Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Quando comecei a
minha coluna semanal no EXPRESSO, ainda Santana Lopes era primeiro-ministro e
Sócrates o queria ser, o meu primeiro texto tinha como título "A
coisa". Era sobre José Sócrates e o seu vazio ideológico e programático.
Uma acusação, à altura, mais do que justa. Ao contrário de outros
ex-primeiro-ministros, Sócrates fez-se ideologicamente no poder. Com várias
guinadas ao longo de seis anos. Não apenas guinadas tácticas, bastante comuns
em muitos políticos. Mas guinadas sinceras de quem estava a aprender o mundo
enquanto governava.
Durante seis anos
fiz-lhe oposição. E não me arrependo. Também o apoiei em várias medidas, como é
evidente. Mas, acima de tudo, tratei sempre com cuidado os casos menos
políticos em que o seu nome foi sendo envolvido. Na realidade, o mesmíssimo
cuidado que tenho com todos os casos que surgiram com pessoas deste governo:
não os deixo de tratar, exponho os factos conhecidos e retiro conclusões
políticas. Com Sócrates, nuns casos fiquei esclarecido, noutros mantenho dúvidas.
Numa análise a todas as acusações que lhe tinham sido feitas conclui, em
fevereiro de 2010: "No meio desta histeria, que torna o
debate político insuportável - é já quase sinal de cedência escrever sobre
qualquer outro assunto que não seja José Sócrates -, a falta de rigor e de
apego à verdade de que o primeiro-ministro é acusado parece ter tomado conta do
país inteiro. Interessa saber se José Sócrates fez o que se diz que ele fez.
Mas, se não levarem a mal, a verdade dos factos pode, de vez enquanto, ter voto
na matéria." Sobre esses casos, podem ler texto que aqui
refiro. Chega e sobra. Não é com eles que quero perder tempo.
É normal que se
investiguem primeiros-ministros e dificilmente me veem a comprar teses de
cabalas e campanhas negras. Mas ninguém negará que nunca, sobre um governante,
saíram tantas notícias de pequenos casos de forma tão insistente. Sobretudo não
me lembro de terem sobrevivido tanto tempo a qualquer esclarecimento, bom ou
mau. Compare-se o caso do Freeport - que durou anos - com o da Tecnoforma, que
passou desapercebido a quase todos os portugueses. Acho que posso dizer com
rigor, sem ter de tomar partido, que nunca um primeiro-ministro em Portugal foi
tão atacado como José Sócrates. Nada escapou: da sua vida intima ao património
da sua família, do seu percurso profissional e académico à forma como exerceu
os seus cargos políticos anteriores. Até escutas ao primeiro-ministro a oposição
de direita quis que o país ouvisse, coisa que nunca alguém se atreveu a propor
em qualquer outro caso. A verdade é esta: pequenos pormenores da vida de
Sócrates ainda hoje vendem mais jornais do que venderia a biografia mais intima
de Passos Coelho.
Porque gera tantos
ódios José Sócrates? Os que o odeiam responderão com rapidez que faliu o país.
Nessa não me apanham mesmo. Até porque a "narrativa" tem objetivos
políticos e ideológicos que ultrapassam em muito a figura do
ex-primeiro-ministro, o que revela até que ponto podem ser estúpidos os ódios
pessoais de uma esquerda que, por mero oportunismo de momento, comprou uma tese
que agora justifica todo o programa ideológico deste governo.
É pura e
simplesmente falso que Sócrates tenha falido o país. E isto não é matéria de
opinião. Sócrates faliu o país da mesma forma que todos os que eram
primeiros-ministros entre 2008 e 2010 em países periféricos europeus o fizeram.
Até 2008 todos os indicadores financeiros do Estado, a começar pela dívida
pública, e todos os indicadores da economia seguiam a trajetória negativa que
vinha desde a entrada de Portugal no euro (ou até desde o início da
convergência com o marco, que lhe antecedeu), verdadeiro desastre económico que
ajuda a explicar uma parte não negligenciável da situação em que estamos. A
narrativa que esta crise se deve ao governo anterior, além de esbarrar com
todos os factos (o truque tem sido o de juntar o aumento da dívida anterior e
posterior a 2008 e assim esconder a verdadeira natureza dessa dívida), esbarra
com a evidência do que se passa nos países que estavam em situação semelhante à
nossa e não tiveram Sócrates como primeiro-ministro. Posso escrever tudo isto
com uma enorme serenidade: fui opositor de Sócrates e sempre disse o que estou
a dizer agora.
Também nada de
fundamental, até 2008, distinguia, para o mal e para o bem, os governos de
Sócrates dos anteriores. O que era diferente correspondia às pequenas
diferenças entre os governos do PS e do PSD, que já poderiam ter sido
detectadas em Guterres. O que era igual, conhecemos bem e podemos identificar
em Barroso, Guterres ou Cavaco. Em todos eles houve decisões financeiras
desastrosas - das PPP à integração de fundos de pensões privados na CGA, da
venda ruinosa de ativos a maus investimentos públicos. Em todos eles houve
interesses, tráficos de influências, mentiras, medidas demagógicas e
eleitoralistas. Sócrates foi apenas mais um.
Há uma parte deste
ódio que surgiu à posteriori (sim, vale a pena recordar que Sócrates venceu
duas vezes as eleições). Perante a crise, o país precisava de encontrar um
vilão da casa. Como escrevi, irritando até muitas pessoas de esquerda, em
Outubro de 2010, ainda Sócrates era primeiro-ministro: "São sempre tão
simples os dilemas nacionais: encontra-se um vilão, espera-se um salvador.
Sócrates foi um péssimo primeiro-ministro? Seria o último a negá-lo. Mas, com
estas opções europeias e a arquitetura do euro, um excelente governo apenas
teria conseguido que estivéssemos um pouco menos mal. Só que discutir opções económicas
e políticas dá demasiado trabalho. Discutir a Europa, que é 'lá fora', é
enfadonho. É mais fácil reduzir a coisa a uma pessoa. Seria excelente que tudo
se resumisse à inegável incompetência de Sócrates. Resolvia-se já amanhã."
O único acerto a fazer é que, perante este governo, a avaliação de
incompetências passou para um outro patamar.
Sócrates acabou por
servir, nesta crise, para muitas cortinas de fumo. A de quem quis esconder as
suas próprias responsabilidades passadas. A de quem queria impor uma agenda
ideológica radical e tinha de vender uma "narrativa" que resumia a
história portuguesa aos últimos 9 anos e esta crise a um debate sobre a dívida
pública. E a de quem, sendo comentador, economista ou jornalista, e tendo
fortes limitações na sua bagagem política, foi incapaz de compreender a
complexidade desta crise e optou por uma linha um pouco mais básica: o tiro ao
Sócrates. Não lhes retiro o direito ao asco. Eu tenho o mesmo pelo atual
primeiro-ministro. Mas não faço confusões e já o escrevi várias vezes: Passos
sai, Seguro entra e, se não houver um enfrentamento com a troika, fica tudo
exatamente na mesma. Porque o problema não é exclusivamente português e,
mantendo o país no atual quadro europeu, depende muito pouco do nosso governo.
Há outra explicação
para o ódio que Sócrates provoca. As novas gerações da direita portuguesa são,
depois de décadas na defensiva, de uma agressividade que Portugal ainda não
conhecia. A que levou à decapitação da direção de Ferro Rodrigues, através do
submundo da investigação criminal e do submundo do jornalismo, representado,
desde sempre, pelo jornal "Correio da Manhã". A mesma que tratou de
criar um cerco de suspeição que transformou, durante seis anos, a política
nacional num debate quase exclusivamente em torno do carácter do
primeiro-ministro. Um primeiro-ministro que, como tantos políticos em Portugal,
se prestou facilmente a isso. Um cerco que fez com que poucos se dessem ao
trabalho de perceber o que estava a acontecer na Europa desde 2008 e como isso
viria a ser trágico para nós. Andávamos entretidos a discutir escutas e casos.
Foi esta direita
que, irritada pela iminência de perder prematuramente o poder que tinha
reconquistado há apenas três anos, espalhou o boato sobre a suposta
homossexualidade de Sócrates. Pedro Santana Lopes veio, em reação à entrevista
de Sócrates ao EXPRESSO, dizer que essa campanha vinha do PS. Tenho boa memória
e recordo-me das indiretas no debate entre Santana e Sócrates, na SIC.
Lembro-me também de Santana ter passado uma campanha a insistir para que
Sócrates tomasse posição sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, quando
isso ainda nem era debate e sabendo-se o boato que corria. Lembro-me ainda de,
num inédito mas muito conveniente comício de mulheres do PSD, em Famalicão, em
plena campanha, uma ter dito isto: "Ele [Santana] ainda é do tempo em que
os homens escolhiam as mulheres para suas companheiras... bem hajam os homens
que amam as mulheres!" E de, entusiasmado, Santana Lopes ter rematado, em
declarações aos jornalistas: "O outro candidato [Sócrates] tem outros
colos, estes colos sabem bem". Todos sabem como Santana importou, através
de um publicitário brasileiro, uma determinada forma de fazer política.
Felizmente, como se viu pelo seu resultado, não funcionou.
Goste-se ou não do
estilo, Sócrates é, muitas vezes, de uma violência verbal inabitual em
Portugal. Ele é, como se definiu na entrevista a Clara Ferreira Alves,
anguloso. E voltou a prová-lo, nesta conversa, de forma eloquente. Num País
habituado a políticos redondos isso choca. Ainda mais quando se trata de um
líder do centro-esquerda, por tradição cerimoniosa e pouco dotada de coragem
política. Sócrates, pelo contrário, tem, e isso nunca alguém lhe negou, uma
extraordinária capacidade de confronto e combate. O estilo público de Guterres,
Sampaio, Ferro Rodrigues e Seguro (muito diferentes entre si em tudo o resto) é
aquele com o qual a direita gosta de se confrontar. A aspereza de Sócrates
deixa-a possuída, irritada, quase invejosa. A ele não podiam, como fizeram com
Guterres, acusar de indecisão e excesso de diálogo. Sócrates acertou na mouche:
ele é o líder que a direita gostaria de ter.
Também a maioria
dos portugueses tende a gostar de um estilo autoritário, mas sonso, que nunca
diz claramente ao que vem, de que Cavaco Silva é talvez o exemplo mais acabado.
Diz-se, ou costumava dizer-se, que Cavaco é previsível. Mas ele não é
previsível por ser fiel às suas convicções, que nós desconhecemos quais sejam.
É previsível porque quer sempre corresponder ao arquétipo do político nacional:
moderado, ajuizado, prudente, asceta e severo. Apesar de, na realidade, no seu
percurso cívico e político pouco ou nada corresponder a estas características.
Pelo contrário, Sócrates corresponde, na sua imagem pública, ao oposto de tudo
isto.
Não é o primeiro
político português a fugir ao modelo do líder austero e sacrificado, que
Salazar impôs ao imaginário nacional e que Cunhal, Eanes, Cavaco ou Louçã
acabaram por, mesmo que involuntariamente, reproduzir. Já Soares fugira desse estilo
e se apresentara emotivo, imprevisível e bon vivant. O que mudou desde então?
Tudo. A exposição pública, o escrutínio da imprensa, o poder de disseminação do
boato. Ainda assim, arrisco-me a dizer que se há um político português vivo que
consegue arrebatar mais paixões, sejam de amor ou de ódio, do que José Sócrates
ele é Mário Soares. À sua direita e à sua esquerda.
Mas há uma enorme
diferença entre Soares e Sócrates: o estatuto. Que resulta da idade, do
currículo político e do tempo histórico em que foram relevantes. E, para tentar
resumir, é esta diferença que ainda faz Sócrates correr. Acho que ele não se
importa nada de ser odiado pela direita e por parte da esquerda. O que o
incomoda é isso não corresponder a um papel histórico que, mal ou bem, lhe seja
reconhecido. É não ter atingido um estatuto em que ser odiado por muitos não só
é normal como recomendável. No fundo, move-se pelo mesmo que todos os políticos
que ambicionaram mais do que uma pequena carreira: o sonho da imortalidade. E
essa é, entre outras, uma das razões porque não compro o retrato do pequeno
bandido que enriqueceu com uns dinheiros dum outlet em Alcochete. Parece-me que
a sua ambição é muito maior. Por isso, façamos-lhe justiça de acreditar que
também serão maiores e, quem sabe, mais nobres os seus pecados.