domingo, 13 de agosto de 2023

Portugal | QUANDO ROUBARAM OUTRA VEZ A VOZ AO POVO…

«A política, na sua ‘dignidade, utilidade e fecundidade’ não pode ser asilo de incapazes (…) A política é para os políticos» - Dito por Gonçalves Rapazote, deputado da União Nacional e ministro do Interior do regime fascista, com responsabilidade pela PIDE. Discurso de 1965

José Goulão | AbrilAbril | opinião

Novembro pariu um monstro: a classe política.

A «classe política», como ela própria se define com uma presunção assente em vocação inquestionável, direito natural, pergaminhos herdados de mil e uma linhagens sagradas, imaculados dotes democráticos – e a prosaica ganância de poder, deve acrescentar-se – começou a ganhar a forma que hoje ostenta em Portugal a partir do momento em que foi dada a primeira grande machadada na dinâmica popular criada pela Revolução de 25 de Abril de 1974.

O 25 de Abril e o derrube do fascismo não resultaram da acção de uma qualquer classe política. Foram obra do Movimento das Forças Armadas e da mobilização imediata, espontânea e fulgurante do povo, precisamente para pôr termo aos desmandos de uma classe política, a salazarista, que tratou o país e as suas gentes como coisas próprias e sem prestar contas a ninguém.

As transformações por que passou a sociedade portuguesa durante os meses seguintes ao Movimento dos Capitães também não precisaram de qualquer classe política. A iniciativa popular e as linhas programáticas definidas pelos militares do Movimento das Forças Armadas traçaram caminhos, muitos deles inovadores, para estabelecer uma democracia de todos e para todos na qual a vontade do povo nunca deixasse de contar e de estar presente. Abriam-se as portas de uma democracia coerente com a sua definição: o poder do povo.

O período em que a participação popular determinou o essencial das decisões políticas e económicas dispensou, portanto, qualquer mecanismo de governação que se aparentasse com uma «classe política». Quando esta ressurgiu como o único centro de poder no qual o povo se limita a delegar, sem depois ter mais qualquer intervenção ou controlo no desenvolvimento e desfecho do processo de decisão, a democracia encontrou uma barreira tanto mais autoritária quanto mais fortes forem a luta e as reivindicações populares. A classe política, como demonstra a história dos seus comportamentos, afunila a democracia, põe-na «a salvo» da vontade do povo, acabando rotineiramente por asfixiá-la. Fecha as portas à genuína democracia.

A liberdade reencontrada graças à Revolução de Abril foi o instrumento essencial da mudança política que associou o pluralismo dos partidos à componente militar libertadora e à criatividade popular, manifestando-se esta através de uma teia de associações de base vocacionadas para intervirem, a vários níveis, na estruturação do novo poder, na recriação do Estado, na transparência das empresas e nas tomadas de decisão. Porque a democracia real não se consuma sem participação e intervenção popular. A democracia tem de ser, naturalmente, participativa. E participar, para que não haja equívocos, não é apenas votar de vez em quando.

Uma particularidade notável dessa fase foi o facto de os partidos políticos recém-criados – e outros que não tinham então mais de um ano de vida – sentirem ainda necessidade de reflectir as vontades dos seus militantes e apoiantes, vendo-se assim obrigados a associar a própria sobrevivência e a conquista de espaço político-eleitoral à genuína auscultação das bases. O impacto social do 25 de Abril fez com que os recém-criados partidos tivessem uma componente popular significativa – ainda que a contragosto dos seus fundadores e dirigentes, que preferiam massas eleitorais sossegadas, acriticamente seguidoras e obedientes, de preferência pouco ou nada esclarecidas.

Não era ainda chegado o tempo, que não demorou, em que os aparelhos dos novos partidos passaram a decidir tudo em confraria restrita, marginalizando a base militante, até extingui-la. A transformação gradual para alcançar a «estabilização» funcional dos mecanismos de decisão de cada um deles nem sempre foi e é pacífica, naturalmente, porque o número de cargos públicos, privados e partidários é sempre menor do que o número de candidatos às mordomias – e quase nunca chega para satisfazer a gula das clientelas.

Na sequência do 25 de Abril, em suma, desenhava-se uma democracia em que os partidos seriam uma parte essencial da estrutura de decisão, mas não os donos absolutos do poder. No entanto, a componente vingativa e revanchista que abocanhou o golpe de 25 de Novembro de 1975 cortou cerce essa perspectiva, apesar dos apelos à moderação lançados por alguns militares lúcidos. Anunciava-se já o embrião de uma nova classe política.

Portugal | OLHA QUE DOIS. UM DESCEU À TUMBA, OUTRO ESTÁ DE FÉRIAS À DIREITA

'Mocidade à Portuguesa', cartoon de Vasco Gargalo d’prés João Abel Manta, Salazar e André Ventura, 2020, Portugal. 

A 'parada' dos EUA expõe totalmente a natureza desprezível e humilde de Lai

No sábado, Lai Ching-te, que mais uma vez pregou o truque de uma "parada" nos Estados Unidos, parecia um pouco sorrateiro desta vez, em claro contraste com sua atitude arrogante anterior em questões através do Estreito de Taiwan. No entanto, isso não significa que Lai se tornou discreto após a auto-reflexão, mas sim uma medida temporária forçada pela dissuasão do continente chinês e restrições estritas dos EUA. A partir disso, podemos ver o papel desprezível que Lai desempenha nas questões através do Estreito e sua posição humilde.

Global Times | editorial | # Traduzido em português do Brasil

Lai é um obstinado defensor da "independência de Taiwan". Ele se admitiu como um "trabalhador pragmático da independência de Taiwan", o que é mais perigoso do que um "trabalhador teórico da independência de Taiwan". Ele ganhou o vergonhoso título de "filho de ouro da independência de Taiwan" na ilha de Taiwan. Para os chineses ao redor do mundo, Lai é um traidor que esqueceu suas raízes. Para os EUA, que repetidamente expressaram publicamente sua oposição à "independência de Taiwan", Lai, que defende abertamente a "independência de Taiwan", também é um "criador de problemas". Os EUA estão preocupados em ser implicados por ele e sua própria grande estratégia ser interrompida, então tanto o utiliza quanto o controla. Para Lai, que está determinado a "confiar nos EUA para buscar a independência", "confiar nos EUA" é um meio, e "buscar a independência" é o objetivo. Mas agora, parece que não se pode confiar nos EUA e "buscar a independência" é um beco sem saída. Não importa o quanto Lai pule, seu destino já foi determinado.

Tsai e Lai atribuíram grande importância para fazer "escalas" nos EUA, investindo muito esforço e recursos nisso, como se os EUA dando-lhes uma boa cara valesse o incontável dinheiro suado dos moradores da ilha. Essencialmente, qualquer forma de intercâmbio oficial entre os EUA e a ilha de Taiwan viola o princípio Uma China; cada "parada" dos EUA é um toque na linha vermelha e uma provocação a todos os compatriotas de ambos os lados do Estreito de Taiwan que estão comprometidos com a reunificação pacífica. A frequência e a gravidade das "paradas" dos EUA estão acumulando tensão para o "perigo de guerra" de Taiwan. Agora, o Partido Democrático Progressista e as forças externas gostam de falar sobre "paz e estabilidade no Estreito de Taiwan", mas o que eles estão fazendo é colocar em risco a paz e a estabilidade nos estreitos.

A industrialização da Índia será um processo longo e caótico


Nos últimos anos, algumas empresas americanas e europeias, como a Apple, investiram em fábricas na Índia. Isso deu à mídia ocidental a oportunidade de comemorar o abandono da manufatura chinesa. No entanto, quanto tempo durará esta celebração? 

Gangue Ding* | Global Times | # Traduzido em português do Brasil

Leia esta história relatada pela Reuters em 10 de agosto: Mais de 3.000 muçulmanos pobres fugiram de um centro comercial nos arredores de Nova Délhi neste mês, temendo por suas vidas após confrontos hindu-muçulmanos e ataques esporádicos contra eles, disseram moradores, policiais e um grupo comunitário.

Esses ataques menores podem parecer comparativamente insignificantes quando se considera os confrontos recentes contra as minorias no Nordeste e em outros lugares do país. No entanto, esses incidentes ocorreram no novo centro urbano de Gurugram - onde 250 empresas da Fortune 500 têm escritórios. É mais um alerta para as empresas que estão tentando investir na Índia sobre o conflito de crenças religiosas.

Ao escolher a Índia como uma "roda sobressalente" para a fabricação na China, as empresas ocidentais não ignoram a questão do conflito religioso na Índia, que é a questão mais crítica que afeta o futuro da fabricação na Índia. Eles escolheram a Índia porque não tinham outra escolha e tiveram que se preparar para a estratégia de separação da China perseguida por Washington e alguns de seus aliados ocidentais. Isso é uma compulsão.

Outro tipo de compulsão acaba de começar. Esses investidores foram forçados a se envolver em um jogo distante com a tradição, cultura e religião indianas. O investimento estrangeiro na Índia, incluindo o capital chinês, confronta-se com um “corpo cultural” que se mantém inalterado há milénios.

AUNG SAN SUU KYI - Birmânia (Mianmar)

David García Vivancos, Espanha | Cartoon Movement

Aung San Suu Kyi recebe um "perdão parcial" da junta militar de Mianmar, o que ainda significa uma sentença de 27 anos.

PARA REVERTER A IMPOTÊNCIA POLÍTICA

Pesquisadora italiana disseca reflexos de um divórcio indesejável. Partidos afastaram-se dos movimentos que lutam por transformações sociais. E estes não percebem que, sem mediações, não converterão em políticas reais os seus desejos

Nadia Urbinati entrevistada por Mariano Schuster para Nueva Sociedad | em Outras Palavras | Tradução: Maurício Ayer | # Publicado em português do Brasil

Como e por que “os poucos” se divorciaram de suas responsabilidades? De que forma aqueles que detêm o poder econômico e político se desresponsabilizaram pelo corpo social? E de que forma “os muitos” encaram essa situação? Essas questões são abordadas em detalhes pela cientista política italiana Nadia Urbinati em seu livro Pocos contra muchos [Poucos contra muitos], publicado recentemente em espanhol pela Katz Editores. Em seu ensaio, Urbinati mostra por que os novos surtos sociais parecem fadados ao fracasso e como uma democracia minimalista – nascida das ruínas da social-democracia que dava sustentação ao Estado de Bem-Estar Social – produziu uma liquefação das estruturas partidárias clássicas. Urbinati também mostra o casamento entre neoliberalismo e populismo (que ela define como algo mais do que retórica e ideologia). A sua obra constitui um contributo para repensar a importância da organização partidária e da mediação institucional na tradição da esquerda democrática e reformista.

A publicação em espanhol do livro de Urbinati conecta-se com o desenvolvimento de numerosos movimentos de protesto que, atualmente na América Latina, não conseguem traduzir suas demandas na arena institucional. Professora de teoria política na Universidade de Columbia, especialista em pensamento político moderno e tradições democráticas e antidemocráticas, Urbinati também foi co-presidente do Seminário de Pensamento Político e Social da Universidade de Columbia e fundadora da Oficina de Política, Religião e Direitos Humanos do Departamento de Ciência Política da mesma universidade. Foi colaboradora de jornais L’Unità, Il Fatto Quotidiano e La Repubblica. Atualmente colabora com a revista Left e com o jornal Domani. Em 2008, o presidente italiano Giorgio Napolitano a nomeou Comandante da Ordem do Mérito da República Italiana “por sua contribuição ao estudo da democracia”. Ela também é autora de vários livros, incluindo Yo: el pueblo (Grano de Sal, México, 2021), La democracia representativa (Prometeo, Buenos Aires, 2017), La democracia desfigurada (Prometeo, Buenos Aires, 2014), La mutazione antiegualitaria (Laterza, Roma, 2013) e Liberi e uguali (Laterza, Roma, 2011).

Nesta entrevista, Urbinati analisa as novas dimensões do confronto entre “os poucos” e “os muitos”, investiga os novos movimentos de protesto e explica por que eles são dirigidos não apenas contra aqueles que concentram o poder econômico, mas também contra aqueles que detêm poder político.

EUA | 'A maior força de combate da história da humanidade' -- referiu Lloyd Austin

Chame isso de  novo isolacionismo americano, escreve William J. Astore. Só que desta vez o país - embora orgulhoso de suas  forças armadas "excepcionais"  - está isolado dos custos angustiantes e horríveis da própria guerra.

Lutando  Guerras Perpétuas  Invisíveis

William J. Astore, em Tom Dispatch | Consortium News | # Traduzido em português do Brasil

Em sua mensagem às tropas antes do fim de semana de 4 de julho, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, fez muitos elogios. “Temos a maior força de combate da história da humanidade”, ele twittou, conectando essa afirmação ao fato de os EUA terem patriotas de todas as cores, credos e origens “que bravamente se voluntariam para defender nosso país e nossos valores”.

Como um tenente-coronel aposentado da Força Aérea de origem da classe trabalhadora que se ofereceu para servir há mais de quatro décadas, quem sou eu para discutir com Austin? Eu não deveria apenas me deliciar com seus elogios às tropas de hoje, refletindo sobre meu próprio serviço honroso perto do fim do que agora deve ser considerado a Primeira Guerra Fria?

No entanto, confesso ter dúvidas. Eu já ouvi isso antes. O hype. A hipérbole. Ainda me lembro de como, logo após os ataques de 11 de setembro, o presidente George W. Bush  se gabou  de que este país tinha “ a maior força  de libertação humana que o mundo já conheceu”. Também me lembro de como, em uma palestra dada às tropas americanas no Afeganistão em 2010, o presidente Barack Obama  os declarou  “a melhor força de combate que o mundo já conheceu”.

E, no entanto, 15 anos atrás no  TomDispatch , eu já estava  me perguntando  quando os americanos ficaram tão orgulhosos e insistentes em declarar que nossas forças armadas eram as melhores do mundo, uma força incomparável, e o que isso significava para uma república que já havia visto grandes exércitos permanentes e guerra constante como  anátemas para a liberdade .

Em retrospecto, a resposta é muito direta: precisamos  de algo  para nos gabar, não é? Na antiga “ nação excepcional ”, o que mais há para louvar aos céus ou considerar nosso orgulho e alegria hoje em dia, exceto  nossos heróis ?

Afinal, este país não pode mais se gabar de ter nada parecido com os melhores resultados educacionais do mundo, ou sistema de saúde, ou a infraestrutura mais avançada e segura, ou a melhor política democrática, então é melhor que possamos nos gabar de ter “o maior força de combate” de todos os tempos.

Deixando essa ostentação de lado, os americanos certamente poderiam se gabar de uma coisa que seu país tem sem comparação: as  forças armadas mais caras  do mundo e possivelmente de todas. Nenhum país sequer chega perto do compromisso dos EUA de fundos para guerras, armas (incluindo as nucleares no Departamento de Energia) e domínio global. De fato, o orçamento do Pentágono para “defesa” em 2023 excede o dos  próximos 10 países  (principalmente aliados!) juntos.

E de tudo isso, parece-me, surgem duas questões: os americanos estão realmente recebendo o que pagaram tão caro - o melhor, o melhor e o mais excepcional militar de todos os tempos? E mesmo se formos, uma democracia autoproclamada realmente deveria querer tal coisa?

A resposta para ambas as perguntas é, obviamente, não. Afinal de contas, os Estados Unidos não vencem uma guerra de forma convincente desde 1945. Se este país continua perdendo guerras rotineiramente e frequentemente de forma catastrófica, como aconteceu em lugares como Vietnã, Afeganistão e Iraque, como podemos dizer honestamente que possuímos a maior força de combate do mundo? E se, no entanto, persistimos em tal ostentação, isso não ecoa a retórica dos impérios militaristas do passado? (Lembra quando costumávamos pensar que apenas ditadores desequilibrados como Adolf Hitler se gabavam de ter guerreiros incomparáveis ​​em uma busca megalomaníaca de dominação global?)

Na verdade, acredito que os Estados Unidos tenham as forças armadas mais excepcionais, mas não da maneira que seus incentivadores e líderes de torcida como Austin, Bush e Obama afirmaram. Como os militares dos EUA são verdadeiramente “excepcionais”? Deixe-me contar os caminhos.

O MODELO ALEMÃO PARA O CAPITALISMO EUROPEU ESTÁ ESGOTADO

No reinado de Angela Merkel, a integração europeia neoliberal serviu de apoio ao crescimento da Alemanha, impulsionado pelas exportações. Mas a guerra no continente e uma série de crises testaram os limites deste modelo, provocando cisões no governo de Olaf Scholz.

David Karas* | Setenta e Quatro

Quando os grandes jornais e revistas liberais, como o Economist, Der Spiegel, Politico ou Financial Times, se esforçam por enterrar o seu legado político, lamentando as suas "oportunidades perdidas", podemos levar um pouco a peito. Especialmente se o seu nome é Angela Merkel e se ainda te agarras à velha edição da Time quando a aclamava como "Chanceler do Mundo Livre".

O mandato de dezasseis anos de Merkel ao leme da Alemanha foi uma demonstração europeia de impassível resiliência neoliberal. O seu longo reinado aperfeiçoou a arte de encobrir um ciclo de desgraça aparentemente interminável que abrangeu o colapso financeiro global, a crise da dívida europeia, o referendo do Syriza, a crise dos refugiados de 2015, o Brexit, Donald Trump e a covid-19.

Como se fosse uma deixa, o drama político irrompeu assim que ela deixou o palco no final de 2021: Vladimir Putin invadiu a Ucrânia; o capitalismo alemão, liderado pelas exportações, bateu num muro; e o seu sistema político parece agora ingovernável. Em termos mais gerais, o consenso político europeu que outrora esteve por detrás da integração neoliberal do continente está hoje em ruínas.

Ano e meio depois do fim da era Merkel, o governo alemão, chefiado por Olaf Scholz, está de tal forma dividido que os ministros contradizem-se em praticamente todas as iniciativas políticas importantes. É a chamada coligação "semáforo", em referência às cores "vermelhas" do SPD (sociais-democratas), "amarelas" do FDP (democratas livres) e dos Verdes, que apoiam estratégias diferentes para gerir o legado de Merkel. Quer se trate de eliminar gradualmente os combustíveis fósseis dos motores de combustão ou dos sistemas de aquecimento doméstico, de reavivar ou enterrar a austeridade na Europa ou, previsivelmente, de como lidar com o conflito na Ucrânia, o governo parece não estar de acordo sobre nada.

Os democratas livres são, pelo menos, coerentes: o seu apego obstinado à austeridade fiscal e à política de concorrência ordoliberal torna-os inimigos naturais dos subsídios públicos usados para sustentar as agendas de descarbonização alemã e europeia. Estes dogmas estão mesmo a empurrar o partido do mercado livre para uma alianç com os lóbis dos combustíveis fósseis e com as revoltas populistas contra a descarbonização.

Se os compromissos dos Verdes com o lóbi da energia alienaram parte da sua base, o seu desrespeito pelos efeitos da transição nos alemães de classe trabalhadora também conseguiu alienar camadas mais amplas da população, preocupadas com o facto de poderem vir a pagar a fatura da descarbonização.

Quanto aos sociais-democratas, sob a liderança vacilante de Scholz, o partido manteve-se investido no status quo herdado de Merkel, oscilando esquizofrenicamente entre a necessidade de uma política industrial verde disruptiva para manter os sectores de exportação alemães competitivos e concessões à ortodoxia do rigor fiscal. Atualmente, o apoio de cada um destes três partidos fica atrás da Alternativa para a Alemanha, de extrema-direita, que tem cerca de 20% das intenções de voto a nível nacional.

Não se trata de um assunto simplesmente político-partidário, nem estritamente alemão: por detrás do espetáculo banal das querelas democráticas em Berlim esconde-se uma crise existencial, interligada entre o capitalismo alemão baseado na exportação e a União Europeia, que durante muito tempo funcionou como um recipiente para as preferências macroeconómicas alemãs.

Tal como a Alemanha trocou a ordem merkeliana pela anarquia scholziana, também a União Europeia está a enfrentar o colapso das ideias e das coligações políticas que sustentaram a fase neoliberal da integração europeia nos últimos 40 anos. Os dogmas políticos que encarnaram o neoliberalismo europeu (política de concorrência reduzida a "bem-estar do consumidor", austeridade fiscal, objetivos de inflação, desregulamentação e, mais fundamentalmente, uma crença religiosa na eficiência dos mercados na atribuição de recursos) foram todos postos em causa na última década. Enquanto os quadros ideológicos se desintegram, a coligação política entre o capital organizado, os governos nacionais e as instituições da UE, que durante muito tempo sustentou um modo despolitizado de integração europeia, também está a definhar.

As ramificações geoeconómicas da invasão russa da Ucrânia, a crise do modelo de capitalismo alemão baseado na exportação e na própria integração na UE formam, em conjunto, um arco europeu interligado para aquilo a que o neoconservador Robert Kagan e a equipa do Bungacast chamaram o "Fim do Fim da História": um ressurgimento espetacular de conflitos (geo)políticos e ideológicos depois de décadas de consenso neoliberal ancorado na hegemonia dos Estados Unidos.

A questão é saber se estes conflitos marcam o canto do cisne do neoliberalismo ou a escalada de violência necessária para o sustentar é uma questão polémica: em ambos os lados do espetro, o debate neoliberal-morte versus continuidade é redutor quando assume um sistema internamente coerente, que - ao contrário do gato de Schrödinger – está morto ou vivo. A realidade é que, no capitalismo, neoliberal ou não, vários subsistemas (institucionais, políticos, ideológicos) podem seguir (e seguem) diferentes trajetórias de mudança, provocando uma variedade de tensões e contradições.

A teoria francesa da regulação (TFR) propôs toda uma taxonomia das crises capitalistas que emergem das fricções entre um determinado sistema de acumulação capitalista e o modo de regulação que o sustenta. Resistindo à tentação de acrescentar ao florescente género de artigos de opinião que reciclam a mesma citação descomprometida de Antonio Gramsci sobre o "novo mundo que luta para nascer", um exercício mais produtivo para avaliar o estado atual do neoliberalismo europeu é identificar estas crises emergentes. É separar a mudança e a continuidade ao nível das instituições concretas, das configurações políticas e das ideologias que durante muito tempo estabilizaram o modelo alemão baseado na exportação no coração da UE.

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