Oscar
Martinez e Jimmy Alvarado - Agência Pública de Jornalismo – Outras Palavras
Quase
60 mil crianças da América Central cruzaram desacompanhadas a fronteira dos EUA
em 8 meses, causando comoção mundial
O
Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos deteve 56.557
crianças desacompanhadas, a maioria da América Central, cruzando a fronteira
entre os Estados Unidos e o México entre outubro de 2013 e junho deste ano,
quando o presidente Obama reconheceu a crise e pediu ao Congresso a aprovação
de um fundo de emergência de 3,7 bilhões de dólares para amenizá-la.
Na quarta-feira passada (16/7) o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, lançou uma mensagem de alerta à Conferência Internacional sobre Migração, Infância e Família, em Tegucigalpa, Honduras, que reuniu representantes de El Salvador, Guatemala, México, Estados Unidos e integrantes da OEA (Organização de Estados Americanos), pedindo aos governos dos países de trânsito ou destino que protejam os direitos humanos das crianças, algumas com menos de sete anos.
Na quarta-feira passada (16/7) o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, lançou uma mensagem de alerta à Conferência Internacional sobre Migração, Infância e Família, em Tegucigalpa, Honduras, que reuniu representantes de El Salvador, Guatemala, México, Estados Unidos e integrantes da OEA (Organização de Estados Americanos), pedindo aos governos dos países de trânsito ou destino que protejam os direitos humanos das crianças, algumas com menos de sete anos.
Entre
as explicações que vem sendo cogitadas para a migração crescente de menores
estão um alegado acirramento da violência na América Central e a existência de
leis americanas que facilitariam o asilo para menores de idade.
No momento, o Congresso americano estuda mudar a legislação para que os agentes da Guarda da Fronteira (U.S Border Patrol) possam interrogar as crianças e decidir se o medo que sentem de voltar a situações de violência merece “crédito”, suspendendo o direito de serem ouvidas por uma assistente social e por um juiz antes da decisão final.
No momento, o Congresso americano estuda mudar a legislação para que os agentes da Guarda da Fronteira (U.S Border Patrol) possam interrogar as crianças e decidir se o medo que sentem de voltar a situações de violência merece “crédito”, suspendendo o direito de serem ouvidas por uma assistente social e por um juiz antes da decisão final.
Nada
disso é verdade para os jornalistas do El Faro, site salvadorenho premiado por
investigações jornalísticas principalmente na área da segurança pública. De
coiotes a diplomatas o que se conta é mais um capítulo de uma velha história de
exploração, crime e imigração na América Central. Texto de Oscar Martinez com
colaboração na reportagem de Jimmy Alvarado.
“Eu
tenho vontade de rir quando a mídia fala em ‘crianças sozinhas’. Nenhuma vai
sozinha, todas são levadas pelos polleros, todas foram levadas. Se eu tivesse
nos Estados Unidos sem documentos como poderia dizer para o meu filho:
‘Venha!’. Nããoo, não é assim não. É assim: as pessoas querem os filhos perto
delas. E então? – diz o Senhor Coiote em sua casa no departamento de
Chalatenango, ao norte de El Salvador.
O
Senhor Coiote é coiote desde 1979. Gaba-se de ser um dos primeiros coiotes de
El Salvador. Na verdade, quando começou a “coiotar” isso nem era ilegal.
Inclusive ele chegou a publicar anúncios de “viagem segura para os Estados
Unidos” nos jornais, deixando o número de seu escritório em Cuscatancingo. É um
coiote, um pollero, que viveu as diferentes fases da migração, do exôdo dos que
fugiam da guerra civil (1980-1992) passando de Tijuana a Los Angeles em poucas
horas; até a construção do muro, na década de 1990; incluindo os últimos 14
anos em que os Zetas (um dos maiores cartéis de drogas no México) entraram no
negócio e a polícia da Fronteira ultrapassou a marca dos 18 mil agentes em serviço. O Senhor
Coiote já assistiu a milhões de salvadorenhos sem papéis partindo na marra, e
continua vendo a mesma cena. Agora, principalmente crianças sem papéis.
Essa
é quinta vez que converso com ele sob a única condição de não citar seu nome.
Há alguns dias eu lhe disse por telefone que não entendia o fenômeno que vem
ocupando as manchetes dos jornais e os noticiários de rádio e TV: o dos meninos
migrantes de Honduras, Guatemala e El Salvador – 52 mil centroamericanos que
entraram nos Estados Unidos sem visto nem companhia de adultos até junho de
2014. Uma média de 300 por dia.
O
Senhor Coiote, com seu jeito direto, deu uma risada pelo telefone e respondeu:
“Venha aqui e eu explico rapidinho”.
“Mas
o que aconteceu nos últimos meses? As leis não mudaram, por que agora?”,
pergunto, já em sua casa.
“Isso
é simples, em qualquer cidade dizem para as crianças: fulano conseguiu ir para
lá, assim e assado, sem pagar fiança. Joga-se essa isca, e disso se aproveitam
muitos polleros que estavam ganhando 7 mil dólares por cabeça. É um grande
negócio porque para levá-los até a fronteira do México com os Estados Unidos, a
Reynosa, por exemplo, gastam no total, incluindo a cota dos Zetas – porque os
Zetas cobram sua cota por pessoa, não importa se grande ou pequena, uns 2.000
dólares. Mais 500 dólares para quem os atravessa na fronteira, vão uns 2.500
dólares. Passam a criança para o outro lado, dão as instruções para que diga
que está sozinha, procurando sua mãe, seu pai. Eles têm que esquecer que vieram
com coiotes. Sempre tem alguém olhando para que a criança fale com a polícia,
nem nesse momento ela está realmente sozinha, sempre tem alguém vendo se vão
pegá-la. Aí está em mãos seguras. Assim que a polícia detém a criança, o coiote
informa à família dela: ‘Já está segura, nos braços da lei, aguarde’.
Imediatamente as autoridades se comunicam com a mãe, a criança leva nomes e
números de telefone”, explica o Coiote.
“E
baixaram os preços?”, pergunto. Ele responde: “Sim, tem gente que está cobrando
menos, porque agora já se generalizou, a família já sabe que é mais fácil, não
quer pagar 7 mil dólares. Ouvi dizer que alguns estão cobrando de 4 a 5 mil dólares. Quando
chegam ao México já resolveram a parada; uma vez nos Estados Unidos, basta
qualquer polícia deter as crianças e resolvido. Tenho alguns amigos que dizem
que os menores de idade são dinheiro seguro. E é assim mesmo. A melhor benção é
que eles sejam detidos por um policial, qualquer um.”
“
Os coiotes estão oferecendo o serviço ou são as pessoas que os procuram?”,
pergunto. O Senhor Coiote responde: “As duas coisas acontecem. Os coiotes se aproveitam.
E também, quando alguém vê os filhos da vizinha, pergunta: ‘Como você fez?’
Assim, assado. A outra manda buscar seu filho. Antes havia as fianças de 4 a 5 mil dólares e pagá-las
era um problema. É como se dissessem: vamos deixar liberada a fronteira, quem
sabe assim as pessoas vão embora a pé”.
A
“coiotagem” é um negócio imortal, em grande medida porque se alimenta de uma
necessidade humana essencial: a necessidade dos pais de estarem com seus
filhos. Foram escritas muitas manchetes sobre as milhares de crianças que
abandonaram seus países nesses meses. “A violência e as maras (gangues
centroamericanas) detonam o êxodo massivo de menores de idade”, manchetou em 7
de julho o jornal espanhol El País. O mesmo título foi repetido em diferentes
versões por dezenas de veículos. Alguns foram além, como a Fox News, que no
último dia 11 de julho disse que a Mara Salvatrucha está aproveitando a
imigração massiva para infiltrar membros nos Estados Unidos e recrutar crianças
em alguns centros de detenção da Guarda da Fronteira.
“O
que mudou para que nos últimos meses milhares de crianças da América Central
fujam da violência? Que reviravolta houve para que até os garotos das maras
façam planos de expansão aproveitando essa conjuntura? A resposta é: nada. Não
aconteceu nada novo ao menos aparentemente. O que tem acontecido, segundo o
senhor Coiote e também segundo Rubens Zamora, que até algumas semanas atrás
embaixador de El Salvador nos Estados Unidos, é que muitas coisas permaneceram
iguais.
Algumas
publicações têm especulado sobre “novas leis” que dariam liberdade às crianças
sem visto. Alguns veículos chegaram a mentir, dizendo que agora a legislação
permite que os menores de 18 anos que entram a Estados Unidos sem papéis, têm
direito de receber documentos para ficar. Mas isso é mentira.
A
legislação é a mesma. Há uma lei que obriga ao Departamento de Segurança
Nacional dos Estados Unidos – ao que pertence a Guarda da Fronteira – a
entregar qualquer criança sem papéis ao Departamento de Saúde en menos de 72
horas. A lei é conhecida por sua sigla TVPRA (em português Lei de
Reautorização de Proteção das Vítimas de Tráfico de Pessoas). Um menor que
tenha chegado aos Estados Unidos sozinho ou com um coiote é, segundo a lei, uma
vítima provável de tráfico de pessoas e por isso um juiz deve decidir pelo
asilo ou deportação. No caso dos adultos, ele comparece diante do juiz para
dizer se quer deportação voluntária ou uma segunda audiência com o juiz para
pedir asilo – algo que é concedido em raríssimos casos.
Uma criança centroamericana sem documentos que entrou no país sozinha ou com um coiote tem sempre direito a essa segunda audiêcia porque automaticamente é considerada uma possível candidata ao asilo – mas também raramente o consegue. Diferentemente dos adultos, porém, uma criança não pode ser mantida durante dias ou semanas nos quartos da Guarda da Fronteira, apelidados de “geladeiras” por sua cor e temperatura, por isso é encaminhada aos albergues especiais do Departamento de Saúde.
Uma criança centroamericana sem documentos que entrou no país sozinha ou com um coiote tem sempre direito a essa segunda audiêcia porque automaticamente é considerada uma possível candidata ao asilo – mas também raramente o consegue. Diferentemente dos adultos, porém, uma criança não pode ser mantida durante dias ou semanas nos quartos da Guarda da Fronteira, apelidados de “geladeiras” por sua cor e temperatura, por isso é encaminhada aos albergues especiais do Departamento de Saúde.
E
também não pode ficar semanas nesses albergues esperando que o juiz a chame
para a segunda audiência, onde será dada a sentença. Um adulto normalmente
passa esse tempo esperando em um centro de detenção para migrantes. Mais
importante: se a criança tiver um dos pais nos Estados Unidos, tem que ser
entregue a eles, tenham ou não permissão de permanência no país; e o
Departamento de Saúde não verifica o status migratório para entregar a criança,
basta comprovar que são seus pais.
É comum que entreguem as crianças a irmãos maiores de idade. A lei que obriga tudo isso no caso das crianças não é nova, existe desde 2008, e foi criada na administração de George W. Bush, e não na gestão de Obama que no entanto é quem enfrenta a chamada “crise da fuga das crianças”.
É comum que entreguem as crianças a irmãos maiores de idade. A lei que obriga tudo isso no caso das crianças não é nova, existe desde 2008, e foi criada na administração de George W. Bush, e não na gestão de Obama que no entanto é quem enfrenta a chamada “crise da fuga das crianças”.
Bem,
então se não há leis novas que atraiam as crianças, talvez seja porque El
Salvador, Honduras e Guatemala se tornaram países violentos nesses últimos
anos. Mas isso também é um argumento falso. Somos países violentos há anos, e
somos países muito violentos desde 2008, quando aquela lei foi criada. Na
verdade, se por exemplo as crianças de El Salvador estivessem indo embora só
por causa da violência, em 2009, milhares teriam partido.
En
2008, ano da criação da lei americana, foram assassinados em El Salvador 51,7
habitantes por 100 mil habitantes; em 2009, os números dispararam: 70,9 de cada
100 mil salvadorenhos. A taxa de homicídios rondou os 65 por 100 mil nos anos
seguintes, e caiu para 41,2 en 2012 e a 39,6 en 2013, em parte graças à trégua
do governo com as gangues. A exceção de 2012 e 2013, El Salvador, incluindo
este 2014, sempre assistiu à morte de mais de 8 pessoas por dia. No ano
passado, a ONU considerou Honduras o país mais violento do mundo e a Guatemala
ficou em quinto lugar, um degrau abaixo de El Salvador. Outra variável que se
manteve estável é a idade das vítimas. Segundo o Instituto de Medicina Legal de
El Salvador, entre 2010 e 2014, o maior número de vítimas de homícidio estava
na faixa dos 15 aos 24 anos. Parte deles, crianças, portanto.
Aqui
somos violentos há muito mais tempo do que seis ou oito meses. Aqui somos
violentos muito antes de 52 mil crianças irem embora.
Várias
dessas 52 mil crianças certamente foram embora porque as gangues queriam
recrutá-las ou matá-las e isso não acontece só agora. Elas iam embora em 2004,
em 2006. Eu viajei com um menino desses, um guatemalteco, em 2008. E viajei no
México com dois deles, salvadorenhos, em 2009. Os condenados à morte vão embora
desde sempre. Mais de mil crianças salvadorenhas são detidas por ano pela
Guarda da Fronteira desde 2009. Mais de 3 mil em 2012. Quase 6 mil em 2013.
Mais de 11 mil nesses meses de 2014. Os dados nos dizem que, apesar dessa onda
recente, é uma ilusão otimista acreditar que a infância e a adolescência centroamericana
está sob ameaça há meses. Faz muito mais tempo que isso acontece.
Os
argumentos dos detratores mais radicais, os que acham que é mentira que no
norte da América Central se assassinam crianças pequenas, são absurdos. Basta
abrir um jornal salvadorenho com certa frequência para que apareçam notícias
como essa, de domingo 13 de julho: um menino de 11 anos foi sequestrado na
sexta-feira 11 de julho quando saía da classe de 4o ano do Centro Escolar
Felipe Soto, em
Santa Cruz Michapa , departamento de Cuscatlán. Dois dias
depois, a polícia encontrou seu corpo esquartejado e enterrado em uma região
conhecida como El Arenal (o Areial).
Esses mesmos políticos céticos poderiam ter aberto o jornal do dia anterior,12 de julho, e encontrado a notícia de que dois garotos de 15 e 16 anos, foram degolados e jogados en um prédio abandonado de Tonacatepeque, São Salvador, na noite anterior. A infância desse ponto da América Central é ameaçada e assassinada há anos.
Esses mesmos políticos céticos poderiam ter aberto o jornal do dia anterior,12 de julho, e encontrado a notícia de que dois garotos de 15 e 16 anos, foram degolados e jogados en um prédio abandonado de Tonacatepeque, São Salvador, na noite anterior. A infância desse ponto da América Central é ameaçada e assassinada há anos.
Mas
sem dúvida, nos últimos seis meses o número de crianças que vão embora é maior
do normalmente. Para tentar chegar a uma explicação, vale a pena escutar o
funcionário que tem que lidar de perto com este problema.
*
* *
Rubén
Zamora foi o embaixador salvadorenho nos Estados Unidos desde meados do governo
anterior, de Mauricio Funes. O novo governo o encarregou da representação nas
Nações Unidas. No entanto, seu substituto, Francisco Altschul, ainda não
recebeu as credenciais de embaixador, e por isso Zamora continua lidando com a
crise declarada por Obama no mês passado.
Com
uma frase, Zamora acaba com as expectativas dos que buscam uma razão definitiva
para a partida dessas milhares de crianças em um espaço de tempo tão curto:
“Não há uma explicação única”, diz, embora tenha sua própria explicação: “A
comunidade salvadorenha nos Estados Unidos tem crescido economicamente. Em vez
de viver espremidos em quartinhos, alguns já podem pagar 1000 dólares e alugar
uma casa de dois quartos no subúrbio. A mãe começa a ter condições de mandar
buscar seus filhos e agora mais gente pode pagar a viagem para trazê-los. Claro
que as maras e a situação de violência na região apressam o processo. A
situação econômica de alguns, somada ao medo de que suas filhas de 14 anos
sejam violentadas pelas gangues ou recrutadas, faz com que eles busquem trazer
os filhos. Não vêem maneiras legais de trazê-los aos Estados Unidos e vêem que
seus filhos estão correndo perigo em El Salvador , para onde também não podem
regressar. Que opções eles têm?”
Tanto
o embaixador como o Senhor Coiote terminaram suas frases com uma pergunta. “As
pessoas querem os filhos na mesma situação que elas. E então?”, perguntara
antes o Senhor Coiote.
Se
os pais não têm uma opção real de trazer os filhos de uma forma legal; se os
pais não vêem a violência dar sinal de diminuir em Honduras, Guatemala ou El
Salvador; se muitos desses pais já não lavam pratos, e conseguiram montar seu
negócio depois de anos de esforço e então? Então, se nem os Estados Unidos nem
Guatemala nem El Salvador nem Honduras lhes dão uma opção, um coiote dará. E,
como disse o Senhor Coiote, os pais sempre vão querer ter os filhos a seu lado.
Essa é uma das poucas generalizações que são totalmente verdadeiras.
A
maioria dessas 52 mil crianças migrantes centroamericanas não decidiu simplesmente
pegar a mochila e partir. Pelo menos não sozinha. A foto que o mundo todo viu
de Alejandro, um menino hondurenho de 8 anos, à frente de um guarda de
fronteira no Texas, do outro lado do rio Bravo, é uma imagem poderosa que exige
explicações reais e sinceras. A migração é complexa. Os títulos de jornais que
acusam as gangues e a violência, os textos que falavam de meninos que aos 8
anos decidiram ir sozinhos para os Estados Unidos porque seus pais malvados
nunca mandaram buscá-los, não levam em conta o fato de que a América Central há
muitos anos dá motivos para que uma criança deva sair daqui e, sobretudo, não
compreendem que os pais sempre vão querer estar com seus filhos e que os
levarão sempre que possível. Mesmo que para isso tenham um coiote como única
opção.
“Está
se repetindo o que aconteceu com a migração mexicana”, diz Zamora. “Ali
aconteceu a mesma coisa que agora, em proporções distintas e com menos
publicidade e dramaticidade dos meios de comunicação. Um dia os pais começaram
a trazer os filhos”.
A
ideia, difundida por alguns meios de comunicação que jamais falaram com um
deles, é de que os coiotes enganam as pessoas. Um engano que se repete ao
infinito. Ou, em outras palavras, que os migrantes são tão idiotas que
acreditam que se seus filhos chegarem aos Estados Unidos sem visto, magicamente
se tornarão residentes ou cidadãos americanos, de um dia para outro. O Senhor
Coiote sabe que a gente deste país migra há muitos anos para os Estados Unidos.
Sabe que, a estas alturas, ninguém mais acredita em mágica.
“Todas
essas crianças que entraram nesses dias vão receber a citação do juiz para
julgar se seu caso é de asilo ou deportação, mas quase ninguém comparece nas
audiências. O que muitos fazem é se mudar para outro Estado. O que importa para
as mães desses meninos é que eles estejam com elas. Depois vão ver o que fazer.
Primeiro o mais importante”, diz o Senhor Coiote em sua casa em Chalatenango.
Zamora
disse o mesmo de outra maneira: “O que os pais pensam é: ‘Bem, ao menos fico
com ele por um ou dois anos’”.
A
conversa com o Senhor Coiote continua. “É verdade que os meninos vão embora por
medo das gangues?”
“Sim,
uma parte deles não digo que não, mas também se faz disso um cavalo de batalha.
Alguns, uma porcentagem considerável, acredito que tiveram problemas sim, que
viram sua vida em risco.
Mas são os pais que decidem quando buscá-los”.
“Tem
aparecido novos coiotes?”
“Sim,
tem novos. Tenho ouvido de algumas pessoas… Aqui, até no setor de Guarjila, em
que nunca se ouvia falar de coiotes, agora em quase todos os cantos tem alguém
que se dedica a levar gente. Enquanto uns jogam a toalha, outros novos chegam.
Com um adulto podem fazer até três tentativas de passar a fronteira, assim é o
trato. Com uma criança é só entregar nos Estados Unidos, porque no México está
feito. Atualmente, o mais difícil é tirar a criança de El Salvador, porque a
polícia está atenta. Se o pegam levando uma criança para fora é terrível. A
Guatemala também. Já no México o que fazem é aumentar a tarifa; ali o gargalo é
no Sul, do Distrito Federal para cima é tranquilo. As vezes a passagem está
livre, só se trata de ir dando as cédulas. Antes ali era o problema; muitas
crianças passavam pela fronteira com papéis de porto-riquenhos ou dominicanos.
Ninguém vai fazer uma criança atravessar um deserto, vai por atalhos. Lugares
onde não passam grupos, mas apenas duas pessoas. Dá para ver a rua, do outro
lado é Estados Unidos, há centros comerciais, oficinas. Assim que cruza, alguém
pega de carro e leva para esconder no outro lado. É só uma ou duas crianças,
não é um grupo. Se cobrava mais, era mais difícil. Agora tem gente que cobra 4
ou 5 mil dólares por uma criança.
*
* *
“Pra
mim, o coiote de El Salvador disse que eram 7000 dólares para trazê-lo até a
minha casa em Maryland, e 4.500 dólares para trazê-lo até a fronteira e fazer
com que se entregasse a um policial dos Estados Unidos”, recorda Sandra por
telefone.
Sandra
é salvadorenha, de La Unión ,
e tem pouco mais de 40 anos. Há 11 anos vive nos Estados Unidos sem visto de
permanência. Perdeu o Tratado de Proteção Temporária, por isso não tem os
documentos. Trabalha, sem registro, em uma lavanderia. Há dois anos conseguiu trazer
a filha mais velha, de 15 anos, e no mês passado, em meio a onda de imigração
de crianças, tentou trazer seu filho menor, de 12 anos, que não reviu nos 11
anos que mora nos Estados Unidos. Conta que fala com ele três vezes por semana,
que poupa para lhe mandar dinheiro, e que não tem condições de viajar para El
Salvador a “turistear”. Sandra, recordemos, é clandestina. Sua filha também, e
seu filho também seria se não tivesse sido detido e deportado há um mês no sul
do México, quando tentava chegar a Maryland. Sandra decidiu tirar seu filho de
El Salvador por vários motivos que conta por telefone na noite do domingo 13 de
julho:
“Aí
onde vivíamos em La Unión
é bem perigoso. Os vizinhos, dois garotos e a mãe, foram ameaçados. Escravidão,
morte. Os que têm família nos Estados Unidos são os mais visados e o perigo
está chegando cada vez mais perto do meu menino. Eu gostaria de voltar se visse
que a vida estava melhor, mas assim como está a coisa não dá nem para
passear…Por isso tentei trazer meu filho”.
No
horizonte de Sandra não existe a volta, apenas a conclusão da ida. Ir de uma
vez. Arrancar todas as raízes deste lugar e levá-los para fora, crescendo como
clandestinos. Porque ela sabe que é essa a oferta para seus filhos: crescer sem
papéis.
“Alguns
dizem que vocês são enganados pelos coiotes, prometendo que seu filhos se
tornarão legais se entrarem por esses meses”, digo a Sandra.
“Não,
eu já sabia que ele não teria visto. O coiote foi bem claro. Eu sei que depois
são chamados por uma corte. Estou aqui há 11 anos, não vou acreditar em ganhar
visto de presente”, diz a imigrante.
Encurralada,
ela escolheu a opção mais barata, pagou 4.500 dólares a um coiote. E nada
parece ter mudado nesse último mês. “Sandra, você vai tentar trazer seu filho
de novo?”, pergunto. Ela responde: “Sim”.
*
* *
Agora
inclusive há uma promoção, um desconto dos coiotes, como aquele que Sandra
escolheu. É difícil acreditar que a propaganda boca a boca funcione para
divulgar uma notícia com desdobramentos a ponto de obrigar o presidente dos
Estados Unidos a dar coletivas de imprensa e a pedir bilhões de dólares para
amenizar a crise. Mas é nisso que acreditam o Senhor Coiote, o ex-embaixador
Zamora, e Óscar Chacón, diretor da Alianza Nacional de Comunidades
Latinoamericanas y Caribeñas nos Estados Unidos. Lá, o boca a boca entre as
comunidades centroamericanas é poderoso, acreditam. É verossímil que tudo tenha
começado com uma mãe que queria ter o filho a seu lado e outra mãe que viu que
ela conseguiu, e outra que ficou sabendo, e depois outra, depois um pai, outra
mãe, até chegar a 52 mil crianças centroamericanas cruzando a fronteira.
Isso
acontece em parte porque os mensageiros, os coiotes, há décadas desempenham um
papel importantísimo para a comunidade de imigrantes. Um coiote de Ahuachapán
me disse que há dois meses ouviu o primeiro rumor e desde então seus colegas
levaram 16 crianças só do município. Também me disse que os coiotes de outras
regiões estão recrutando “juntadores” salvadorenhos para levar crianças. Um
juntador é quem convence o cliente e o encaminha ao coiote. Normalmente recebe
uns 200 dólares por imigrante. Este coiote disse que só de Candelaria de la Frontera , em Santa Ana , já foram 3
crianças, incluindo um garoto de 11 anos que “fugiu da gangue a que pertencia
porque queriam matá-lo”.
Há
um mês, na Guatemala, o taxista que me pegou na rodoviária da capital me disse
que essa semana não poderia trabalhar comigo porque tinha que fazer duas
viagens até a fronteira de El Salvador para trazer dois grupos de quatro
crianças que vinham com uma parente adulta e iam para os Estados Unidos. O
coiote guatemalteco passava por um ponto cego em El Salvador , pegava os
migrantes, atravessava as pessoas pelo mesmo ponto cego e os subia pelo outro
lado. Na semana anterior a minha chegada, o taxista havia feito mais duas
viagens para o coiote, mais seis crianças. Um taxista, um coiote e 14 crianças
transportadas em duas semanas. O negócio rende para todos. É sabido que, se os
governos não sabem resolver, o crime sempre terá uma opção para oferecer. Mas o
Senhor Coiote acha que essa bonança para os coiotes vai acabar mal.
*
* *
“Até
agora tem sido um movimento bom para os coiotes, mas virá o golpe, tenho
certeza. Claramente foi dito a Maribel Ponte no noticiário pela… Como ela se
chama mesmo?”, pergunta o Senhor Coiote. “Mari Carmen Aponte, a embaixadora dos
Estados Unidos em El
Salvador ?”, sugiro. “Ela mesma. Ela disse que o crime teria
que ser perseguido. Que vão trazer a fotografia dos meninos, e a declaração do
pai da família e da criança. E, se possível, recibos do pagamento que alguns
coiotes cometem o erro de mandar com eles. Pode ser que os Estados Unidos decidam
levar os polleros para lá. Se levarem dois ou três coiotes, acho que muitos vão
desistir. Não acredito que os Estados Unidos vão dizer que vão dar condições
para que eles fiquem legalmente, para que estudem até que as coisas melhorem em
seus países. Não vão fazer isso. É mais rápido pegar uns coiotes. Alguns
advogados já estão recomendando às famílias que guardem as provas. Há vistos
especiais para permanecer lá. Não é permanente, é temporário, para quem
colabora com a Justiça. Vão dar vistos a muitos desses garotos mas vão ser
testemunhas certificadas. Toda a informação vai vir de lá: fulano foi trazido
por este, sicrano por aquele. Porque o pai, contanto que deixem que seu filho
fique, vai falar”.
É
incrível ouvir um coiote recitando as declarações de uma embaixadora americana
em um quintal de Chalatenango. Ainda mais incrível que sua análise seja
certeira. O ex-embaixador salvadorenho Zamora acredita que “essa perseguição
aos coiotes vai começar” sobretudo porque os juízes dos casos de deportação são
juízes administrativos, vinculados ao Poder Executivo. Ou seja, que respondem
de acordo com a estratégia política do presidente, e este presidente já deixou
claro que o que pretende é deportar mais rápido as crianças centroamericanas e
atacar os coiotes. Zamora, ademais, confirma que “o governo salvadorenho pediu
aos organismos do Estado (Fiscalía e Polícia) que incrementem a perseguição aos
coiotes”.
Os
Estados Unidos apostam em soluções imediatas e para Zamora, “as opções
imediatas não existem”, pois a curto prazo se pode “reduzir, não eliminar”.
Para deixar claro, por imediato se entende, por exemplo, extraditar alguns
tantos coiotes ou colocar mais guardas na fronteira. Quando Zamora diz
“duradouro” se refere, por exemplo, à “criação de empregos dignos”.
Sob
esse ponto de vista, aliás, os Estados Unidos já se pronunciaram. A Casa Branca
publicou na semana passada um comunicado explicando como gastaram os 3,7
bilhões de dólares que o presidente Obama tinha pedido para solucionar a crise.
Em resumo: o grosso desses milhões foi para os departamentos de Segurança
Nacional e Saúde, focados na detenção e deportação de imigrantes. De todos
esses bilhões, 295 milhões foram para que os governos de El Salvador, Honduras
e Guatemala controlem melhor suas fronteiras e criem condições para combater as
causas da imigração. Se seguimos essa lógica, o governo dos Estados Unidos
acredita que sua responsabilidade na migração de crianças centroamericanas é de
algo em torno de 8 %. Ou, dito de outra maneira, os Estados Unidos acham que
melhorar a América Central representa 8 % da solução.
*
* *
O
fato é que na terceira semana de junho, quase 52 mil crianças deixar os três
países mais violentos da América Central. E, como diz o Senhor Coiote, “aí um
monte de gente vai dizer que os meninos são fugitivos porque não se
apresentaram ao juiz”. Mas o caso, e não apenas dessa crise mas da imigração
como um todo, já foi explicado pelo Senhor Coiote: “É assim, as pessoas querem
os filhos perto delas. E então?”
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