Martinho Júnior,
Luanda - (ver parte I)
3 – Demorou alguns
anos até se começarem a ouvir na África do Sul pessoas de consciência, capazes
de assumirem posições claras em relação ao “apartheid institucional”, como em
relação ao seu sucedâneo, o “apartheid social” ora em vigor a coberto da
democracia representativa de 1 homem, 1 voto.
É evidente que
esses poucos que em algum tempo de suas vidas foram marxistas, se foram
recentemente apercebendo que, perante os desígnios históricos da lógica do capitalismo,
a necessidade de se enveredar por uma lógica com sentido de vida se está a
tornar numa corrida contra o tempo, em função do beco sem saída dos percursos
humanos e ambientais que afectam a Mãe Terra sobretudo após a implosão
socialista registada na última década do século passado!
O combatente Ronnie
Kasrils teve a honestidade intelectual e humana de o reconhecer publicamente e
de forma autocrítica, num artigo publicado em vários “sites”, sob o título “África
do Sul, o pacto fáustico do ANC foi à custa dos mais pobres” (publicado em
castelhano)!
Desse artigo faço o
seguinte extracto:
…“Fue un grave
error de mi parte concentrarme en mis propias responsabilidades y dejar los
problemas económicos a los expertos del ANC.
Como Sampie
Terreblanche ha revelado en su crítico libro, Lost in Transformtion, a finales
de 1993 las grandes estrategias de negocios -incubadas en 1991 en la residencia
de Johannesburgo del magnate minero Harry Oppenheimer - fueron cristalizando en
secretas conversaciones nocturnas en el Banco de Desarrollo de Sudáfrica.
En ellas
participaron los principales empresarios de la minería y la energía de
Sudáfrica y líderes de la energía, los jefes de las compañías estadounidenses y
británicas con presencia en Sudáfrica, y los jóvenes economistas del ANC que
habían sido educados en los patrones de las economías occidentales.
Informaban
directamente a Mandela, y fueron marginados o acobardados hasta la sumisión a
golpe de amenaza de las consecuencias nefastas que tendría para Sudáfrica un
gobierno del ANC que acabase aplicando unas políticas económicas que
consideraban desastrosas.
Todos los medios
para erradicar la pobreza, que era la promesa sagrada de Mandela y del ANC a
los más pobres de los pobres, se perdieron en el proceso.
La nacionalización
de las minas y de sectores estratégicos de la economía, tal y como recogía la
Carta de la Libertad, fue olvidada.
El ANC aceptó
responsabilizarse de una vasta deuda heredada del apartheid, que debería haber
sido denunciada.
Se abandonó el
impuesto sobre el patrimonio, y a las empresas nacionales e internacionales,
que se habían enriquecido gracias al apartheid, se les perdonó cualquier
reparación económica.
Se aceptó la
obligación de poner en práctica una política de libre comercio y abolir todas
las formas de protección arancelaria de acuerdo con los fundamentos
neoliberales de libre comercio.
A grandes empresas
se les permitió transferir sus principales activos al extranjero.
La dirección del
ANC-SACP ansiosa por llegar al gobierno (yo mismo no menos que otros) aceptó
fácilmente este pacto con el demonio, condenándose en el proceso. Y heredó una
economía tan ligada a la fórmula global neoliberal y al fundamentalismo de
mercado que tiene muy poco margen de maniobra para aliviar la difícil situación
de nuestro pueblo.
No es de extrañar
que su paciencia se esté acabando, que sus angustiadas protestas aumenten a
medida que lucha contra el deterioro de sus condiciones de vida, porque los que
están en el poder no tienen soluciones.
Los migajas son
recogidas por la nueva élite negra emergente, la corrupción se ha hecho
endémica mientras que los avariciosos y los ambiciosos luchan como perros por
un hueso”…
4 – A luta de
classes na África do Sul está aí, numa altura em que se procuram perdurar, com
recurso até a figuras de líderes históricos como Nelson Mandela, os interesses
de elites que só podem sobreviver enquanto tal com a lógica capitalista que
advém desde os tempos do império britânico em África!
As nossas
preocupações socorrem-se dum exemplo como o do artigo que foi publicado
recentemente no Público, sob o título “Como a estratégia do cobertor fez de Mandela uma
inspiração para o mundo”, da autoria de Joana Gorjão Henriques, de que faço
um extracto:
“Quando estava na
prisão, Mandela percebeu que se tivesse frio não ia adiantar escrever uma carta
ao director a queixar-se; a única pessoa que lhe poderia trazer um cobertor
seria o responsável pela secção da cela onde estava.
Por isso, precisava
de dialogar com os carcereiros.
A história foi
contada pelo próprio Mandela ao jornalista sul-africano Allister Sparks,
ex-director do Rand Daily Mail, e mais tarde correspondente dos jornais The
Washington Post e The Observer.
Mandela começou a
conhecer os carcereiros e soube que eram muito mal pagos, não tinham estudos,
tendiam a ter dificuldades e como era advogado ajudou-os, deu-lhes conselhos de
borla, conta-nos a partir da África do Sul o autor de vários livros, como The
Mind of South Africa (1991) ou Beyond the Miracle: Inside the New South Africa
(2006).
Ganhou a confiança
deles, conseguiu saber por que é que tinham tanto medo dos negros sul-africanos
e porque eram tão violentos.
Percebeu que eles
tinham medo: medo do número de negros, de que a maioria negra tomasse conta do
poder e de que eles, brancos, fossem os primeiros a perder o emprego e a sofrer
— e conhecê-los era conhecer também muitos outros brancos sul-africanos.
Sparks foi nomeado
em 1995 por Nelson Mandela para o conselho da South African Broadcasting
Corporation, tornou-se o director de informação da estação em 1997, e conviveu
com ele de perto.
Usa a história do
cobertor para chegar ao osso do que pensa ter sido o legado de um homem que
teve um papel decisivo no fim de uma segregação racial de 46 anos (de 1948 a
1994 — oficialmente, com as primeiras eleições multiraciais).
A sua contribuição
para a negociação de acordos foi esta capacidade de perceber a psicologia daqueles
contra quem se estava a insurgir e depois encontrar um meio de anular o factor
que estava a bloquear o acordo – o medo.
E repete: A sua
importância no movimento pelos direitos civis é isto, tem que se entender a
psicologia do inimigo, das pessoas que estão a oprimir-nos e perceber: porque
estão a oprimir-nos?
Porque tendem a
tornar-se violentos?
A estratégia do
cobertor, chamemos-lhe assim, serviu-lhe então depois nos tempos de liberdade.
Desenvolvendo a
capacidade de se colocar no lugar dos outros e de empatizar com eles, fez
gestos simples, segundo Sparks, cheios de simbolismo.
Nisso tornou-se
muito habilidoso.
Por exemplo,
decidiu ir tomar chá com Betsie Schoombie, a viúva de um dos homens por detrás
da ideologia do apartheid, Hendrik Verwoerd, primeiro-ministro entre 1958 e
1966.
Visitou-a, e tornou
o facto público, sublinhado que não temia perdoá-los em nome do sucesso da paz,
mesmo depois dos 27 anos passados na prisão, de onde não saiu com rancor ou
amargura em 1990.
Outro exemplo da
estratégia do cobertor: Chamou todos os generais da minoria branca e
disse-lhes: Eu nunca poderei derrubar-vos, mas vocês nunca nos conseguirão
matar a todos.
É melhor
entendermo-nos: eu mantenho-vos nos vossos postos mas é preciso ter generais
negros também."
Quer dizer: foi
sempre possível a Nelson Mandela utilizar a “estratégia do cobertor” quando
dialogava com entidades e instituições determinantes ou formatadas pelo
fascismo e pelo racismo institucional, na extrema-direita do leque
sócio-político possível na África do Sul, pelo que é pertinente colocar a
seguinte questão:
Alguma vez, desde a
sua prisão, utilizou a “estratégia do cobertor” em relação à esmagadora maioria
dos sul-africanos que viveram a repressão do “apartheid” (que também implicava
medo), vivem na pobreza e manipulados por aqueles que sustentam a lógica
capitalista tornada neo liberal ao sabor do poderoso “lobby” dos minerais!?
Se não o fez, ou se
o fez no silêncio, qual a razão, tendo em especial atenção a muito legítima
autocrítica de Ronnie Kasrils?
Acaso na sociedade
sul-africana não havia instituições, como por exemplo o sindicato COSATU, que
exprimiam a situação e as conjunturas do trabalho, bem como as múltiplas
implicações nos relacionamentos sócio-políticos?
Nelson Mandela
parece nunca ter sido marxista, poderão alguns dizer, mas outros começarão a
proferir sintomaticamente que o herói da juventude, não era já a mesma pessoa
que saiu da prisão na altura em que a África do Sul, sob a pressão
internacional, “conseguiu” pôr um fim ao “apartheid” precisamente quando
implodia o “socialismo real”!
A “terceira via”
optou por políticas de dois pesos e duas medidas, evidenciando o medo de uns e
esquecendo-se o medo de outros!
De facto a contínua
obsessão pelo arco-íris é em si a maior das manipulações: aquela que interessa
às elites dominantes para fazer esquecer a situação de luta de classes, algo de
que Nelson Mandela tendeu a distanciar-se cada vez mais depois de sair da
prisão!
Para além de nossas
efémeras vidas de cidadãos do mundo, persiste a pergunta: “que eternidade para
Nelson Mandela?”
Reprodução: Editorial
publicado na página 2 do número 371 do ACTUAL, dada à estampa a 15 de Novembro
de 2003.
A consultar:
- Sudáfrica, el
pacto fáustico del ANC fue a costa de los más pobres – http://www.sinpermiso.info/textos/index.php?id=6114;
http://gara.naiz.info/paperezkoa/20130706/411802/es/Sudafrica-pacto-faustico-ANC-fue-costa-mas-pobres
- Como a estratégia do cobertor fez de Mandela uma
inspiração para o mundo – http://www.publico.pt/mundo/noticia/como-a-estrategia-do-cobertor-fez-de-mandela-uma-inspiracao-para-o-mundo-1615253
- Os caminhos
inesperados de Nelson Mandela – http://outraspalavras.net/capa/os-caminhos-inesperados-de-nelson-mandela/
- Sinais
controversos – II – http://paginaglobal.blogspot.com/2012/10/sinais-controversos-ii.html
- Memória da
escravatura e da sua abolição – http://paginaglobal.blogspot.com/p/memoria-da-escravatura-e-da-sua-abolicao.html
- 25 anos depois! –
http://paginaglobal.blogspot.com/p/25-anos-depois.html
- A ambiguidade
feita cultura política – http://paginaglobal.blogspot.com/2013/11/a-ambiguidade-feita-cultura-politica.html
- Silenciosas
cumplicidades –http://paginaglobal.blogspot.com/2013/11/silenciosas-cumplicidades.html
- Do apartheid
institucional ao apartheid social – http://paginaglobal.blogspot.com/2013/07/do-apartheid-institucional-ao-apartheid.html
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