, Rimance da Menina da Roça e Mamã Negra. A capa é de Luandino Vieira.
Os poemas publicados pela editora da Casa dos Estudantes do Império foram escritos entre 1947 e 1950. Viriato da Cruz pouco mais escreveu que fosse publicável. A política matou o poeta. Dois dos seus poemas valem por toda a Literatura Angolana. O maoismo matou o político que violou gravemente o Manifesto do MPLA. Em vez de somar subtraiu, dividiu, fracturou e traiu.
As regras do “amplo movimento” eram muito claras. Trair, desertar e denunciar companheiros de luta era punido com a pena capital. O político Viriato da Cruz traiu e desertou. Os mais críticos dizem que também revelou aos esbirros da FNLA os planos de reforço da I Região Política e Militar do MPLA.
A sua “grande obra” política foi a redacção do Manifesto do MPLA, datado de 10 de Dezembro de 1956. Existe um original manuscrito e a letra é de Viriato da Cruz. Mas a cabeça é também do presidente do MPLA, Mário Pinto de Andrade, e de Lúcio Lara, na época considerado o ideólogo do movimento. Os elogios ao “político excepcional” causam alguma perplexidade. Não tanta como ver a Universidade Católica de Angola homenagear um comunista de faca na boca que erguia o punho e gritava: Viva Marx! Viva Lenine! Viva Mao Tse Tung!
O manifesto manuscrito tem 17 páginas. O texto é inspirado no Manifesto Comunista. A doutrina é bebida na Primavera dos Povos que floriu em 1848. Marx e Engels são os ideólogos do comunismo. Os da Revolução Angolana são Mário, Lúcio e Viriato. Lenine fez a sua leitura do manifesto. Mao Tse Tung igualmente. Viriato da Cruz alinhou com o último analista. Tornou-se maoista, esqueceu a essência do Manifesto do MPLA e rompeu com os seus camaradas. Uma consequência da querela sino-soviética.
O Manifesto do MPLA preconiza uma “frente mundial contra o imperialismo”. Concretizando: “Nenhum africano pode ficar indiferente perante a luta contra o imperialismo que se trave em qualquer parte do nosso continente por uma África para os africanos”. Mário Pinto de Andrade cumpriu à letra. Foi ministro da Cultura do Governo da Guiné Bissau.
Sobre o colonialismo português o Manifesto do MPLA denuncia um crime hediondo: “Tem em vista liquidar a população indígena e fazer de Angola uma terra de brancos”. E assim é preciso lutar com todas as armas porque “o caminho que nos obrigam a seguir é absolutamente contrário aos legítimos interesses do povo angolano, aos da nossa vivência, da nossa liberdade, aos supremos interesses do povo angolano: aos da nossa sobrevivência da nossa liberdade, do rápido e livre progresso económico, da nossa felicidade”.Esta realidade exigiu que fosse proclamada “a luta em todas as frentes e em todas as condições do povo angolano para o aniquilamento do imperialismo e do colonialismo português, para tornar Angola um Estado independente, para a instauração de um governo angolano democrático e popular.”
Luta revolucionária e clandestina contra o inimigo ocupante: “O colonialismo português não cairá sem luta. Deste modo, só há um caminho para o povo angolano se libertar: o da luta revolucionária. Esta luta só alcançará a vitória através de uma frente única de todas as forças anti-imperialistas de Angola sem ligar às cores políticas, à situação social dos indivíduos, as crenças religiosas, tendências filosóficas dos indivíduos, através das actividades de milhares e milhares de organizações (de três, dezenas ou centenas de combatentes cada uma) que se criarem em toda a Angola”.
Objectivo anunciado no Manifesto do MPLA: “O essencial, em toda a nossa luta, é isolar o inimigo, tornar o mais pequena possível a sua base de apoio, estreitar a sua basse de acção, reduzir as suas possibilidades, deixar o inimigo só, fraco e sem aliados. Com esta táctica a nossa vitória será mais fácil (…) É indispensável lutar para organizar e organizar para lutar”.
Com os traidores, que fazer? O manifesto responde: “Existem traidores dos sagrados interesses. É absolutamente indispensável que cada angolano honrado e cada organização se defendam desses vis traidores a quem um dia o nosso povo fará justiça. É absolutamente indispensável criar uma indestrutível barreira de segredo e de vigilância entre todas as organizações patrióticas (…) Povo Angolano! Luta pela tua sagrada liberdade! Pela sobrevivência da raça negra que os colonialistas querem assassinar (…) Homens, mulheres e jovens de Angola! Lutem pela vossa liberdade! Por um futuro livre!
Leiam o Manifesto Comunista. Leiam o manifesto dos comunistas brasileiros. Rapidamente concluem que o Manifesto do MPLA não foi redigido por nenhum génio da política. É um documento igual a todos os outros da época, que se inspiraram nas teses marxistas e leninistas mas ainda não maoistas. A querela sino-soviética rebentou no final dos anos 50 e estava no auge em 1962, Viriato da Cruz aderiu aio maoismo contra tudo e contra todos, violando e traindo o Manifesto do MPLA que dizia expressamente: “A luta só alcançará a vitória através de uma frente única de todas as forças anti-imperialistas de Angola sem ligar às cores políticas”.
Agostinho Neto foi eleito Presidente de Honra do MPLA em 1960 quando um movimento internacional de políticos, artistas e intelectuais lutava pela sua libertação das prisões dos colonialistas. Em 1962 estava em prisão domiciliária, na capital portuguesa. Conseguiu evadir-se com a família. Foi recebido em Rabat pelo Presidente do movimento, Mário Pinto de Andrade. O seu camarada pediu-lhe para assumir a presidência efectiva do movimento. A querela sino-soviética estava a causar estragos no comité director.
Neto aceitou mas com uma condição, a realização de eleições entre candidatos que se apresentassem. Assim foi. Numa concorrida conferência de quadros do MPLA, em Kinshasa, foi anunciada a abertura de candidaturas. Mário Pinto de Andrade revelou ser o primeiro apoiante de Agostinho Neto. Viriato das Cruz também apresentou a sua candidatura. O resultado foi esmagador. Ao lado do maoista do movimento só ficou Matias Miguéis. O reverendo Domingos da Silva pediu a unidade de todos à volta do novo presidente. Viriato saiu para a FNLA mas não aqueceu lugar. Partiu de Kinshasa rumo a Paris e dali para Pequim.
O que defendia Viriato da Cruz para o MPLA? Os mestiços e brancos não podiam ser combatentes da primeira linha, apenas auxiliares. Mais uma machadada no Manifesto do MPLA. Defendia que a unidade das forças revolucionárias passava pela entrada do MPLA na FNLA. Depois os seus quadros tomavam o poder por dentro e dirigiam a luta até à vitória final. Mais um golpe no Manifesto do MPLA.
O engenheiro Sócrates Dáskalos, antigo reitor do Liceu de Benguela, partiu para o exílio. Era dirigente da FUA, organização política que se propunha defender os interesses da tribo dos mestiços e brancos numa Angola Independente governada por uma maioria negra. Quando foi extinta, aderiu ao MPLA. Estava exilado na República Popular das China (era professor) quando chegou Viriato da Cruz.
Dáskalos nas suas memórias (leiam urgentemente) conta que Viriato da Cruz desenvolvia uma luta tenaz contra o MPLA junto do Governo de Pequim do qual era conselheiro para os assuntos africanos. Exagerou de tal forma que um dia Gentil Viana (Afrique), também exilado naquele país, andou à porrada com Viriato. Foi Dáskalos que os separou. Lutou até à morte contra o MPLA, violando as regras da organização revolucionária. Desertou e traiu. Tantos anos depois a Universidade Católica de Angola organizou uma conferência sobre o político e poeta. E promoveu uma gala luxuosa que deve ter custado a comida de 100 mil famílias angolanas num mês.
Quem pagou? Perguntem à Dona Vera. Quem pagou o fato e a gravata do Bonavena? Luanda paga forte e feio aos traidores dos seus generais. Foi assim que Roma ardeu. Gostava de saber o que estavam lá a fazer dirigentes do MPLA! Ordens superiores do chefe?
Nos dias 22 e 23 de Junho a Faculdade de Letras da Universidade do Porto organiza uma Conferência Internacional sobre o político e poeta Viriato da Cruz. A sua obra política resume-se a viva Marx! Viva Lenine! Viva Mao Tse Tung! Manuscreveu 17 páginas inspiradas no Manifesto Comunista de Marx e Engels. Desertou do MPLA e traiu os companheiros de luta. Como poeta teve a felicidade de ver seis poemas publicados num caderno da Casa dos Estudantes do Império. A conferência encerra com escritores falando do homenageado.
Um deles é Agualusa o tal que alinha as palavras por alturas e sons, mártir da gramática. Outro é o soldado motorista do RI20 e escriturário, Jacques dos Santos. Estes dois vão seguramente falar da arte de bem trair e cavalgar a deserção.
Para ajudar â festa vou dar o meu contributo. Quando andava a investigar o Jornalismo Angolano do Século XIX ao Advento da Imprensa Industrial, na Biblioteca da Câmara Municipal de Luanda, encontrei este poema de Viriato da Cruz que merece pelo menos dez conferências internacionais e a análise cuidada do mártir da gramática e do soldado motorista do RI20:
Sá da Bandeira Pratinho de Porcelana
Retouçando louça nas espaldas da Chela
Sá da Bandeira tem
policromias, fulgências, feitios e transparências
de um pratinho de louça
de Rouen.
Mal ainda o sol aflora no horizonte, já ela –
nas faces da manhã – a frescura do clima
no sangue de luz – uma alegria vermelha e sonora
do vermelho de que se cora a maçã
que a terra óptima produz – já ela
pela voz argentina dos regatos e das levadas
canta a cavatina da fertilidade
que lhe ensina a fonte
da Senhora do Monte!…
Cidade académica! Cidade que marca
nos passinhos da criançada
que a caminho da escola
as ruas jubila
nos passos firmes dos jovens do liceu
o ritmo inicial da marcha em crescendo
do progresso da Huíla! do progresso de Angola!
Em ti, Sá da Bandeira,
maravilho-me do estupendo manifestar dos elementos:
– as chuvas torrenciais, o estrondo do trovão,
a fogagem poética do vento
voando a tua saia azul – do azul do céu…
e pondo ao léu as rendas-nuvens da tua combinação…
amo, Sá da Bandeira,
os cromos miniaturais
da tua paisagem:
– o felpo verde-pompa da capa cinzenta
que assenta na lomba fria dos teus morros, e alfombra
o entre-casario devoluto
dos teus bairros…
o abandono humilde e hirsuto
dos teus eucaliptais…
as devesas… as tuas hortas… os teus pomares…
e o reposteiro simpático de trepadeiras
espreguiçando-se em flores nas tranqueiras
e escondendo a intimidade ciosa dos teus lares…
Adoro a graça mansamente provinciana
e apaixonante
dos grupos de tuas moças
passeando em torno ao Jardim Municipal
à bondade envolvente e amorosa dos teus crepúsculos
e sob o olhar cansado e vigilante
do senhor Câmara Leme…
Amo-te, enfim, na harmonia pictórico-sinfónica
das tuas louçanias
fulgências
sonidos
e transparências
de um…
pratinho de louça
de Rouen…
Viriato da Cruz
*Artur Queiroz - jornalista
Sem comentários:
Enviar um comentário