Artur Queiroz*, Luanda
Zeca Bailundo desenhava com lápis ou carvão de takula e fixava a luz no papel, num jogo fantástico a preto e branco. Em folhas inteiras ou quartos de papel cavalinho reproduzia a sua madrinha, Nossa Senhora dos Remédios. Ele sentava-se na ponta de um banco corrido e eu andava por ali, fascinado com a luz que atravessava os vitrais, apurando o ouvido para apanhar as palavras abafadas de pobres mulheres pedindo graças à santa. Todas as peticionárias tinham os filhos doentes. Na Sé de Luanda senti A Liberdade nos Olhos.
Os desenhos do Zeca Bailundo eram filhos da liberdade. A imagem de Nossa Senhora dos Remédios era decomposta. Umas vezes desenhava apenas a cabeça coroada, cercada pelos rostros de mães angustiadas pedindo vida para os filhos famintos. Fazia incidir a luz nos olhos da santa. Apagava-os com manchas negras. Fazia entrar o sol no templo. Criava penumbras. Com ele aprendi que a luz de Luanda tem reflexos de mar. É potente. Mas muito diferente da luz da Kapopa, rasgada pelo voo retumbante dos pombos verdes, sombreada pelas alturas do Pingano. Esverdeada e triste no Cacimbo. É preciso conhecer a luz e isso só é possível através da arte. A Liberdade nos Olhos.
Um dia pedi ao Zeca Bailundo para me ensinar a capturar a luz. E ele despachou-me: - Isso não se ensina e tu já sabes desde que abriste os olhos. Conformei-me e passei a olhar para tudo pelo lado da luz. Foi assim que descobri a luz das noites de Luanda. Não a luz do luar, das estrelas, dos corpos cansados, dos beijos saciados de amor, quando a madrugada sucumbe ao alvorecer. A luz das noites de Luanda brota da cidade adormecida. Das portas cerradas. Das palavras segredadas em promessas nunca cumpridas. O mundo da luz tem muita imaginação!
O Zeca Bailundo foi estudar Belas Artes para o Porto e ficou só José Rodrigues. Quando cheguei à cidade, nos anos 80, foi o reencontro. Eu andei de repórter toda a vida e ele de artista. Já lhe chamavam mestre. No seu estúdio das Fontainhas apresentou-me anjos nus, salomés decapitando baptistas, arrependidas da sua nudez. Enquanto via aquelas maravilhas ele fazia no barro o busto do Luís Veiga Leitão para colocar nas Terras do Demo, pátria de Aquilino Ribeiro que eu nomeei mestre da Língua Portuguesa, a minha amada.
Um dia Zeca Bailundo ensinou-me o Porto. Fomos à Praça da Batalha e de lá descemos por vielas e ruelas até à Ribeira onde ele colocou uma escultura. Lá estavam aves poisadas num cubo que é parte essencial da natureza. O Nadir Afonso dizia-me que a arte brota da terra em formas geométricas e o artista limita-se a introduzir-lhe uma dose de harmonia. Temo que 37 notáveis do Porto peçam ao presidente da Câmara, Rui Moreira, que remova a escultura da Praça da Ribeira. Vejo naquelas aves, vaginas voadoras. A Liberdade nos Olhos. E isso avilta gravemente a imagem da mulher.
O Luís Veiga Leitão passou dias a mostrar-me os batentes das portas no Porto que mais tarde foi classificado como Património da Humanidade. Um dia fomos à outra margem e ele apontou para o casario da Ribeira: - Estás a ver? O Porto nasce do rio em impulsos de granito!
Isso mesmo Luís! E tem uma luz púdica que se esconde nas brumas e na negritude dos séculos. Uma luz atlântica, belíssima, que nunca se desnuda. A Liberdade nos Olhos.