Rui Peralta, Luanda
Bolívia
VI - Em 2009, Evo
Morales, proferiu o discurso inaugural da Conferência dos Povos contra as
Alterações Climatéricas e pela Defesa da Mãe Terra, realizada em Tiquipaya - Cochabamba
O discurso era aguardado com expectativa por todos os presentes na Conferencia,
bolivianos e estrangeiros. Evo tinha discursado anteriormente em Copenhaga,
Dinamarca, na Cimeira Social, cimeira paralela á Cimeira da Nações Unidas sobre
as Alterações Climatéricas, perante mais de cem mil activistas sociais e
ecologistas, donde se declarou guerra ao capitalismo em defesa da Mãe Terra.
Mas em Cochabamba o
presidente boliviano falou dos danos causados pela Coca-Cola e pelos frangos
com hormonas, salientando a queda do cabelo e a transformação dos homens em
homossexuais. Parte do público assistente, sobretudo estrangeiros, esperançados
pelas declarações de Evo em Copenhaga, ficaram desconcertados com o discurso do
presidente boliviano e mais desconcertados ficaram quando o almoço servido na
conferência não foi nem mais nem menos do que frango com Coca-Cola.
As resoluções da
Conferencia terminaram com a tradicional declaração de guerra ao capitalismo,
defesa da Mãe Terra, moções de proibição de cortes dos bosques, monções contra
a exploração extractiva nos bosques e territórios indígenas e moções de apoio a
um modelo de soberania alimentar. Na Conferencia ouviram-se temas como a luta
por uma civilização alternativa ao capitalismo e á modernidade (?), defesa dos
equilíbrios ecológicos, pagamento da divida histórica dos países centrais, a
divida colonial aos povos indígenas e países periféricos, a transferência
tecnológica, as tecnologias limpas e a exigência de que os estados respeitem as
decisões de Quioto. Terminou com uma apelo á formação de uma internacional dos
povos em defesa da Mãe Terra e em luta contra o capitalismo.
Realizados que
foram todos os rituais que precedem e sucedem a estes actos (o folclore),
concluiu-se pelo êxito da Conferencia, pelo menos na forma como as ideias e
projectos apresentados foram debatidos e pela própria riqueza e importância dos
temas. Por comentar ficou o discurso de Evo.
VII - A homofobia é
vista pela fraternidade masculina com uma mistura de terror, alteração sexual e
problema etário, algo que está fora dos padrões masculinos estabelecidos. A
dominação masculina, na cultura burguesa (logo, na alienação capitalista,
quando esta cultura é estendida ao todo social) não é apenas exercida sobre a
mulher (sobre a qual o homem adquire um minucioso domínio, iniciado pelo
corpo), mas também pela exclusão e repressão da subjectividade não masculina e
não feminina, mesmo que a homossexualidade esteja implícita, latente ou seja
praticada às escondidas pelos machos dominadores.
Esta é uma questão
social que está nos alicerces patriarcais. Os grandes temas das lutas sociais
em curso na Bolívia, como a descolonização, as lutas dos povos indígenas, a
defesa da Mãe Terra, a luta pela autogestão social e por procedimentos
democráticos directos, estão intimamente articuladas e implicam uma luta pela
emancipação feminina e pelas liberdade sexual. Fazem parte de um campo de
batalha mais vasto, o da luta contra o capitalismo e não são separadas umas das
outras, nem é possível (como fazem alguns mecanicistas da esquerda actual),
concentrar-se numas e deixar outras para um plano secundário. O que define o
plano primário ou secundário é a própria dinâmica que uma determinada luta
comporta. Se no meio de uma greve geral, as lésbicas queimarem os soutiens e os
homossexuais masculinos manifestarem-se pelos seus direitos, é porque a luta
daqueles sectores, naquele momento exacto, foi impulsionada pelo movimento
grevista. É isto a articulação. Cada uma das lutas reflecte as outras e os
logros de umas repercutem-se nas restantes. Todas as frentes de combate devem
estar coordenadas, porque fazem parte da guerra prolongada contra o
capitalismo.
A realidade do
capitalismo é económica, tudo é convertido ao factor económico e esse é o campo
de batalha do capitalismo e é nesse campo de batalha que se trava a luta contra
a economia politica generalizada (seja a do corpo, a do poder, a colonial ou a
da palavra e da ideia). A luta contra o patriarcado, o Estado Colonial, pela
autogestão social e pela emancipação dos povos indígenas é realizada no mesmo
campo de batalha da luta contra a homofobia, a dominação masculina e pela
emancipação feminina.
Não se é
anticapitalista, anti-imperialista e anticolonial por um lado e machista ou
homofóbico por outro. Nem mesmo Evo Morales.
VIII - Álvaro
García Linera, o vice-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, escreveu
um livro intitulado Geopolítica da Amazónia, onde demonstra que Beni, um
departamento do nordeste da Bolívia, na Amazónia, está dominado pelos
latifundiários e pelas ONG. Os latifundiários exploram e escravizam os povos
indígenas e as ONG enganam e utilizam os povos indígenas, através dos programas
integrados do capitalismo verde. O livro é também uma defesa da tese do governo
relativa á construção da autoestrada amazónica, um importante projecto
regional.
A consciência
catastrófica da crise ecológica é uma das batalhas travadas contra o
capitalismo. Não sou daqueles teóricos deslumbrados da esquerda (ate porque nem
me coloco nessa posição, não sou de esquerda – nunca sentei-me no lado esquerdo
de um hemiciclo parlamentar e se algum dia isso acontecer farei questão de
levar o meu sofá e sentar-me onde muito bem entender - e muito menos um
teórico), que consideram que a História da luta contra o capitalismo (porque
não a História do capitalismo?) passou por diversas fases: da luta do
proletariado, no século XIX, para a luta anti-imperialista, no século XX, sendo
agora a época das lutas ecológicas. Näo ando por esses campos de filisteus e
sou daqueles (somos poucos mas somos muito bons, modéstia á parte) que
considera que a luta é a mesma de sempre: a do proletariado.
As formas de luta
anticapitalistas são uma combinação de factores. A problemática ecológica
converteu-se num factor da linha da frente destas batalhas porque diz respeito
a todos nós, os que vivemos nesta nave espacial (usando uma habitual expressão
de Buckminster Fuller). Mas a questão ecológica é também um dos cenários do
campo de batalha. E muitas das vezes é um cenário truncado e ilusório, utilizado
pelo capitalismo para entravar a batalha pelo desenvolvimento, travada por
países e povos que pretendem sair da situação de submissão em que se encontram
perante o imperialismo.
Mas esta batalha
pelo desenvolvimento, também ela torna-se num cenário truncado e armadilhado. O
desenvolvimento dos povos não é o desenvolvimento desenvolvimentista dos
capitalismos BRICS, que já partilham a sua quota de Capital, nem o das elites
terceiro mundistas, desesperadas por apanhar o seu quinhão nas parcerias com o
Capital e que seguem docilmente os pareceres do Consenso de Washington (sempre,
claro, com um discurso para consumo interno, não vá o diabo tecê-las e um
discurso para o sócio estrangeiro, não vá este duvidar das suas reais
intenções). O desenvolvimento dos povos é sustentado e integrado, por um lado e
assente em estruturas socialistas, por outro. Ou seja: o desenvolvimento dos
povos é assente em bases articuladas, em que a primeira questão é a apropriação
da produção, socializando-a e a segunda questão é a reapropriação dos recursos
naturais, socializando-os.
E foi neste sentido
que o vice-presidente boliviano escreveu as suas linhas, consciente dos perigos
representados pelas ONG defensoras do capitalismo verde (os agentes
imperialistas) e pelos latifundiários (os agentes internos apostados em fazer
falhar qualquer projecto de reforma agraria e de autogestão social das
comunidades indígenas), do sector industrial extractivo e das transnacionais
que apostam na tese desenvolvimentista de alguns sectores governamentais e na
forma de socializar os recursos do departamento de Beni e que poderá constituir
um modelo para o Estado Plurinacional Boliviano.
IX - O processo
boliviano de emancipação, em curso, é composto por uma frente imensa, ampla,
que engloba componentes identitárias extremamente fortes e complexas, para alem
das componentes directamente relacionadas com a guerra de classes. O futuro
deste processo emancipador está directamente relacionado com as estratégias de
desenvolvimento e com a via de desenvolvimento seguida.
A participação das
comunidades indígenas no processo de desenvolvimento é de extrema importância.
Mas o desenvolvimento, qualquer que seja a via seguida, é portador de uma
dinâmica específica, criada pelos componentes desenvolvidos (a mudança) e
criadora de novos componentes (os factores transformados). Esta dinâmica é
sempre um processo de aculturação, o que implica, a partir de determinado
momento do processo, que os factores identitários, inicialmente uma potente
fonte de mudança, tornam-se contrarrevolucionários e um bloqueio ao
desenvolvimento.
A participação das
comunidades indígenas (as nações) no processo de desenvolvimento é geradora de
processos de aculturação, pois as comunidades ao assumirem a gestão dos seus
assuntos e do seu meio, têm de tomar consciência de que são parte de um todo,
que engloba não apenas as outras comunidades (nações), que respondem com
diferentes soluções aos problemas com que se depararem, mas também de que
afinal convivem num espaço com outras componentes que não pertencem ao seu
mundo cultural, o que implica um natural processo de aculturação, deixando para
trás o elemento identitário em prol de um elemento cosmopolita.
É neste momento do
processo que o elemento identitário torna-se contrarrevolucionário. É nesse
momento que determinados factores culturais passam a formar a tradição, porque
já näo têm cabimento no presente. Todo esse processo é de extrema complexidade
e gerador de forças imprevisíveis.
Por isso é de
extrema importância que a dinâmica do Estado Plurinacional, a questão ecológica
e a autogestão das comunidades (e nações) sejam uma base determinante do
processo de emancipação e do seu modelo de desenvolvimento. Na Bolívia
cruzam-se as dinâmicas da economia rural pré-capitalista, com a economia colonial,
com a economia capitalista periférica, com a economia capitalista industrial, a
pós-industrial, a economia da informação, ou seja, estamos a falar de um espaço
territorial com diversas dinâmicas económicas, geradoras de contradições
específicas, mas todas elas passiveis de profundas transformações.
Na resolução destas
contradições e na profundidade das transformações, reside o êxito do processo
emancipador boliviano. Para já uma coisa é certa: O futuro da Bolívia está nas
mãos dos bolivianos e essa é já uma vitória do processo emancipador.
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