segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

QUE ETERNIDADE PARA MANDELA? – II

 

Martinho Júnior, Luanda - (ver parte I)
 
3 – Demorou alguns anos até se começarem a ouvir na África do Sul pessoas de consciência, capazes de assumirem posições claras em relação ao “apartheid institucional”, como em relação ao seu sucedâneo, o “apartheid social” ora em vigor a coberto da democracia representativa de 1 homem, 1 voto.
 
É evidente que esses poucos que em algum tempo de suas vidas foram marxistas, se foram recentemente apercebendo que, perante os desígnios históricos da lógica do capitalismo, a necessidade de se enveredar por uma lógica com sentido de vida se está a tornar numa corrida contra o tempo, em função do beco sem saída dos percursos humanos e ambientais que afectam a Mãe Terra sobretudo após a implosão socialista registada na última década do século passado!
 
O combatente Ronnie Kasrils teve a honestidade intelectual e humana de o reconhecer publicamente e de forma autocrítica, num artigo publicado em vários “sites”, sob o título “África do Sul, o pacto fáustico do ANC foi à custa dos mais pobres” (publicado em castelhano)!
 
Desse artigo faço o seguinte extracto:
 
…“Fue un grave error de mi parte concentrarme en mis propias responsabilidades y dejar los problemas económicos a los expertos del ANC.
 
Como Sampie Terreblanche ha revelado en su crítico libro, Lost in Transformtion, a finales de 1993 las grandes estrategias de negocios -incubadas en 1991 en la residencia de Johannesburgo del magnate minero Harry Oppenheimer - fueron cristalizando en secretas conversaciones nocturnas en el Banco de Desarrollo de Sudáfrica.
 
En ellas participaron los principales empresarios de la minería y la energía de Sudáfrica y líderes de la energía, los jefes de las compañías estadounidenses y británicas con presencia en Sudáfrica, y los jóvenes economistas del ANC que habían sido educados en los patrones de las economías occidentales.
 
Informaban directamente a Mandela, y fueron marginados o acobardados hasta la sumisión a golpe de amenaza de las consecuencias nefastas que tendría para Sudáfrica un gobierno del ANC que acabase aplicando unas políticas económicas que consideraban desastrosas.
 
Todos los medios para erradicar la pobreza, que era la promesa sagrada de Mandela y del ANC a los más pobres de los pobres, se perdieron en el proceso.
 
La nacionalización de las minas y de sectores estratégicos de la economía, tal y como recogía la Carta de la Libertad, fue olvidada.
 
El ANC aceptó responsabilizarse de una vasta deuda heredada del apartheid, que debería haber sido denunciada.
 
Se abandonó el impuesto sobre el patrimonio, y a las empresas nacionales e internacionales, que se habían enriquecido gracias al apartheid, se les perdonó cualquier reparación económica.
 
Se aceptó la obligación de poner en práctica una política de libre comercio y abolir todas las formas de protección arancelaria de acuerdo con los fundamentos neoliberales de libre comercio.
 
A grandes empresas se les permitió transferir sus principales activos al extranjero.
 
La dirección del ANC-SACP ansiosa por llegar al gobierno (yo mismo no menos que otros) aceptó fácilmente este pacto con el demonio, condenándose en el proceso. Y heredó una economía tan ligada a la fórmula global neoliberal y al fundamentalismo de mercado que tiene muy poco margen de maniobra para aliviar la difícil situación de nuestro pueblo.
 
No es de extrañar que su paciencia se esté acabando, que sus angustiadas protestas aumenten a medida que lucha contra el deterioro de sus condiciones de vida, porque los que están en el poder no tienen soluciones.
 
Los migajas son recogidas por la nueva élite negra emergente, la corrupción se ha hecho endémica mientras que los avariciosos y los ambiciosos luchan como perros por un hueso”…
 
4 – A luta de classes na África do Sul está aí, numa altura em que se procuram perdurar, com recurso até a figuras de líderes históricos como Nelson Mandela, os interesses de elites que só podem sobreviver enquanto tal com a lógica capitalista que advém desde os tempos do império britânico em África!
 
As nossas preocupações socorrem-se dum exemplo como o do artigo que foi publicado recentemente no Público, sob o títuloComo a estratégia do cobertor fez de Mandela uma inspiração para o mundo”, da autoria de Joana Gorjão Henriques, de que faço um extracto:
 
“Quando estava na prisão, Mandela percebeu que se tivesse frio não ia adiantar escrever uma carta ao director a queixar-se; a única pessoa que lhe poderia trazer um cobertor seria o responsável pela secção da cela onde estava.
 
Por isso, precisava de dialogar com os carcereiros.
 
A história foi contada pelo próprio Mandela ao jornalista sul-africano Allister Sparks, ex-director do Rand Daily Mail, e mais tarde correspondente dos jornais The Washington Post e The Observer.
 
Mandela começou a conhecer os carcereiros e soube que eram muito mal pagos, não tinham estudos, tendiam a ter dificuldades e como era advogado ajudou-os, deu-lhes conselhos de borla, conta-nos a partir da África do Sul o autor de vários livros, como The Mind of South Africa (1991) ou Beyond the Miracle: Inside the New South Africa (2006).
 
Ganhou a confiança deles, conseguiu saber por que é que tinham tanto medo dos negros sul-africanos e porque eram tão violentos.
 
Percebeu que eles tinham medo: medo do número de negros, de que a maioria negra tomasse conta do poder e de que eles, brancos, fossem os primeiros a perder o emprego e a sofrer — e conhecê-los era conhecer também muitos outros brancos sul-africanos.
 
Sparks foi nomeado em 1995 por Nelson Mandela para o conselho da South African Broadcasting Corporation, tornou-se o director de informação da estação em 1997, e conviveu com ele de perto.
 
Usa a história do cobertor para chegar ao osso do que pensa ter sido o legado de um homem que teve um papel decisivo no fim de uma segregação racial de 46 anos (de 1948 a 1994 — oficialmente, com as primeiras eleições multiraciais).
 
A sua contribuição para a negociação de acordos foi esta capacidade de perceber a psicologia daqueles contra quem se estava a insurgir e depois encontrar um meio de anular o factor que estava a bloquear o acordo – o medo.
 
E repete: A sua importância no movimento pelos direitos civis é isto, tem que se entender a psicologia do inimigo, das pessoas que estão a oprimir-nos e perceber: porque estão a oprimir-nos?
 
Porque tendem a tornar-se violentos?
 
A estratégia do cobertor, chamemos-lhe assim, serviu-lhe então depois nos tempos de liberdade.
 
Desenvolvendo a capacidade de se colocar no lugar dos outros e de empatizar com eles, fez gestos simples, segundo Sparks, cheios de simbolismo.
 
Nisso tornou-se muito habilidoso.
 
Por exemplo, decidiu ir tomar chá com Betsie Schoombie, a viúva de um dos homens por detrás da ideologia do apartheid, Hendrik Verwoerd, primeiro-ministro entre 1958 e 1966.
 
Visitou-a, e tornou o facto público, sublinhado que não temia perdoá-los em nome do sucesso da paz, mesmo depois dos 27 anos passados na prisão, de onde não saiu com rancor ou amargura em 1990.
 
Outro exemplo da estratégia do cobertor: Chamou todos os generais da minoria branca e disse-lhes: Eu nunca poderei derrubar-vos, mas vocês nunca nos conseguirão matar a todos.
 
É melhor entendermo-nos: eu mantenho-vos nos vossos postos mas é preciso ter generais negros também."
 
Quer dizer: foi sempre possível a Nelson Mandela utilizar a “estratégia do cobertor” quando dialogava com entidades e instituições determinantes ou formatadas pelo fascismo e pelo racismo institucional, na extrema-direita do leque sócio-político possível na África do Sul, pelo que é pertinente colocar a seguinte questão:
 
Alguma vez, desde a sua prisão, utilizou a “estratégia do cobertor” em relação à esmagadora maioria dos sul-africanos que viveram a repressão do “apartheid” (que também implicava medo), vivem na pobreza e manipulados por aqueles que sustentam a lógica capitalista tornada neo liberal ao sabor do poderoso “lobby” dos minerais!?
 
Se não o fez, ou se o fez no silêncio, qual a razão, tendo em especial atenção a muito legítima autocrítica de Ronnie Kasrils?
 
Acaso na sociedade sul-africana não havia instituições, como por exemplo o sindicato COSATU, que exprimiam a situação e as conjunturas do trabalho, bem como as múltiplas implicações nos relacionamentos sócio-políticos?
 
Nelson Mandela parece nunca ter sido marxista, poderão alguns dizer, mas outros começarão a proferir sintomaticamente que o herói da juventude, não era já a mesma pessoa que saiu da prisão na altura em que a África do Sul, sob a pressão internacional, “conseguiu” pôr um fim ao “apartheid” precisamente quando implodia o “socialismo real”!
 
A “terceira via” optou por políticas de dois pesos e duas medidas, evidenciando o medo de uns e esquecendo-se o medo de outros!
 
De facto a contínua obsessão pelo arco-íris é em si a maior das manipulações: aquela que interessa às elites dominantes para fazer esquecer a situação de luta de classes, algo de que Nelson Mandela tendeu a distanciar-se cada vez mais depois de sair da prisão!
 
Para além de nossas efémeras vidas de cidadãos do mundo, persiste a pergunta: “que eternidade para Nelson Mandela?”
 
Reprodução: Editorial publicado na página 2 do número 371 do ACTUAL, dada à estampa a 15 de Novembro de 2003.
 
A consultar:
- Os caminhos inesperados de Nelson Mandela – http://outraspalavras.net/capa/os-caminhos-inesperados-de-nelson-mandela/
 

Sem comentários:

Mais lidas da semana