Pedro
Guerreiro – jornal i
O
movimento terrorista contou com um membro de peso em Mossul: o
marechal-de-campo Izzat Ibrahim al-Douri, o rei de paus no baralho dos homens
mais procurados pelos EUA
Como
é que oito mil homens tomaram em Junho a segunda maior cidade do Iraque a
dezenas de milhares de soldados e milicianos treinados pelos Estados Unidos?
Como é que um grupo dissidente da Al-Qaeda assumiu, em poucos meses, o controlo
de boa parte da Síria e do Iraque? A resposta não está apenas no radicalismo e
energia dos jovens jihadistas que chegam de todo o mundo para combater nas
fileiras do Estado Islâmico. Está sobretudo na longa experiência de quem os
comanda. É como se a Guerra do Iraque não tivesse terminado. O que os Estados
Unidos voltaram a enfrentar esta semana, com o início de uma operação aérea em
larga escala, é parte do mesmo inimigo presumivelmente derrotado na década
passada - isto apesar de, ontem, o primeiro-ministro britânico, David Cameron,
ter afirmado na Câmara dos Comuns que "não estamos em 2003", negando
que a coligação internacional esteja a enfrentar um "fantasma",
durante o debate antes da aprovação do envolvimento britânico que Cameron
admitiu poder estender-se à Síria.
De
acordo com o "New York Times" (NYT) e o canal saudita Al-Arabiya, 19
dos 20 actuais dirigentes de topo do Estado Islâmico (EI) são iraquianos e a
maioria passou pela antiga academia militar do regime de Saddam Hussein. São,
em boa parte dos casos, ex-oficiais seculares que aderiram ao radicalismo
religioso após a invasão norte-americana de 2003, e sobretudo depois de duas
decisões-chave do governo provisório de Paul Bremer: a proibição do Partido
Baas, predominantemente sunita, e a dissolução das forças armada iraquianas.
Para o grupo radical, estes antigos elementos da ditadura trouxeram disciplina
e a experiência de décadas de guerra contra iranianos, curdos, kuwaitis e
norte-americanos.
"O
EI é, com efeito, um híbrido de um grupo terrorista e um exército",
escreve o NYT. O grupo alia a estratégia militar convencional ao terror das
execuções em massa de combatentes inimigos e do massacre de populações civis,
que serve para enviar uma mensagem de sangue aos rivais e para atrair
voluntários radicais - atracção essa que, segundo admitiu o responsável
americano pela luta antiterrorismo, Gilles de Kerchove, à BBC, já levou mais de
três mil europeus a juntarem-se ao grupo extremista.
CAMARADAS
DE ARMAS E DE PRISÃO
Os nomes da cúpula terrorista foram revelados nos
últimos dias. Juntos, formam uma espécie de governo militar de um Estado não
reconhecido, composto por "ministros" e "governadores".
Para além do autoproclamado califa Abu Bakr al- -Baghdadi (nome de guerra do
iraquiano Awwad al-Badri), o Estado Islâmico conta com, pelo menos, dois
antigos tenentes-coronéis de Saddam - Abu Muslim al-Turki (Fadel al-Hiyali),
braço-direito do líder, e Abu Mohannad (Adnan Latif Hamid al-Sweidawi),
"governador" da província ocupada de Anbar, oeste do Iraque - e um
general - Abu Abdurrahman al-Bilawi (Adnan Ismail Nejm), comandante das
operações militares.
Confirmando
alguns nomes avançados pelo NYT e revelando outros, a investigação da
Al-Arabiya indica outros elementos do executivo extremista: Abu al--Hareth
(Bashar Ismail al-Jerjer), chefe do conselho militar; Abu al-Qasem (Abdullah
Ahmad al-Mashhadani), responsável pelo acolhimento e integração dos jihadistas
estrangeiros recém-chegados; Abu Salah (Mowafaq Mustafa al--Karmoush), o
"ministro das Finanças"; ou Abu Mohammad (Bashar Ismail al-
-Hamadani), o chefe dos "serviços prisionais", entre outros.
Há
apenas um sírio na cúpula do EI. Trata-se de Abu Mohammad al-Adnani (Taha Sobhy
Falaha), o responsável pela guerra de propaganda que tem mediatizado o Estado
Islâmico através da divulgação de vídeos de decapitações, crucificações e
outras atrocidades. Os restantes são iraquianos e, para além da experiência
militar, os mais próximos de Al-Baghdadi têm em comum a passagem por Camp
Bucca, uma antiga prisão do exército norte-americano em Umm Qasr, na fronteira
iraquiana com o Kuwait. Tão implacáveis quanto sofisticados: "Não
sobreviveram até agora sendo incompetentes", comentou um oficial norte-
-americano, sob anonimato, ao NYT.
Ahmed
al-Dulaimi, o legítimo governador da província de Anbar, contava em Agosto ao
jornal nova-iorquino que conheceu vários dos actuais líderes do EI na antiga
academia militar do regime de Saddam e que foi instrutor de um deles, Adnan
Ismail Nejm, no início dos anos 90. Este, recorda, era um homem de uma família
"simples, de elevados padrões". Nejm, tal como os seus irmãos,
tornou--se jihadista após a invasão norte-americana e o colapso do exército
iraquiano. "Todos se tornaram religiosos depois de 2003", afirma
Al-Dulaimi.
Para
além da experiência militar, o EI beneficia das extensas redes de contactos
destes antigos homens do regime: chefes tribais, dirigentes corporativos e
altos quadros do Baas (o antigo partido único) na clandestinidade que, por sua
vez, dominam um número imenso de homens prontos a lutar nas frentes política,
económica e social.
A
VELHA RAPOSA
Izzat Ibrahim al-Douri. O nome é olvidável, mas a sua imagem
é facilmente reconhecível. Magro, pálido e de bigode ruivo, era o número dois
de Saddam, o marechal-de-campo das forças iraquianas e o enviado pessoal do
ditador nas derradeiras tentativas diplomáticas para evitar a guerra em 2003.
Companheiro de armas de Saddam no golpe militar que conduziu o Baas ao poder, é
também o único alto dirigente do regime que escapou à captura ou à morte. No
baralho de cartas dos homens mais procurados distribuído pela administração
militar ocupante norte-americana, Al-Douri era o rei de paus.
Sobrevivendo
como um fantasma, tanto que tinha sido dado como morto por diversas vezes,
reapareceu há menos de um ano num vídeo a apelar à união dos saudosistas de
Saddam e dos islamistas radicais contra o então governo do xiita Nouri
al-Maliki. E o apelo parece ter tido eco entre a minoria sunita, a começar pelo
próprio Al-Douri. Lidera um movimento armado tão exótico como este árabe de tez
céltica - o Exército da Ordem Naqshbandi. Trata-se de uma guerrilha sufista
(corrente mística do islão, tradicionalmente pacifista e tolerante)
historicamente aliada ao Baas (fortemente secular) e agora circunstancialmente
coligada ao EI (que considera o sufismo uma seita herética). Alinhamento impossível?
Não, pois partilham a base de apoio sunita.
Sem
merecer a mesma atenção mediática procurada pelo EI, Al-Douri foi um dos
protagonistas da tomada de Mossul, em Junho. O seu movimento está agora encarregue de
grande parte da administração civil da cidade de mais de um milhão de
habitantes.
Os
Naqshbandi, que enquanto comunidade religiosa contam séculos de história,
militarizaram-se definitivamente em 2009 pela mão de Al-Douri. Já na altura, em
declarações à rádio pública norte-americana NPR, um dirigente do Partido
Constitucional Iraquiano, uma pequena formação moderada, alertava para a
possibilidade de este grupo atrair dissidentes da Al-Qaeda. Cinco anos depois,
é evidente a cooperação entre o EI, que nasce precisamente de uma ruptura de
Al-Baghdadi com a Al-Qaeda fundada por Osama Bin Laden, e a guerrilha mística
do nacionalista iraquiano.
Contudo,
a aliança é frágil. As atrocidades cometidas pelo EI contra os cristãos
iraquianos, outra minoria próxima do antigo regime de Saddam, são motivo de
grande tensão entre os saudosistas e os terroristas. Em Julho circulou uma
suposta declaração de guerra dos Naqshbandi a Al-Baghdadi. Em Washington há
quem veja aqui uma oportunidade para uma tentativa de diálogo com Al-Douri. Em
teoria, o entendimento é impossível; na prática, é o Médio Oriente.
Por
outro lado, a actuação do grupo terrorista continua a receber condenações do
mundo islâmico. Ontem, centenas de muçulmanos franceses concentraram- -se em
Paris, respondendo ao apelo de líderes muçulmanos, numa condenação à
decapitação de Hervé Gourdel, um guia de montanha de 55 anos assassinado na
Argélia por um grupo que diz ter ligações ao Estado Islâmico. ""Nós,
muçulmanos de França, dizemos 'fim à barbárie'. Esta concentração é a expressão
forte e vibrante do nosso desejo de unidade nacional e da nossa vontade
inabalável de vivermos juntos", disse Dalil Boubakeur, líder do Conselho
Francês do Culto Muçulmano, que representa cerca de cinco milhões de
muçulmanos. Depois do assassinato de Hervé Gourdel, François Hollande convocou
o conselho de defesa francês para garantir que o país vai "continuar com
as suas acções para debilitar o EI" no Iraque, mas que podem alargar-se
também à Síria, garantindo que as medidas de segurança em locais públicos e nos
transportes vão ser reforçadas, para prevenir tentativas de atentados
terroristas.