Rui Peralta, Luanda
Classes sociais?
Os
factores de diferenciação social que podem determinar a formação de categorias
com capacidade de tornarem-se grupos actuantes são de diversa ordem e de diferentes
níveis da esfera social. Origem familiar, nível de rendimentos, propriedade de
bens materiais, profissão, actividade económica, nível educacional, religião
praticada ou assimilada, características étnicas, propriedade, graus de acesso
aos detentores do Poder, são factores que, combinados em determinadas
conjunturas determinam a posição das pessoas e das famílias na hierarquia
social. São factores de "status" social que associados aos factores
gerados pelos seus interesses podem suscitar a formação de classes.
A
expressão classe tem, assim, conteúdos variáveis. Umas vezes podem referir
grupos de interesses económicos análogos e noutras referem grupos de
"status" semelhante. Ora estas realidades são autónomas, pois
expressam diferentes estruturas do Poder numa determinada sociedade. A esfera económica,
a social e a legal são estruturas relacionadas mas com conteúdo específico. As
diferenciações na esfera económica exprimem-se em classes e as da esfera social
em grupos de status. Como estas esferas relacionam-se entre si e criam as suas próprias
dinâmicas socioeconómicas as diferenças entre classe e grupo de status
diluem-se na dinâmica social, aparecendo muitas vezes como extractos sociais,
grupos socioprofissionais, ou mesmo grupos de Poder.
Pode
falar-se de classe quando os elementos de um grupo têm em comum um componente
causal próprio, característico, das suas oportunidades de vida. Este componente
é exclusivamente formado por interesses económicos específicos e encontra-se
representado no mercado, seja como mercadoria seja como trabalho, ou seja a
classe é definida por interesses económicos, sendo, por isso, uma situação do
mercado.
As
situações fundamentais de classe são definidas pela detenção ou não detenção de
propriedade. Estas são as categorias básicas. E tanto no aglomerado
proprietário como no não-proprietário (proletário) há que distinguir e
diferenciar grupos, referenciados -no caso dos aglomerados proprietários
- pelo tipo de bens, volume de dinheiro movimentado ou em sua posse, edifícios,
terras, gado, maquinas, capital financeiro, bens de produção, rendimentos; na
categoria dos não-proprietários há que diferenciar o tipo de serviços e a forma
como são prestados.
Apesar
de existirem múltiplos interesses e uma multiplicidade de cruzamentos de interesses,
o número de classes numa determinada sociedade é limitado. Isto porque as
classes funcionam como plataformas de interesses inter-relacionados o que
conduz à estruturação das relações estabelecidas na classe (relações de
classe).
O
factor principal dessa estruturação é a mobilidade social existente, tanto ao nível
geracional como ao nível individual. São os obstáculos à mobilidade que
consolidam os indivíduos em grandes categorias, ou em plataformas categóricas,
perpetuando condições de vida semelhantes de uma geração para outra. A
propriedade dos meios de produção, a posse de habilitações educacionais e/ou
técnicas e a força de trabalho manual são as três grandes capacidades básicas
de mercado que mais influenciam os mecanismos de mobilidade social.
Também
os factores da estruturação das relações de classe (divisão de trabalho no seio
da empresa; relações hierárquicas e a influencia dos modelos de consumo
definidos pelos rendimentos) têm de ser levados em conta na afirmação das
classes e nas diferenciações no interior de uma mesma classe. A separação entre
trabalho manual e não-manual, a diferenciação de funções, o tipo de tarefas são
elementos de diferenciação entre trabalhadores assalariados provocados pela divisão
de trabalho nas empresas. A hierarquia e o exercício de autoridade dela
resultante geram diferenciações entre os trabalhadores. Os trabalhadores de
chefia, embora não- proprietários, detêm parcelas relevantes de autoridade e
contactam com mais frequência com os proprietários da empresa ou com a
administração, o que os separa das camadas mais baixas dos trabalhadores das
empresas. Todos estes elementos correspondem a uma diferenciação salarial, responsável
por diferentes modelos de consumo.
Além
destes factores existe um outro, decisivo mas não directo ou resultante das dinâmicas
da estruturação de classe ou do relacionamento de classe, que é o factor da
articulação de Poder em cada sociedade e que define os termos da acção do
Estado. Por exemplo o "socialismo real" transformou a dinâmica antagónica
das relações entre classes em dinâmica não-antagónica, submetendo os
trabalhadores a uma taxa de exploração muito mais elevada do que a sua forma
concorrente Ocidental e liberal, eliminando as elites de mercado (a burguesia
no seu todo) e colocando no seu lugar a burocracia estatal, que com o
desenvolvimento do processo de acumulação torna-se em elite activa e autónoma
de mercado que, embora longe do know-how da burguesia, assume os tiques
sociais da burguesia (mas não a sua cultura).
Por
fim existem dois factores de consciencialização dos interesses específicos de
uma determinada classe. A tomada de conhecimento do fenómeno da classe (a
percepção de classe) geralmente inicia-se na negação da sua existência. Por
exemplo, nas sociedades africanas pós-coloniais é usual negar a existência do
antagonismo de classe ou mesmo de classes, embora este ultima caso seja
facilmente desmentido pela realidade social e pelo quotidiano de todos os
africanos, que sentem na pele as agruras da pobreza, da miséria e da precariedade.
Pode-se, também, apontar o exemplo da burguesia na Europa, que formou-se como
classe na luta contra as relações tributárias pré-capitalistas, antes de tomar consciência
de si própria.
A
consciência de classe é a percepção clara e indesmentível de que a sociedade
assenta numa dinâmica de classes. Podem ser diferenciados três níveis de consciência
de classe: 1) apreensão da situação de pertença a uma classe; 2) a oposição de
interesses em relação a outra(s) classe(s); 3) o reconhecimento da possibilidade
de uma organização global da mediação institucional do Poder (que marcou o
movimento operário nos seculos XIX e XX).
Classes
sociais em África
No
congresso da Union Generale des Travailleurs d'Afrique Noire (UGTAN) realizado
em Conacri durante o mês de Janeiro do ano de 1959 debateu-se de forma
apaixonada a existência de classes na sociedade africana, tema que preencheu
grande parte dos debates, esquecendo-se os seus participantes que aquele era um
congresso sindical, logo um congresso representativo dos interesses de uma
determinada classe e que mais importante do que discutir a existência de
classes no continente, seria analisar a sociedade africana tal como era na época
e saber quais eram as classes existentes naquele período de transição da fase
colonial para o pós-colonialismo. Todos referiram a contradição
proletariado-burguesia-campesinato pobre, todos debateram a existência ou não
de uma burguesia africana ou de um proletariado africano constituído em classe
autónoma, todos os delegados ao congresso procuravam saber se em África
existiam ou não a estrutura social da Europa Ocidental. No entanto ninguém se
lembrou de perguntar se não existiram nas sociedades africanas contradições
sociais especifica, diferentes das existentes na Europa Ocidental ou nas
sociedades capitalistas avançadas. E esse deveria ser o ponto principal da
discussão, o que provavelmente teria efeitos positivos nas futuras governações
africanas, pois teria permitido menos erros de administração e leituras mais
cuidadas da realidade.
Durante
muitos anos (e principalmente na década de 50) o continente africano foi
teorizado pelas elites que conduziam na época o processo de libertação nacional
que o continente não possuía classes diferenciadas. Mas tornou-se evidente
durante as lutas de libertação nacional que o proletariado africano opõe-se
efectivamente á burguesia, mas á burguesia francesa, inglesa, belga,
portuguesa, etc. e não á burguesia nacional. Mais tarde, na segunda metade da década
de 60 já após a maioria das independências africanas realizadas, o proletariado
africano trava uma luta contra os jovens Estados e as burocracias nascentes e
em menor escala contra as burguesias nacionais (exceptuando algumas regiões do
Magreb e a África do Sul onde a luta de classes era travada entre a burguesia africânder
(e as camadas descendentes da burguesia colonial britânica) e o proletariado
africano (aliado às burguesias nacionais - e sectores da pequena e
média-burguesia -africanas negras ou mestiças, hindus, islâmicas e judaicas).
Afrocapitalismo
e luta de classes: a situação actual
O
continente africano encontra-se numa encruzilhada, atravessado por fortes dinâmicas
internas, geradas pelo desenvolvimento ou pela ausência do mesmo, mas todas com
origem no atraso estrutural provocado pelo colonialismo e pelas políticas de
submissão dos regimes neocoloniais. Esta encruzilhada é também provocada pelas dinâmicas
externas que atravessam a economia-mundo e que muitas vezes cruzam-se com as dinâmicas
internas, criando turbilhões indefinidos de causa-efeito.
O
afrocapitalismo sofre do mesmo mal dos processos anteriores, a negritude, a
autenticidade, o socialismo africano ou outras etnosofias. Em última análise
são processos frustrados de "arranque" ou "descolagem", de
modernização. Estes processos terminam, geralmente, em grandes lodaçais, em pântanos,
transformados em mecanismos de manutenção do subdesenvolvimento, ninhos de
elites parasitárias, de oligarquias gastadoras e de irracionais e
"impensantes" camadas burocráticas.
A
grande novidade do afrocapitalismo reside na sua eficácia, qualitativamente
superior aos seus antecedentes, agindo sobre os mercados, mais do que sobre o
Estado e abrindo caminho para novas formas de percepção e de consciencialização
de grupos sociais que actuam de forma autónoma nos mercados africanos. A
autonomização dos mercados africanos ê um passo em frente, mas exige profundas
alterações por parte do funcionamento dos aparelhos políticos dos Estados
africanos. E aqui reside o problema fundamental do afrocapitalismo. Ao
pretender transportar as características e dinâmicas africanas para a
economia-mundo o afrocapitalismo comete "hara-kiri", acto nada
africano. È que a economia-mundo implica aculturação e no caso africano isso é,
por enquanto, uma impossibilidade para a maioria das burguesias nacionais.
Do
afrocapitalismo nascerá a primeira tentativa de autonomização do mercado
africano e pouco mais. As situações de fundo que impedem um processo de
desenvolvimento permanecem intactas, adaptando-se ao novo discurso. No entanto
alguns mecanismos de negociação (por exemplo acordos entre entidades patronais
e sindicais), institucionalização de parcerias sociais e de auscultação
tornam-se aos poucos normalizados. Isto será de grande importância para as
economias africanas, asfixiadas pelo temor á instabilidade, tornando-se amorfas
e estagnadas por sua opção em prol da estabilidade.
As
políticas de emprego (causadoras dos índices mais baixos de produtividade da
economia mundial) seguidas por um grande número de governos africanos começam a
ser desmanteladas, não pelos Estados ou por vontade politica ou exigência dos
actores económicos, mas pelo desenvolvimento e autonomização dos mercados
africanos. Em alguns casos este processo poderá representar um passo em frente
na integração dos mercados africanos, mas será sempre uma integração parcial,
devido às distorções dos mercados nacionais.
No
sector laboral as marcas do afrocapitalismo serão tão profundas como as dos
processos anteriores, tanto os neocoloniais ou os de desenvolvimento
não-capitalista, que originaram o estrangulamento dos aparelhos sindicais,
colocando-os ao serviço do Estado ou dos aparelhos político-partidários. È possível
que a maior autonomia do mercado faça-se sentir nas estruturas sindicais e que
estas possam autonomizar-se, sacudindo o jugo do Estado e dos aparelhos partidários.
No entanto é sobre os trabalhadores que recairá a dureza das reformas, a
extrema precariedade e o desemprego que estes processos comportam.
No
fim desta "vaga liberalizadora" ficará a sensação da montanha que
pariu um rato. O imenso pântano africano permanecerá, com as suas areias
movediças e as águas paradas e fétidas da estagnação, a desertificação continuará
a avançar, imparável. O afrocapitalismo não é a solução para retirar o continente
da sua posição ultraperiférica. Mas, ao contrário da alternativa - o capitalismo
nacional e social, vulgata BRICS - ele obriga a alterações que ultrapassam a cosmética
e que são geradores de novas dinâmicas fundamentais para o desenvolvimento e que
serão decisivas para o futuro do continente.
Talvez
as condições para uma Nova Politica Africana amadureçam neste processo e
viabilize os projectos soberanos democráticos e populares que permitam ao Homem
Africano reconstruir a sua cidadania em liberdade e enveredar em passo firme
pelos trilhos do Futuro.
Fim
Bibliografia
Traoré, A. D. et M'Dela-Mounier L' Afrique mutilée Ed. Taamas, 2012
Traoré, A. D. et M'Dela-Mounier L' Afrique mutilée Ed. Taamas, 2012
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M. Essays in Sociology Ed. Routledge & Kegan, London, 1967
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K. The Capital (vol III) International Publishers NY, 1967
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En
Afrique la montée en puissance de banques locales redistribue les cartes - Liberation,
2015/04/21
Nouvelle
Revue Internationale, n°12, 1960