sábado, 25 de maio de 2019

UMA LUTA SOBRE BRASAS IV - Martinho Júnior


HOJE JÁ É TARDE DEMAIS

 Martinho Júnior, Luanda

EM SAUDAÇÃO AO 25 DE MAIO, DIA DE ÁFRICA, QUANDO HÁ 56 ANOS, EM GRANDE PARTE EM FUNÇÃO DA LUTA DE LIBERTAÇÃO, SE CRIOU A ENTÃO “OUA”, ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE AFRICANA (https://www.officeholidays.com/countries/africa/african_unity_day.php)!

No Cunene, de há pouco mais de 100 anos a esta parte, estão-se jogando algumas das sagas mais decisivas do povo angolano e da África Austral.

Durante todo o século XX o povo angolano ficou impotente face à necessidade de, em função das características físico-geográficas-ambientais do território nacional, implementar uma geoestratégia de desenvolvimento sustentável que correspondesse a uma lógica com sentido de vida.

Esse desafio vital foi sendo adiado e ganhar a consciência da necessidade dum outro esforço tem estado até hoje revertida ao fracasso, em grande parte por causa da mentalidade padrão induzida pelo próprio colonialismo.

Apesar da intensidade das lutas, os angolanos ainda não acordaram para os parâmetros necessários com vista a, com base na lógica com sentido de vida que dá sequência ao esforço do movimento de libertação, encetar uma geoestratégia para um desenvolvimento sustentável capaz de reverter para uma cultura cientificada e uma prática de inteligência patriótica!




Se pesou a contrariedade da aliança entre colonialismo e “apartheid” que resultou em imensas sequelas, pesa também a mentalidade inculcada que advém duma longa colonização realizada a partir do mar, que moldou os processos dos investimentos infraestruturais e estruturais do novo país, que moldou a mentalidade e os expedientes correntes de assimilação de que algumas elites são protagonistas…

O triângulo de ocupação do espaço angolano, o triângulo ocidental, resulta do fomento do colonialismo após o fim do expansionismo vencedor das últimas resistências, no período de 1926 até 1975… os outros três triângulos (norte, leste e sul) são triângulos de intervenção, de malha político-administrativa pouco densa a sul e a leste!

Nesse período o Estado Novo, antes de mais representativo da oligarquia agrária portuguesa, reflectiu em Angola seu próprio carácter, incrementando a agricultura virada para a exportação (café, oleaginosas, algodão, sisal, frutas… ), enquanto no litoral motivou-se com o escândalo da pesca que aproveitava os fenómenos únicos comportados pela corrente fria de Benguela.

Foi o eclodir da luta armada em 1961 que obrigou a um outro ciclo de respostas do colonialismo português, que mesmo assim só abria mão aos assimilados da ocasião, parte deles motivados pelas contradições do próprio colonialismo e pouco a pouco mobilizados em prol da luta de libertação nacional pela independência.

Face aos desafios, o próprio Estado Novo viu-se obrigado a fomentar uma burguesia industrial, que correspondeu ao fim do poder de Oliveira Salazar e começo do poder de Marcelo Caetano…

Em Angola, o indigenato (sobre)vivia num país humanamente rarefeito (em 1910 durante o período último da resistência à expansão colonial a população decresceu até cerca de 2.900.000 habitantes), vítima da repressão e sujeito a todo o tipo de injustiças sociais, que se espelhavam nos sistemas básicos do trabalho, da saúde, da educação, da habitação… em todo o ciclo de vida.

O povo angolano não era nem sábio, nem feliz!


Tudo isso em rescaldo, objectiva e subjectivamente impede hoje que finalmente se adoptem as medidas de controlo e gestão sobre a região central das grandes nascentes a fim de garantir vida a muito longo prazo para as gerações presentes e futuras e promover uma geoestratégia de desenvolvimento sustentável capaz de vencer os desafios próprios dos impactos de aquecimento global em toda a África Austral e Central.

Isso reflete-se também como é evidente no agravamento da seca com a expansão dos desertos do Namibe e do Kalahári para norte, ou seja em plena área da criação de gado seminómada, pois tardam as contramedidas quando o aquecimento global é já uma preocupação prioritária!

Hoje já é tarde demais, por que o possível esforço de luta contemporânea, o esforço angolano de hoje, só pôde ser realizado depois de vencido o colonialismo, depois de vencido o “apartheid”, depois de vencidas algumas de suas sequelas e ganhando consciência crítica e de vanguarda face ao capitalismo neoliberal que tem sido inculcado em África formatando mentalidades nas elites servis, quando tudo se deveria ter iniciado em tempo oportuno precisamente há pouco mais de 100 anos!

Também por esta razão tenho considerado que Angola tem apenas (sobre)vivido (?) em “séculos de solidão”!


07- Acabado de vencer militarmente as resistências ao seu expansionismo na segunda década do século XX, entre 1926 e 1961, o Estado Novo, em reflexo de sua representatividade em relação à oligarquia agrária portuguesa, incrementou em Angola a agricultura vocacionada para a exportação de produtos tropicais (café, oleaginosas, algodão, sisal, frutas…), enquanto no litoral motivou-se com o “escândalo” da pesca que aproveitava os fenómenos únicos comportados pela corrente fria de Benguela (http://jornaldeangola.sapo.ao/opiniao/artigos/a_luta_de_resistencia_popular_a_ocupacao_de_africa).

Devido às suas debilidades (Portugal era de facto também subdesenvolvido) o colonialismo deixou para as transnacionais a exploração mineral (embora com sua participação) e uma parte da construção de infraestruturas.

Mesmo assim jamais conseguiram debelar por completo a tomada de consciência dos angolanos (https://www.fnac.pt/Livros-Brancos-Almas-Negras-Miguel-Bandeira-Jeronimo/a1304170) não só da situação colonial (http://jornaldeangola.sapo.ao/opiniao/artigos/do_sentimento_nativista_ao_protonacionalismo), mas da necessidade de luta de libertação nacional (https://opais.co.ao/index.php/2018/02/04/portugal-nunca-quis-dar-a-independencia-ao-povo-angolano/).

Eram as próprias contradições características do processo colonial, que forneciam o húmus do antagonismo, compelindo para a luta armada pela independência.

No sul, as comunidades angolanas que possuíam culturas seminómadas agarradas à criação de gado e aos ciclos obrigatórios da transumância (em toda a actual Província do Cunene e franjas na Huila, no Namibe e no Cuando Cubango), havendo imensas dificuldades na sua assimilação, foram sendo deixados entregues às suas culturas de resistência, pouco se importando o colonialismo com as soluções nevrálgicas no que diz respeito à água interior em seu benefício, ou do seu gado; o colonialismo demonstrou-se incapaz de impactar no seu espaço vital.

Esse “entendimento tácito” revelador das imensas lacunas e falências de capacidade colonial, levava a que mucubais, humbes, cuamatos e cuanhamas, tidos como detentores de culturas para o efeito não aptas, não fornecessem “contratados” (https://journals.openedition.org/cea/2206) para as fazendas do norte do país e a mão-de-obra barata sucedânea dos processos de escravatura.

O recrutamento dessa mão-de-obra quase escrava (http://jornaldeangola.sapo.ao/cultura/patrimonio/a_longa_noite_de_um_povo_agrilhoado) foi essencialmente “trabalhado” na área de sedentarização e na parte mais ocidental da região central das grandes nascentes (sobretudo nos planaltos do Huambo e do Bailundo).

A intensidade do esforço de ocupação nessas áreas de expansão colonial, motivaram a proliferação de missões católicas e protestantes (https://www.livrariafernandosantos.com/produto/atlas-missionario-portugues-2/), em jeito de íntima competição, acabando por influenciar na modelagem duma formatação humana que deu origem à intensa sequela etno-nacionalista de que se rodeou Savimbi e dele próprio (conforme se pode constatar pela sua própria trajectória humana desde o berço familiar).

As comunidades seminómadas do sul não aderiram a essa sequela gerada pelo colonialismo português entre 1961 e 1975 pois o seu ambiente sociopolítico e tradições destacavam-se dela, à medida que os contraditórios se foram acumulando, também por que a norte do Sudoeste Africano as aspirações à independência ocorreram simultaneamente.

As povoações que foram surgindo além do curso do Cunene, nessa região humanamente rarefeita, passaram a ser pequenas localidades comerciais (rede retalhista), uma característica que “afectou” todo o triângulo sul do espaço nacional.


A resistência sociocultural fez com que a administração colonial pouco fizesse para encontrar soluções em relação à rarefação da água a sul do paralelo do Cuvelai, pois tacitamente convinha ao colonialismo o impasse a que se havia chegado.

No cômputo geral, se em 2010 a população total de Angola se reduzia a 2.900.000 habitantes, no início da década de 1960 a população atingia 4.830.449 habitantes (https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-944440772-continuidades-e-descontinuidades-de-um-processo-colonial-_JM)…

Em 1900 a população de Angola era estimada em 4.789.945 habitantes e em 1920 em 4.278.200, ou seja: o esforço da expansão, com os episódios da Iª Guerra Mundial incluídos, resultou em genocídios de que Angola levaria muito tempo a recuperar-se… tal qual aconteceu também e quase simultaneamente no Sudoeste Africano, com o genocídio dos hereros e dos namas, ou no Congo dominado pelo Rei Leopoldo II!...

Os crimes compensam para o colonialismo e para aqueles que ainda hoje, por arrasto, continuam a beneficiar deles! (https://paginaglobal.blogspot.com/2018/09/os-crimes-compensam.html).

08- Em Angola e no Sudoeste Africano a expansão colonial segundo os modelos português e prussiano, tal como os “ofícios” do Rei Leopoldo II no Congo, após a Conferência de Berlim tornaram-se numa cadeia de genocídios contra os povos africanos, que visava o seu enfraquecimento e a sujeição completa a que ficaram remetidos! (https://www.youtube.com/watch?v=S8hAGN4b0tM).


O expansionismo visou a submissão dos povos africanos por via do terror genocida… os fins justificaram os meios, segundo a filosofia atribuída a Maquiavel (https://www.significados.com.br/os-fins-justificam-os-meios/), tão interiorizada pela “civilização judaico-cristã ocidental”…

Século XX afora, foi esse mesmo maquiavelismo que teve continuidade com o colonialismo, o “apartheid” e todas as suas sequelas, de forma a manter o torpor mental dos africanos, para que África continuasse a ser aquele “aquele corpo inerte à mercê dos abutres”! (http://pagina--um.blogspot.com/2010/10/globalizacao-o-camaleao-voraz-que.html)

É claro que obrigados à luta constante pela sobrevivência nas mais terríveis condições, as culturas africanas, incluindo as resistentes, foram incapazes de ganhar consciência no sentido duma geoestratégia de desenvolvimento sustentável, até por que a água interior do continente, passou a ser controlada e gerida pelas potências coloniais a fim de exclusivamente satisfazer seus processos de domínio, implantação e ocupação!

Esse processo de “deseducação” chega aos nossos dias, quando em muitas regiões do país se estão a abater árvores e florestas, ou por perniciosa influência do elitismo do cartel dos diamantes, do ouro e da platina, que domina na África do Sul, no Botswana e até na Namíbia, não se controla, nem se gere os espaços críticos das nascentes de água e, por tabela, a região central das grandes nascentes! (http://paginaglobal.blogspot.pt/2012/08/angola-demografia-identidade-nacional.html).

A origem da mentalidade corrente dos africanos está nesses pressupostos de raiz, que não são só motivações de ordem psicossocial, mas traduzem a visão de desenvolvimento de quem chegando por mar, expandiu seu domínio na direcção do interior por via do genocídio, com aliados provenientes do sul!

O choque e a terapia que a hegemonia unipolar tem vindo a aplicar com o capitalismo neoliberal (conforme ocorre em Angola desde 31 de Maio de 1991, data do Acordo de Bicesse), inspirou-se no choque genocida sucedâneo da Conferência de Berlim, o que o colonialismo desde logo aproveitou para levar a cabo a terapia depois da expansão para o interior em África intimamente associada aos cenários da Iª Guerra Mundial, no caso angolano de 1926 até ao 25 de Abril de 1974!

Com a derrota prussiana na Iª Guerra Mundial, o Sudoeste Africano passou a ser administrado pela África do Sul, no seguimento do expansionismo imperialista motivado pela filosofia e prática elitista de Cecil John Rhodes, a princípio segundo mandato da Sociedade das Nações (instituição que esteve na base da Organização das Nações Unidas).

Sendo o colonialismo português subsidiário ao império britânico, desde os cenários da Iª Guerra Mundial em Angola, Sudoeste Africano, Moçambique e Tanganika, que passou a ser determinante o conceito elitista poderosamente assente no cartel dos diamantes, do ouro e da platina na África do Sul, detentor de capital e de enorme capacidade de investimento no âmbito do poderoso “lóbi” dos minerais nos Estados Unidos (suporte tradicional dos Democratas).

Findas as guerras de ocupação em Angola, no Sudoeste Africano e em Moçambique, o cartel tornou-se imperioso nas políticas de “fomento”, abrangendo interesses luso-belgas e dominando as “Bolsas” de diamantes, como as de Antuérpia, as de Nova York e mais tarde as de Tel Aviv…

Em Angola os seus investimentos no sector dos diamantes (formação da Diamang – https://observador.pt/especiais/diamang-100-anos-da-maior-empresa-imperio-portugues-racismo-abusos-e-trabalhos-forcados/) e em infraestruturas (porto do Lobito e Caminho de Ferro de Benguela), socorreu as depauperadas finanças coloniais portuguesas incapazes de gerarem por si próprias capacidades ao nível da determinante revolução industrial.

A Diamang tornou-se assim “um estado dentro dum estado”, uma “companhia majestática” ela própria organizada segundo os moldes do“apartheid”!

Foram os interesses da aristocracia financeira mundial (clãs Rockefeller e Rothschield) que se assenhorearam do “copperbelt” do Katanga e da Zâmbia e por isso a sua azáfama nos impactos infraestruturais que geraram em Angola como em Moçambique (minas, portos e caminhos de ferro).

Foi um “braço direito” de Cecil John Rhodes que implantou fisicamente o Caminho de Ferro de Benguela, do Lobito ao Luau (https://pt.wikipedia.org/wiki/Caminho_de_Ferro_de_Benguela): Robert Williams (https://pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Williams_de_Park).

Na superestrutura ideológica do colonialismo português, na continuidade da “dilatação da fé e do império”, confundia-se o fascismo-colonialismo do Estado Novo e o cristianismo que respondia à Concordata com o Vaticano, o verdadeiro alfobre ideológico para esta corrente época de capitalismo neoliberal que “repesca” os velhos expedientes de assimilação.

O espaço vital ocupado pelos gambos, pelos humbes, pelos cuamatos, cuanhamas e ovambos, ficou à margem dessas “linhas de penetração”consolidadas ao longo de todo o século XX, “linhas de penetração” aliás que em Angola estavam bem no eixo dos polos de desenvolvimento que foram sendo criados no triângulo ocidental do quadrilátero angolano, o triângulo de ocupação da mais densa malha político-administrativa colonial expressa pelo economista Walter Valdemar Pedro Marques já no tempo do exercício de Marcelo Caetano! (http://memoria-africa.ua.pt/Catalog.aspx?q=AU%20marques,%20walter)

Por outro lado, até o Rei Mandume ya Ndemufayo recebeu influência de protestantes alemães, o que nos dá ideia do quadro periférico a que se destinou o sul, onde escasseavam missões católicas associadas ao colonialismo português e missões de outras origens.

O imperialismo britânico em África, um elitismo consubstanciado sobretudo nos e a partir dos carteis da indústria mineira na África do Sul, passaram a ser os reitores da aproximação recíproca entre o colonialismo português, o belga, o britânico e, mais tarde, na aproximação com o“apartheid” na sequência do seu surgimento na África do Sul! (https://www.estudopratico.com.br/historia-do-apartheid-na-africa-do-sul/)

A “província ultramarina” de Angola era uma figura de estilo, “para inglês ver” e a leste do Cunene, “as terras do fim do mundo”, estimulou-se a manutenção duma tática que enredava angolanos e namibianos nas amarras do domínio colonial estático e alimentando as cordas da submissão e do atraso característico dum “irreversível” subdesenvolvimento.

Martinho Júnior - Luanda, 21 de Maio de 2019

Fotos:
01- Os carros dos boeres, antes da chegada dos primeiros veículos motorizados, foram um meio de transporte incontornável que socorreram os colonialistas portugueses nos percursos da expansão e conquista para sul e sudeste de Angola; esta fotografia foi tirada em Moçâmedes frente ao que é hoje o Hotel Namibe;
02- Cuanhamas no sul de Angola (princípio do século XX);
03- Pescadores dos rios do sul de Angola (princípio do século XX);
04- O rio Caculuvar (afluente da margem direita do rio Cunene) na Cahama, foi durante muitos anos a “fronteira leste” da penetração colonial portuguesa, enquanto não foram vencidos gambos, humbes, cuamatos e cuanhamas; Vencido o Caculuvar, a etapa seguinte na penetração colonial foi vencer o Cunene e por fim vencer o Cubango;
05- “Cinema para indígenas”, do espólio fotográfico da Diamang, ilustrativo do grau de “apartheid” que se viveu no nordeste de Angola, com a “companhia majestática” que ditava as suas próprias leis; imaginem o tipo de filmes que por lá foram passando…

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