segunda-feira, 9 de setembro de 2013

DECISÕES DE PRINCÍPIO

 

Martinho Júnior, Luanda

1 – O que está a acontecer no Brasil em relação às questões da saúde pública, acontecem também, em linhas gerais mas de forma mais esbatida, em Angola, tendo em conta que o histórico dos dois países, no espaço e no tempo, são distintos:

- O Brasil está independente há mais de 200 anos, mas tem sentido não só o peso como também as múltiplas influências de sua oligarquia e classe média urbana no contexto social, sem suficientes alternativas sócio-políticas para além das esquadrias de seu interesse e conveniência, a que se juntaram os impactos neo liberais de acordo com o “modelo” de globalização imposto a partir do exterior pelo contexto imperialista anglo-saxónico; o actual governo tem a oportunidade para alterar a situação, se não quiser perder a sua base de sustentação popular e está a procurar demonstrar vocação para tal, à medida que o processo se vai radicalizando e os desafios se vão sucedendo;

- Angola está independente há quase 38 anos; estão frescas as marcas da luta pela independência, contra o colonialismo, contra o “apartheid” e contra algumas das suas sequelas, que provocaram desgastes enormes nos seus tecidos sociais, nas infra estruturas e estruturas (à excepção das ligadas ao sector do petróleo) que existiam, situação a que se juntaram o mesmo tipo de impactos de proveniência externa, que contam com uma difusa aspiração à formação duma oligarquia, ainda sem tradições, sem árvore genealógica e não consolidada, mas com uma influência em crescendo uma vez que seus interesses estão numa rápida expansão; o facto de praticamente tudo estar por fazer, uma vez que as heranças do passado praticamente não existem em termos de saúde, possibilita que o livro esteja aberto e o campo dos mercenários “do mercado” se reduzir a algumas clínicas nas cidades mais cosmopolitas (Luanda e Benguela-Lobito).

As questões de direito, cidadania e soberania em tensão com os impactos do capitalismo neo liberal “injectado” por via dos “mercados abertos” a partir do poder da hegemonia, merecem para cada caso, Brasil e Angola, uma abordagem que leve em conta as trajectórias históricas, culturais, econbómicas, financeiras, sócio-políticas e psicológicas distintas dos dois países e dos seus parceiros internacionais privilegiados (e neste caso, levando em consideração as questões que se prendem à saúde), estou a referir-me muito em especial a Cuba e a um dos frutos mais pródigos do seu socialismo)...

2 – A tendência para os desequilíbrios no sistema de saúde nos dois países resultam pois, comparativamente, de processos de maturação distintos, todavia têm condicionantes próximas: tal como no Brasil existe a relutância dos médicos angolanos assumirem a ampla geografia do país, todavia eles são não só em muito menor número, como também as densidades relativas de implantação em relação ao total da população, tendo em conta a ocupação do território, são menos expressivas, pelo que Angola durante muitos anos terá de se socorrer de recursos humanos externos em termos de saúde, sem que isso provoque a mesma difusão e “onda de choque” como a que se assiste no Brasil.

Os actores externos com impacto nos dois países são os mesmos e são similares a opções pela “macro economia”…

O peso específico da actividade no sector petrolífero é todavia, no que diz respeito à influência na saúde, muito mais forte em Angola que no Brasil.

Em qualquer dos casos faz sentido o recurso a médicos e outros profissionais da saúde provenientes do exterior, sendo muito importante o que eles podem trazer de benéfico em relação às questões éticas, morais e deontológicas, principalmente no caso dos profissionais cubanos, perante as situações que se colocam como resultado das “sociedades abertas” pelas políticas neo liberais.

Para Angola a presença cubana em termos de saúde está intimamente associada à trajectória do movimento de libertação e isso é extremamente sensível: a luta por um melhor quadro da saúde e da educação é sentida como um resgate que dá continuidade às lutas contra o colonialismo, o “apartheid” e as suas sequelas, o que transmite apesar de tudo uma coerência que no Brasil nunca terá sido sentido: o primeiro Presidente de Angola era médico e o Dr. Américo Boavida é um dos heróis nacionais.

Essa coerência assenta num processo que teve continuidade durante largas décadas e tem sido vivido em condições por vezes extremas, um processo de resistência variável que se vem esbatendo nas duas últimas décadas…

3 – O sistema de saúde em ambos os casos reflecte a contradição entre os impactos das políticas neo liberais e o que é informado pelos conceitos socialistas de amplo espectro, no caso angolano com um histórico com raízes de antes da independência, precisamente desde 1965, quando o MPLA recebeu em Janeiro de 1965 a passagem do Comandante Che Guevara por Brazzaville e garantiu o apoio da 2ª coluna comandada por Jorge Risquet, bem como, desde logo, a presença de médicos internacionalistas, entre eles Rodolfo Puenteferro, um dos forjadores da antropologia cultural comum entre Cuba e África (Angola como uma charneira).

A coerência existente em Angola não está imune contudo aos impactos neo liberais por efeito das características do que se convencionou de “mercado”, tendo em conta o tal peso específico do sector do petróleo e da indústria mineira extractiva.

Sob o ponto de vista geográfico, enquanto os “médicos do mercado” afluem para os serviços dos principais sectores de actividade económica nas áreas urbanas mais cosmopolitas, os médicos e outros profissionais de saúde de opção socialista proliferam mais no sector público e em áreas de periferia urbana e no contexto do espaço nacional.

4 – Em Setembro de 2007, há 4 anos, o Página Um publicou um texto que então produzi, precisamente sobre esse tema, “Uma saúde mercenária em nome do mercado”, que volto a lembrar:

A lógica neo liberal do "mercado", ao "converter" um direito fundamental, o direito à saúde, numa simples "mercadoria", é responsável pelo desastre que está patente particularmente nos enormes subúrbios das grandes cidades, com evidência para Luanda.

Acabar com os centros não qualificados, mas continuar com essa lógica de saúde enquanto "mercadoria" e não saúde enquanto direito fundamental, é contribuir para:

- Continuar a mentir ao povo angolano, pois não haverão transformações de natureza ético-filosófica à medida das prementes necessidades, tendo em conta os terríveis índices de mortalidade existentes.

- Continuar a incrementar o fosso das desigualdades que é uma “vergonha histórica” para os verdadeiros patriotas.

- Iludir os factores essenciais da paz, que precisa sobretudo de muito maior equilíbrio económico e social, de muito mais justiça social (a paz não pode ser estritamente considerada como uma ausência de acções armadas!).

Uma “saúde” mercenária, jamais será a opção correcta para, em consciência, tornar possível gerar mais felicidade e mais vida em benefício do povo angolano!

5 – Esse texto, ao recordá-lo, sublinho que mantém toda a sua actualidade no Brasil, quanto em Angola:

- No Brasil por que pela primeira vez se buscam alternativas que irão contribuir para superar os erros e as insuficiências históricas;

- Em Angola por que está em aberto a oportunidade para não se repetirem as insuficiências e os erros que outros foram levados a cometer em função do capitalismo exacerbado de sua orientação sócio-política e isso apesar das características das principais actividades económicas e financeiras do país.

Em qualquer dos casos será impossível tratar-se da saúde humana e da própria sociedade (quantos traumas sociais e psicológicos existem em Angola por causa da guerra prolongada, do subdesenvolvimento e dos desequilíbrios sociais) com um sistema que esteja dependente dos caprichos típicos dum sistema mercenário: não foi, não é, nem será, com uma saúde com pouca ou nenhuma ética, com uma moral manipulada e deontologicamente anémica, uma saúde anti-nacionalista, com uma saúde doente que procura o lucro e o cortejo de benesses próprias das disponibilidades do consumo “moderno”, que se poderá tratar a preceito o homem em toda a dimensão do espaço nacional, muito em particular nas imensas áreas periféricas e rurais.

Este é pois o tempo de se tomarem as devidas decisões de princípio nos dois lados do Atlântico, na pista aliás das experiências bem sucedidas de outros, como os países componentes da ALBA!

Para Angola além do mais, as políticas neo liberais levadas a cabo pelos governos de Lula e de Dilma, que estão na raiz dos levantamentos populares que se têm assistido nos últimos meses, são um sinal do que poderá um dia eclodir na sociedade angolana caso as receitas macro económicas do FMI persistirem…

Foto: O internacionalista e médico cubano Rodolfo Puenteferro, um dos artífices dos relacionamentos de Cuba com África, quando fez a sua intervenção a 8 de Dezembro de 2011, na Conferência que marcou os 55 anos da formação do MPLA.

A consultar:
- Uma saúde mercenária ao serviço do mercado –
http://pagina--um.blogspot.com/2011/01/uma-saude-mercenaria-em-nome-do-mercado.html
- Rapidinhas do Martinho – 21 – Cinstruindo a emergência –
http://paginaglobal.blogspot.com/2011/06/rapidinhas-do-martinho-21.html
- Rapidinhas do Martinho – 49 – resgatar África –
http://paginaglobal.blogspot.com/2011/10/rapidinhas-do-martinho-49.html
- As muitas lições do Haiti –
http://paginaglobal.blogspot.com/2011/05/as-muitas-licoes-do-haiti.html
- Vencer o bloqueio –
http://paginaglobal.blogspot.com/2013/08/vencer-o-bloqueio.html
- Fazer é a melhor maneira de dizer –
http://paginaglobal.blogspot.com/2013/09/fazer-e-melhor-maneira-de-dizer.html
- Raízes históricas da crise social no Brasil –
http://resistir.info/chossudovsky/brasil_21jun13.html
- Neodesenvolvimentismo ou luta de classes? –
http://www.odiario.info/?p=2735
- O preço do progresso e os dois Brasis –
http://outraspalavras.net/2013/06/20/o-preco-do-progresso-e-os-dois-brasis/
- Integração e longa duração –
http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5947
- A hora da saúde pública –
http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=1312
- Por que os médicos cubanos assustam –
http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/por-que-os-medicos-cubanos-assustam/
- Porque tanto protestam os médicos brasileiros? A quem representam? –
http://paginaglobal.blogspot.com/2013/09/por-que-tanto-protestam-os-medicos.html
- Pequenas cidades comemoram vinda de médicos cubanos –
http://convencao2009.blogspot.com/2013/08/pequenas-cidades-comemoram-vinda-de.html?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3A+blogspot%2FyqJas+%28Solid%C3%A1rios%29
- Como trabalha o médico de família em Cuba –
http://paginaglobal.blogspot.com/2013/09/doutor-garcia-como-trabalha-o-medico-de.html
- Director da FAI pede apoio de Cuba no combate à fome na América Latina e no Caribe –
http://convencao2009.blogspot.com/2013/01/diretor-da-fao-pede-apoio-de-cuba-no.html?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3A+blogspot%2FyqJas+%28Solid%C3%A1rios%29
 

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