Carlos Matos Gomes [*]
O que faz um atleta que entrou em
decadência para tentar manter-se em competição? Droga-se! Injeta ou toma
produtos que lhe dão a sensação de força e euforia, mas que a prazo mais ou
menos curto lhe arruínam os órgão vitais e as suas capacidades de sobrevivência.
Entra em ressaca.
O programa armamentista proposto
pela Comissão Europeia presidida por Úrsula Von Der Leyen é uma proposta
de dopping para a Europa acreditar que ainda tem um papel de relevo
na competição pelo poder mundial. É um estímulo de efeito imediato, que se
extinguirá e com ele o “atleta”. Restará um farrapo!
A referência para esta visão
desencantada é o artigo: “A Europa entra em estado de pé de guerra”, do El
País de 3 de Março de 2024, de que deixarei o link no final.
A introdução do artigo justifica
a opção da União Europeia pelo pé de guerra com a “dissuasão de Putin de
iniciar uma nova agressão e de garantir a sua autonomia num mundo turbulento”.
São duas falácias numa frase: a invasão da Ucrânia foi um ato
deliberadamente provocado pelo “Ocidente”, a Ucrânia não é para a Rússia
comparável com qualquer outro estado europeu; e a União Europeia não dispõe de
qualquer autonomia e nunca dispôs. A Europa do pós-guerra foi um estado
vassalo, metade dos Estados Unidos e metade da antiga URSS. Argumentar com
estas duas justificações: o perigo da invasão russa e a autonomia
europeia é atentar contra a capacidade de julgamento dos europeus e dos seus
maiores ou menores conhecimentos da sua História. Há os que aceitam os
argumentos, mas fazem-no por fé e não pela razão.
Há um terceiro argumento para
o dopping armamentista da Europa após mais de 60 anos em que os
Estados Unidos impediram a construção de um aparelho de força armada comum com
a formação (imposição) da NATO, que é ainda mais contraditório que os
anteriores: a provável eleição de Trump nos EUA. Ora Trump demonstrou no
primeiro mandato o seu desprezo pela Europa: a Europa não é um jogador
do seu campeonato, é irrelevante, acabará sempre por ser uma carta no seu
bolso. Pode ter algum interesse como compradora de armas americanas, a par da
Arábia Saudita e satisfazer parte da oligarquia americana ligada ao complexo
militar-industrial, tradicionalmente votante nos democratas, mas pouco mais do
que isso. A consideração dos Estados Unidos pela União Europeia está resumida
na célebre frase de Victoria Nuland, “Fuck the EU!”, proferida a 6 de
Fevereiro de 2014 enquanto alta representante dos Estados Unidos para a Europa,
a propósito do golpe que os EUA estavam a organizar na Ucrânia. Victoria Nuland
serviu tanto o regime de Trump como o de Biden e é hoje subsecretária de estado
dos negócios estrangeiros de Biden. Para os Estados Unidos os seus homens de
mão na Europa são os ingleses (são militares ingleses que estão a dirigir as
operações na Ucrânia) — os ingleses são os “gurkas” dos Estados Unidos,
enquanto a Alemanha será o financiador e o feitor da propriedade continental
europeia.
Importa relembrar que a guerra
dos Estados Unidos contra a Rússia — de que a Ucrânia é o pretexto — foi desde o
início desenhada como um conflito de desgaste económico da Rússia para a
impedir de ser uma alternativa viável à dependência da Europa relativamente aos
EUA, de redução de capacidades da Rússia para esta não ser uma aliada decisiva
da China, o inimigo principal. Daí que a resposta dos EUA à Rússia após terem
provocado a invasão da Ucrânia tenha sido centrada na economia: as
célebres sanções económicas em que os Estados Unidos ficaram com os lucros e a
Europa ficou com os prejuízos que vai continuar a acumular, quer através da
recessão quer dos défices resultantes da militarização: um soldado é,
pegando na ideia de Brecht, um desempregado armado e caro e as compras de
material militar serão feitas aos Estados Unidos, que são uma potência nuclear e
espacial, o que a Europa não é.
Qual é o programa de armamento e
quanto custa? Segundo o artigo do El País, em 2014, quando a Rússia
anexou a Crimeia, os aliados europeus da NATO gastaram 216 mil milhões de
Euros, 1,47% do seu PIB. Em 2023, os gastos subiram para 347 mil milhões (ambos
calculados a preços constantes de 2015), equivalentes a 1,85% do PIB. Para 2024
prevêem-se gastos de 380 mil milhões, cerca de 2%, do PIB e isto segundo dados
da própria NATO. Tudo aponta para que os gastos continuem a subir. A NATO
(leia-se os Estados Unidos) pretende que os 2% dos gastos em despesas militares
sejam o patamar mínimo e não o máximo.
Desde 2022 que a UE financia a
Ucrânia com fundos intergovernamentais da ordem dos 35 mil milhões de euros
para material militar, o que é superior ao apoio dos Estados Unidos e tem sido
empregue em boa parte em compras aos EUA! A Comissão Europa também planeia uma
reorientação radical nos seus programas de investimento, com prioridade para as
indústrias militares, criação de reservas de munições, de armas e a alteração
dos objetivos do Banco Europeu de Investimentos para privilegiar empresas que
fabriquem armas e munições em vez de empresas de produtos de duplo uso militar
e civil como drones e eletrónica!
O grande problema deste programa
belicista (muito parecido com o que ocorreu na Europa a anteceder a I Grande
Guerra), de empobrecimento geral é fazê-lo passar junto das opiniões públicas
europeias que não viveram nenhuma guerra, e logo num ano de várias eleições
importantes, a mais importante das quais nos Estados Unidos. Há que refazer a
História, desenvolver um programa de revisionismo histórico. Afirmar que os
polacos, que foram invadidos pela Alemanha, se sentem ameaçados pela Rússia!
Que os ucranianos que, em boa parte foram nazificados e apoiaram a Alemanha,
devem defender-se da Rússia e glorificar os seus heróis nazis. Que os países
bálticos que viveram decénios sem ameaças da União Soviética estão agora sob
ameaça iminente. Glorificar heróis nazis, reciclados em nacionalistas, caso de
Bandera, o herói ucraniano. Trata-se de criar, com a habitual cumplicidade dos
grandes órgãos de manipulação (é para isso que as oligarquias investem na sua
posse) um ambiente de “aí vem o lobo”, ou o truque do carteirista que avisa da
presença de carteiristas na zona para roubar a carteira ao crente, que ainda
deve ficar agradecido.
O argumento utilizado é o de que:
“se os europeus levarem a sério (se se dispuserem a pagar armas e
abdicar do estado social) a questão da defesa, a Rússia não atacará”. E o
reconhecimento de que “ a Europa desvalorizou a sua defesa durante 30 anos”.
Acontece que o desarmamento europeu foi uma imposição dos Estados Unidos e foi
aceite pelos europeus em troca do estado de bem-estar.
Por fim, ninguém diz aos europeus
que os gastos militares que os europeus vão pagar a troco de perderem boa parte
do estado social é completamente inútil para os fins que são publicitados:
defender-se da Rússia. É que a Rússia é uma das grandes potências
nucleares (a grande arma da dissuasão) e uma das grandes potências
aeroespaciais (determinantes para as tecnologias de informação e condução de
operações) e a Europa não é nem uma coisa nem outra e os Estados Unidos jamais
permitirão que a Europa se liberte da sua dependência nuclear e espacial,
criando um futuro concorrente onde tem um vassalo e um cliente.
Em suma, o programa de armamento
que os dirigentes da União Europeia estão a propor aos europeus em nome dos
interesses dos Estados Unidos é um programa de dopping que dará aos europeus a
sensação de força que se esvairá aos primeiros confrontos com a realidade,
deixando os farrapos humanos que vemos nos viciados após as ressacas.
É evidente que estes assuntos não
entrarão na campanha para as eleições nacionais e europeias. Quem o fizer será
acusado de putinista e russófilo. Viva o dopping!
03/Março/2024
[*] Coronel
(R)
Ver também:
Europa se pone en pie de guerra
O original encontra-se em medium.com/@cmatosgomes46/dopping-o-programa-de-armamento-de-bruxelas-d34752be187a estatuadesal.com/2024/03/06/dopping-o-programa-de-armamento-de-bruxelas/
Este artigo encontra-se em resistir.info