sábado, 30 de novembro de 2013

NÓS, OS OUTROS E NÓS OUTROS

 

Rui Peralta, Luanda
 
I
As agressões neocolonialistas de novo tipo são uma constante no actual período de agudização da crise crónica do capitalismo vigente. As incertezas provocadas pela deslocação do centro financeiro dominante para parte ainda incerta, provocam uma estranha ansiedade no Ocidente e no Oriente, criando uma actividade frenética de intervenções armadas e diplomáticas a nível global. As periferias periféricas (caso do continente africano) tornam-se pontos de exercício e balões de ensaio, onde são ensaiados cenários, intervenções, agressões, equipamento e novas tecnologias de segurança, sinais de dramas, destruição e morte.
 
O conflito maliano inscreve-se neste contexto amplo e é um exemplo de como se processam as agressões neocolonialistas ao continente africano. No Mali actuam os grupos armados pelo Qatar e pela Arábia Saudita, directa ou indirectamente coordenados pela CIA, grupos maioritariamente constituídos por combatentes provindos da Líbia. Estes grupos cumpriram a sua função de desestabilização, conduzindo á intervenção da França, Bélgica e outras forças ocidentais e africanas, que se apresentam como forças salvadoras da “unidade e integridade do Mali”. É uma cartilha seguida á letra: Os grupos de combatentes islâmicos, que conduzem á desestabilização e que criam as condições para “justificar” aos olhos do mundo – depois de uma boa campanha mediática, bem delineada nos bastidores – uma intervenção militar internacional, dirigida pela França e com o cunho atlantista da NATO e a sombra dos USA reflectida no muro.   
 
O contexto internacional em que esta intervenção se desenrola está inserido nas dinâmicas da crise mundial. Desde 2008, ano em que a crise crónica (a senilidade do capitalismo mundial) se agravou, a França  intenta escapar á situação em que se encontram a Itália, ou a Espanha (Grécia, Portugal e Irlanda são casos periféricos no contexto europeu). A “Françafrique” é o escape possível para uma elite burguesa que apesar de todo o seu europeísmo, necessita do contexto nacional para continuar a afirmar-se (a burguesia francesa nunca conseguirá sobreviver num contexto europeu aberto e teme, principalmente, a concorrência alemã).
 
Se numa primeira fase desta política, as contradições com os USA atingiram laivos de concorrência aberta, a continuidade e aprofundamento da crise levaram a uma “cartelização” dos interesses e a uma colaboração estratégica, que se revela frutuosa para o Ocidente. Foi assim que o continente africano assistiu (impávido e sereno) á intervenção francesa na Cote d`Ivoire para instalar Ouatarra, um peão africano dos USA, no poder. E da mesma forma o continente africano assiste, no Mali, á invasão francesa a “beneficiar” os “cousins” yankees, que instalaram uma base na Nigéria, para melhor poderem passear os seus drones pelos céus do continente.
 
A medio-prazo o continente assistirá (sempre debaixo da passividade cúmplice das suas elites) a um conflito permanente no Mali, afectando toda a região que o rodeia, semelhante ao conflito que destruiu, desintegrou, a Somália nos anos 90. São os desígnios do Império, que embora na fase senil, continua a transportar o “fardo do homem branco” nas costas dos carregadores africanos, gentilmente cedidos pelas “nobres, tradicionais e influentes” elites africanas, sempre tão dóceis e compreensíveis para com o “fardo” dos seus parceiros do ocidente.
 
II
Na Líbia, Estado e instituições públicas foram arrasados em nome do… “Estado”. O Ocidente do Capital nunca compreendeu o Estado Líbio, ou melhor, o aparelho de Estado na Líbia. Se ouvirmos os “opinionmaiqueres” da indústria mediática ocidental (e da China também, se atendermos á CCTV News), a Líbia não tinha Estado. E com esta mentira seca, atiram-se as areias do deserto para os olhos da opinião pública.
 
Depois da agressão, depois do desmembramento do país, podemos dizer que o Estado não existe, ou pelo menos é tão frágil que não se faz sentir, nem mesmo em Trípoli.  
 
A polícia e o exército líbios são figurantes inseridos num cenário montado pelo Ocidente e pelas oligarquias árabes, suas fieis aliadas. O país caiu na mão dos bandos armados, uns controlados pela CIA, outros controlados por ninguém e que actuam como autênticos bandos mercenários, prestando serviços a quem mais paga. Desde serviços para a CIA e para a NATO, até serviços prestados às grandes redes de tráfico de droga que circulam pelo continente, em busca permanente de novas rotas e de novos locais para instalarem os seus equipamentos, ou para lavarem o dinheiro obtido no tráfico, os bandos armados líbios pululam por todo o território, assassinando cidadãos, raptando e assaltando. 
 
 Estima-se que estes bandos abrangem um universo de cerca de um quarto de milhão de elementos. Os tiroteios entre os bandos (autodesignados de “milícias”) são constantes, assim como as vitimas destes tiroteios e as vitimas das suas acções. Estranhas Primaveras que desembocam directamente em asfixiantes Verões, criadores de angustiantes Outonos, completando-se o ciclo num infernal Inverno. Mas as elites do continente africano estão contentes. Pelo menos já não sentem-se comprometidas com Kadhafi e não precisam de fingir que são pela Unidade dos Povos Africanos, podendo aparecer mais á vontade junto dos seus parceiros do Ocidente e do Oriente, a falarem de…África e do seu tema predilecto: negócios (será a “acumulação primitiva”?)
 
III
As encenações a que o continente é sujeito, pelos interesses neocoloniais de novo tipo (do Ocidente e dos emergentes), tanto internamente (pelas elites locais) como externamente (pelos interesses exteriores) são de diversa ordem e abarcam inúmeros cenários, alguns deles experimentados e testados noutras paragens e noutros tempos. Uma das montagens cénicas mais antigas das técnicas de agitação e propaganda é a vitimização. Foi utilizada pelos nazis na Alemanha, apresentando os pobres germânicos como vitimas das potências ocidentais aliadas e dos “judeus” que enfraqueciam o “sangue germânico, herdado dos arianos”; pelos fascistas italianos, apresentando o “povo de Itália, destinado aos grandes desígnios de Roma” como vítimas da “inveja dos bárbaros”; ou dos falangistas espanhóis, que apresentavam a “Espanha vitima das hostes comunistas”. A estes exemplos podemos juntar mais alguns, como as operações de desestabilização utilizada pelos norte-americanos na Indochina, América Central e Caribe, América do Sul, Iraque, Afeganistão e os mais recentes exemplos da Síria, do Mali e da Líbia.
 
Um dos cenários de mistificação melhor conseguidos foi o do sionismo com a vitimização dos judeus, um velho truque político de grande êxito, que permitiu angariar simpatia política internacional para a causa sionista, ao mesmo tempo que justificava a agressão e as campanhas de terror que o exército sionista perpetra contra os palestinianos e os países árabes vizinhos. Sempre que a comunidade internacional chama a atenção a Israel, surge um novo “episódio” desta longa novela. Por exemplo: quando Israel ficou debaixo de olho devido aos acontecimentos ocorridos contra os imigrantes africanos em algumas cidades israelitas, surgiram na indústria mediática internacional uma série de trabalhos (artigos, reportagens, documentários) sobre os “refugiados judeus nos países árabes”. Nesta campanha os judeus eram apresentados como uma comunidade humilhada, sem direitos, escamoteando o facto de que as comunidades judaicas estavam integradas nas sociedades árabes e que sempre foram respeitadas pelo Islão, tratadas como cidadãos de pleno direito e esquecendo que as comunidades judaicas sempre tiveram um estatuto de igualdade de tratamento, que permitiu-lhes estabelecer negócios de grande envergadura por todo o mundo islâmico (o que no Ocidente nem sempre era permitido e quando o podiam fazer era sinal de que mais tarde ou mais cedo iriam ser vitimas de perseguições ou de “conversões” forçadas – na melhor das hipóteses – quando não eram “convertidos” nas salas de tortura da Inquisição ou queimados nas fogueiras desta “Santa Instituição”). Desta forma a História foi falsificada e criada uma nova realidade, que entrou pelos canais auditivos de milhões de “telespectadores”.
 
A criação de “factos históricos” – o refazer da História - é também uma constante no continente africano. De Norte a Sul do continente as elites pós-coloniais (as mesmas que provêm do colonialismo, ás quais se juntaram novas franjas criadas pelas realidades pós-coloniais) realizam operações de cosmética – como por exemplo a passagem ao Estado de Direito – para melhor manterem o seu domínio sobre as restantes camadas da população. Existe um exemplo característico a toda a realidade africana que é a quase ausência de referência nos manuais históricos dos países africanos ao papel dos sindicatos, das organizações de trabalhadores, das associações de camponeses pobres, ou seja, um limpar da memória, do importante papel assumido pelas estruturas proletárias africanas no movimento de libertação nacional. No seu lugar surge, aos poucos, uma historieta de tricas, de personagens, figuras, famílias e dirigentes, de heróis – em alguns casos inexistentes, noutros transfigurados – com o objectivo de limpar a imagem das elites e de criar uma áurea de “missão histórica” ocupando, perante os povos, o lugar do colono. Desta forma as elites africanas retomam a figura retórica do colonialismo, assumindo o “fardo do homem branco”.
    
IV
As elites sionistas fazem por ignorar algumas realidades, deturpando factos, como por exemplo o facto de no Irão residir uma comunidade judaica composta por 25 mil cidadãos, representados no parlamento por um deputado, Maurice Mohtamed, ou as inúmeras comunidades judaicas espalhadas pelo mundo islâmico (do Norte de África ao Médio-Oriente), mentindo deliberadamente sobre a realidade da Palestina ou escamoteando a forte contestação social que se faz sentir na sociedade israelita. Criam desta forma um domínio assente sobre uma realidade virtual, sofisticadamente criada com o objectivo de manter e ampliar o poder e a influência, não apenas sobre a sociedade israelita e sobre o povo judaico, mas também sobre os mercados internacionais.
 
As elites africanas, por sua vez, fazem-se desentendidas em relação a assuntos como a unidade africana (os imigrantes africanos nos países africanos são sempre estrangeiros, enquanto os imigrantes ocidentais ou chineses são cooperantes, expatriados ou “mão-obra-especializada”), as condições de vida, o nível de vida (recentemente trocado por “índices de consumo”) as condições dos trabalhadores, o desemprego (um numero esotérico, a taxa de desemprego em África) as revindicações dos trabalhadores, os salários em atraso (uma práctica constante e normalizada na grande maioria dos países do continente) a saúde (ao cuidado dos privados ou das mafiosas e “maçónicas” parcerias público-privadas), a educação (ao cuidado dos comerciantes da educação e da formação), a habitação (construção de “edilidades” e de condomínios geradores de fenómenos de apartheid social) ausência de politicas urbanísticas, relutância para com politicas de transportes públicos e de redes públicas de transportes colectivos e um cúmplice cruzar de ombros para com a principal arma do neocolonialismo: a corrupção.
 
Ambas são sociedades assentes na mentira, geradoras de realidades virtuais, de guetos, sociedades de apartheid (em Israel predomina um duplo apartheid: racial em relação aos palestinianos, berberes e árabes e social em relação aos judeus pobres ou aos judeus africanos e aos oriundos da Asia Ocidental e da Europa de Leste, assumindo o topo do escalão hierárquico os judeus provenientes da Europa Ocidental e da América do Norte) sociedades postas ao serviço de elites arruaceiras, astutas, formadas pelo entrecruzar de famílias e de parentescos gerados nas encruzilhadas históricas.
 
Uma frase simples de Mahatma Gandhi sobre o conflito árabe / israelita seria desejável que fosse aplicada á realidade africana: “A Palestina pertence aos árabes, da mesma forma que a Inglaterra pertence aos ingleses e a França aos franceses”. Mas em África estamos ainda longe desse facto. As independências politicas não foram consubstanciadas pela descolonização cultural e a independência económica é uma miragem a milhares de anos-luz…O papel histórico do movimento de libertação nacional ainda não terminou, para mal das sobrealimentadas (á custa da subalimentação dos cidadãos africanos e ás oferendas dos parceiros estratégicos do Ocidente) elites africanas.
 
V
Existe, para lá deste mundo acima referido - o mundo do Capital - um outro mundo em transformação. A globalização é feita destas contradições. Um mundo em transformação constante, onde a Humanidade é simultaneamente protagonista e espectadora, em que aparece numas vezes na tela, noutras está sentada na plateia, numas vezes aufere dos direitos de autor, outras vezes paga o bilhete para assistir da plateia.
 
No mundo em que a Humanidade se constrói, em que é protagonista dos acontecimentos e senhora do seu nariz, existe um país que ocupa um lugar de relevo: Cuba. E quando se fala de Cuba, fala-se de muitas coisas, de muitos factos, de muitas constantes e de infinitas variáveis. Fala-se de um Universo Pluridimensional, como o são todos os universos transformados pelo Homem. E falar sobre Cuba implica referir, obrigatoriamente, dois personagens, que são património libertário da Humanidade, dois Comandantes proletários: Che e Fidel.
 
 Em 1987, Fidel estava preocupado com as deformações sofridas pelo processo revolucionário cubano. Foi então lançada a campanha de rectificação, que implicou o regresso do Che, cujo pensamento quase fora esquecido (o pensamento e não o seu papel que é um neurónio fundamental na memoria colectiva dos povos), durante a turbulência do processo, nos anos 70. Tornou-se evidente que o Che fazia muita falta. Não apenas aos cubanos, mas a todos nós, nas Américas, em África, na Ásia, na Europa e na Oceânia, a todos nós, Humanidade cosmopolita, a todos nós, identidade solidária.
 
Tal como há 26 anos atrás (e tal como desde o seu inicio) o processo cubano necessita do pensamento do Che, para mais estando Fidel (essa imensa biblioteca humanista) com uma presença indirecta no actual processo. O aprofundamento da via socialista, a necessidade constante da posição critica e da análise autocritica (ou da autoanálise, ou análise introspectiva, se preferirem), a capacidade de renovação plena, de mutação constante, tornam obrigatórias as leituras e a experiencia do Che.
 
O momento actual da sociedade cubana, em que se empreenderam transformações cruciais e decisivas para a continuidade do projecto revolucionário, exige a socialização de um pensamento estratégico que abarque as questões essenciais da construção do socialismo em Cuba. Mais do que nunca, a luta entre capitalismo e socialismo, caracteriza a situação do país.
 
A concepção socialista do Che é oposta a muitas das opiniões e propostas que ecoam na sociedade cubana e que asfixiam-se num pragmatismo niilista e obsoleto. É que não se pode separar a dimensão económica da dimensão social, politica e cultural. Isso acontece no capitalismo, onde a realidade económica torna-se realidade dominante, levando á extrema alienação do Homem, reduzido a um mero activo, a uma simples mercadoria. A dimensão económica é um corolário da concepção politica e da praxis revolucionária criadora do socialismo. No pensamento do Che a Economia e as políticas económicas são formas da economia capitalista e correspondem ao complexo teórico e ao arsenal ideológico do capitalismo. A transição socialista é, pelo contrário, um poder político e ideológico, revolucionário, transformador, que unifica as diferentes esferas da sociedade, mantendo as suas características e especificidades. O poder revolucionário, o domínio da pluridimensionalidade, a capacidade transformadora e criativa, colocam a economia debaixo do seu domínio. Por isso, para que o socialismo avance, o poder popular (a soberania popular, a democracia participativa), tem de ser efectivo, caso contrário o poder cai nas mãos das camadas burocráticas que se desenvolvem no seio dos processos revolucionários e que na primeira oportunidade aliar-se-ão às velhas camadas remanescentes, residuais, da antiga ordem e reconduzirão o processo ao capitalismo.   
 
A experiencia revolucionária cubana encontra as suas fontes em Carlos Manuel de Céspedes, que abriu as portas ao abolicionismo revolucionário da escravatura, ao pensamento de José Marti, de Júlio António Mella, António Guiteras e consubstancia-se na praxis revolucionária de Fidel e do Che. É toda uma “bagagem” histórica, rica em ensinamentos e experiencias.
 
Nós, angolanos, que sentimos directamente nas nossas vidas o impacto da solidariedade cubana, devermos olhar para estas experiências como sendo fontes directas do nosso saber, como lucidamente compreendeu o presidente Neto. Por esse conhecimento e pela compreensão dessas fontes solidárias e dos seus ensinamentos, fomos, num passado recente, a trincheira firme da revolução em África. Talvez seja altura de revermos os trilhos por onde passámos e balancearmos a nossa experiencia com a realidade em que nos encontramos. È tempo de deixarmo-nos das bagatelas da ilusão, dos ópios alienantes que nos conduziram a esta encruzilhada em que nos encontramos e revermos as lições e as experiencias do nosso combate, á luz das novas realidades. É tempo de reassumirmos o nosso papel histórico de trincheira firme no continente africano. Porque essa foi a raiz da nossa libertação.
 
Para terminar gostaria de salientar um último facto: com Cuba nunca tivemos parcerias estratégicas. Por uma razão: porque entre camaradas, entre companheiros unidos por laços fraternais, não existem parcerias. Só existe Solidariedade. 
    
Fontes
Hassan, Mohamed e Pestieau, David L`Irak face à l`occupation EPO, 2004
Hassan, Mohamed; Lalieu, Grégoire e Collon, Michel La stratégie du chaos Investig`Action/Couleur Livres, 2012
News Magazine, March, 19, 2007.
 
Imagem: Malangatana (Moçambique)
 

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