Diariamente
se ouvem o Governo e o Presidente da República a dizer de que Portugal está
melhor, que "é hoje um país mais livre, mais confiante e mais optimista no
futuro do que aquele que nos legaram em 2011" (Passos Coelho).
Infelizmente
para o país, trata-se de propaganda enganosa. Decorridos quatro anos de
sujeição a um pesado programa austeritário, temos hoje uma sociedade mais
desigual e uma economia mais frágil.
Para
sustentarem a propaganda os seus autores socorrem-se da espuma de algumas
ondas, escamoteando a crua realidade.
A
espuma das ondas
As
taxas de juro a que a República se financia nos mercados externos estão
historicamente baixas. Na verdade as taxas de juro nominais atingiram níveis
historicamente baixos para todos os países e não apenas para Portugal. O que
mostra, que apenas estamos a apanhar uma boleia geral e nada tem a ver com a
situação portuguesa (aliás, as empresas de "rating" continuam a
classificar-nos como lixo). Mas, mais importante, se as taxas de juro nominais
atingiram o mínimo dos últimos 15 anos simultaneamente o deflator do PIB baixou
ainda mais. E o que interessa à economia não é o valor nominal da taxa de juro
nominal mas o seu valor real, porque é isso que determina se está com melhores
ou piores condições para pagar as dívidas. E a verdade é que as taxas de juro
reais não estão mais baixas.
A
taxa de desemprego tem vindo a diminuir. Escamoteiam os efeitos sobre esse
valor de uma emigração acumulada nos últimos quatro anos da ordem de 400.000
cidadãos. Omitem que nesse período foram destruídos 399.000 postos de trabalho.
Escondem a grande camuflagem estatística dos desempregados, designadamente com
os "estagiários" temporários, que reduz para 14% uma taxa de
desemprego que os próprios dados do INE implicitamente mostram ser superior a
20%.
A
economia, o PIB, saltou da recessão para crescimentos positivos. Mas calam que
isso se deve em grande medida à baixa do preço do petróleo e da taxa cambial do
Euro (para o que as políticas do Governo nada contribuíram e que nada garante se
prolonguem no tempo) e, fundamentalmente, que esse crescimento económico para
além de ser muito débil não é sustentado (até o FMI e a CE o reconhecem).
A
balança corrente externa está positiva. Mas calam que isso se deve
essencialmente à redução do consumo das famílias em consequência do seu
empobrecimento e à brutal e queda do investimento.
Por
último, o défice orçamental tem vindo a baixar. Só faltava que assim não fosse,
depois das brutais reduções salariais na administração pública, da redução das
pensões de reforma, dos abonos de família, do rendimento social de inserção e
do subsídio de desemprego, do enorme aumento da carga fiscal e do corte, nestes
quatro anos, de 2/3 do investimento público.
Só
a perspectiva de eternizar tudo isto pode sustentar um discurso de optimismo e
confiança no futuro.
A
dura realidade
Destapando
o manto diáfano da propaganda, o que a dura realidade constata é que há menos
criação de riqueza, menos capacidade produtiva e menos emprego. Que há mais
desigualdade, mais desemprego, mais emigração e mais população em risco de
pobreza. Que o trabalho está desvalorizado e as famílias mais pobres. Que foram
e estão a ser vendidos ao desbarato bens públicos estratégicos. E que também há
mais dívida pública e mais dívida externa.
E
esta realidade só pode suscitar justificado pessimismo e receio quanto ao
futuro.
Para
sustentar esta afirmação basta olhar para as questões da dívida e do
investimento.
O
país está mais próximo de uma situação de "bancarrota" do que há
quatro anos. A dívida externa bruta aumentou para 235% do PIB e a dívida
pública para mais de 130%. Os juros da dívida pública representam um fardo cada
vez maior, com um valor equivalente a 112% dos encargos com o SNS e 134% dos
encargos com a Educação. Se aos juros somarmos as amortizações da dívida de
médio e longo prazo, e tendo em conta que cerca de ¾ desta dívida pública é
dívida externa, isso significa que ⅕ da exportação de bens, serviços e turismo
esvai-se no pagamento do serviço da dívida pública.
São
recursos financeiros incomportáveis que bloqueiam a capacidade nacional de
investimento e de crescimento económico. Recursos essenciais para promover o
necessário investimento público e para reduzir a carga fiscal visando o aumento
indispensável da procura interna.
Acresce
que esses volumosos encargos sustentam a permanente dinâmica autofágica da
dívida: os juros pagos de 2011 a 2014 são responsáveis por quase ⅔ do aumento da dívida que ocorreu no mesmo
período.
Recordando
que o Tratado Orçamental exige a redução da dívida pública para 60% do PIB num
prazo de 20 anos, mesmo numa perspectiva demasiado optimista de crescimento
nominal do PIB de 3,8% ao ano, isso obrigaria à obtenção de saldos orçamentais
primários positivos da ordem dos 3 a 4% anuais durante duas décadas. Ora, após
estes quatro anos de forte austeridade, o máximo que o Governo conseguiu foi um
saldo primário de 0,4%. Ou seja, tais saldos só seriam possíveis com o
agravamento das políticas de austeridade e por um prolongado período. E sabe-se
o que isso significaria, em grau mais elevado do que actualmente: a redução de
salários e pensões de reforma, a redução significativa do cumprimento das
funções sociais do Estado, a eliminação de direitos laborais, a manutenção do
desemprego a níveis elevadíssimos, o aumento da pobreza, a emigração permanente
da juventude, a privatização de tudo que público seja, incluindo a saúde e a
educação.
Considerando
o estado global da economia portuguesa e os problemas de endividamento do
sector privado, a obtenção desses saldos constitui uma missão impossível. Se
fosse tentada, arrastaria a economia para uma prolongada depressão e promoveria
o empobrecimento perene da população.
No
que respeita ao investimento. Durante os últimos três anos o investimento
(FBCF), em valor nominal, é agora idêntico ao de 1997. E em termos do PIB
caiu para 15%, a percentagem mais baixa desde 1953. É um gravíssimo obstáculo à
necessária recuperação económica e do emprego - a que se pode e deve somar o
nível de emigração (superior ao dos anos 60) em particular da juventude.
E
a queda de 63% do investimento público significa a degradação acentuada das
infraestruturas económicas e sociais existentes (e o seu não aumento) que ao
Estado incumbem, com nefastos feitos económicos e socias (educação, saúde,
infância, idosos, etc.).
Tudo
isto só pode causar justificado pessimismo quanto ao futuro.
A
ruptura é urgente
Não
é admissível que a economia e a estrutura produtiva estejam condenadas ao
definhamento e que a sociedade seja ameaçada pela "profecia" de
Salazar de que "os portugueses não podem aspirar a mais do que à dignidade
na pobreza".
Por
isso é urgente promover a ruptura com as políticas que têm sido seguidas e
eliminar os obstáculos ao desenvolvimento.
E
o primeiro desses obstáculos é o da dívida pública. É imperioso renegociá-la e
assim conseguir a sua reestruturação adequada. A questão não é não pagar a
dívida, é pagarmos apenas aquilo que podemos pagar e de acordo com a nossa
capacidade para pagar.
A
reestruturação da dívida pública, para além dos seus efeitos directos na
viabilização de políticas económicas e sociais não austeritárias, gera
condições que favorecem a resolução dos problemas do endividamento externo e do
das empresas e famílias. E sem a reestruturação da dívida pública não será
possível libertar os recursos suficientes que favoreçam o crescimento económico
necessário.
Sem
a reestruturação da dívida é a própria sustentabilidade da sociedade portuguesa
que está em causa, com os mais jovens a emigrar, os salários a convergirem cada
vez mais para os limiares da indigência, o empobrecimento generalizado e a
destruição dos pilares essenciais de um Estado social, designadamente a saúde,
a educação e a protecção social.
E
a não reestruturação da dívida tem, ainda, efeitos nefastos sobre a democracia
politica e a soberania nacional. Porque isso significaria que não pudesse haver
alternativa à política austeritária. O que constituiria a negação da democracia
política e do poder soberano do povo de optar por outras vias. A não
reestruturação significativa da dívida pública impede, objectiva e
independentemente da cor partidária quem estiver no governo, quaisquer
estratégias e políticas diferentes das aplicadas nos últimos quatro anos. As
alterações possíveis circunscrevem-se ao grau. E o melhor a que uma política de
austeridade mais moderada poderá aspirar é uma austeridade mais moderada, mas
mantendo-nos num quadro de austeridade perpétua.
A
renegociação da dívida pública parece-me inevitável. Ela será feita, mais cedo
ou mais tarde (e quanto mais tarde pior) nos termos que os credores
institucionais imponham ou nos termos definidos por Portugal. Ou seja,
determinada pelos interesses dos credores ou pelos interesses do país e dos
portugueses. Por isso deve ser assumida por iniciativa do Estado português
salvaguardando os interesses nacionais e assente num serviço da dívida
compatível com o crescimento económico, a promoção do emprego e o
desenvolvimento social. Não há nenhuma razão para que o imperativo do pagamento
aos credores seja considerado de natureza superior a outros compromissos
igualmente assumidos pelo Estado, designadamente na saúde, na justiça, na
educação, na protecção social, nos direitos dos trabalhadores.
Antes
pelo contrário. As responsabilidades do Estado para com os cidadãos e a coesão
social têm de estar acima das obrigações para com os credores. Portugal não
será o primeiro país a ter de reestruturar a dívida, nem será o último.
Porém,
tenhamos a consciência de que a crise da dívida pública não é a causa da crise
económica. A crise portuguesa é a resultante de perdas acumuladas de
competitividade, devido à impossibilidade de depois de 1999 compensar essas
perdas com desvalorizações da moeda. E, para além de causas conjunturais, essa
foi a causa fundamental que levou ao acumular de dívidas (pública e externa)
excessivas nos últimos 15 anos. Acresce que o crescimento galopante da dívida
pública externa se fica a dever à impossibilidade de recorrer ao financiamento
pelo seu banco central.
Por
isso a reestruturação da dívida sendo urgente e aliviando os constrangimentos
que pesam sobre a economia e a população, não resolve um problema de fundo e
central: a competitividade capaz de gerar condições para o crescimento
económico e a reindustrialização do país. O Euro é o obstáculo maior ao
desenvolvimento do país. E a sua ultrapassagem só é possível com a recuperação
da soberania monetária. Não como um fim em si mesmo mas para possibilitar uma
política de pleno emprego, de crescimento económico e de desenvolvimento
social.
Em
suma, o desenvolvimento e a recuperação da soberania passam pela reestruturação
da dívida e fundamentalmente pela saída da zona Euro. Apesar dos seus custos.
De qualquer modo menores que os decorrentes da desvalorização interna, da
austeridade perpétua. E só assim será possível a implementação de uma política
de esquerda.