domingo, 11 de maio de 2014

O Vinte Cinco barra quatro, 40 anos depois (observações fragmentadas)




Artigo de Rui Peralta escrito em 25 de Abril último e que devido a dificuldades em manter a atualização do Página Global nestas últimas três semanas somente agora procedemos à sua publicação. Em consciência consideramos que o artigo não peca por desatualização, antes pelo contrário. 

Aproveitamos para deixar nota sobre algumas dificuldades na atualização do Página Global, que estamos a procurar superar de modo a que recuperemos a normalidade e ritmo de publicação anterior e que mais agradava aos nossos estimados leitores. Apresentamos as nossas desculpas pela irregularidade que contamos superar em breve. (Redação PG)

Rui Peralta, Luanda

I – Abril e a Universidade

Os Primaveris ares de Abril percorreram a Universidade, mas terminaram a vaguear pelos imensos corredores kafkianos, perdendo o odor fresco da Primavera, não sendo hoje, mais do que um bafo bolorento. Aconteceu aos Primaveris ares de Abril, aos odores dos cravos vermelhos, o que acontece á imaginação quando confrontada com a lógica dominante: o poder de subversão da imaginação penetra a lógica e ao defrontar-se com os seus mecanismos orgânicos absorve os princípios da lógica dominante, contamina-se, submete-se e transforma-se, com o passar do tempo, numa mercadoria bem empacotada, produzida em grandes quantidades, com diferentes sabores, odores, linhas e formas, para melhor agradar a um consumo vasto. 

Afastados que foram os ares de Abril através das condutas de escoamento dos labirínticos corredores burocráticos, destronados os cravos vermelhos do livre pensamento e do livre arbítrio, acorrentadas que foram as ideias e a sua pluridimensionalidade, a Universidade deixou escapar a oportunidade de transformar-se numa estrutura flexível de aprendizagem, que fosse permeável às liberdades do pensamento e aos caminhos alternativos. Tornou-se num problema da Economia, logo uma estrutura asfixiada. Esta asfixia conduz a Universidade a um modelo educativo que privilegia o sector privado, que impede a intelectualidade subversiva e produz alienados em demanda quixotesca pelo Mercado fora.

Como consequência surge a universidade homofila, espaço de ausência de diálogo e de inexistência da liberdade de pensamento, onde sucedem-se os monólogos monossilábicos cujo objectivo é fazer esquecer o não e incutir o sim. Este é um espaço cujo objectivo é instruir a docilidade da submissão, o reacionarismo da atitude subserviente face ao escalão hierárquico superior e arrogante perante o subordinado, a incompreensão dos detalhes na sua relação com o todo e a ilusão do mérito e do empreendedorismo. A universidade converte-se, assim, num não-lugar onde tudo é transformado numa massa disforme certificada, através do processo mitológico do êxito e do sucesso. Daqui entra-se e sai-se como num aeroporto (com as revistas ás malas, as atitudes discriminatórias á entrada e os olhares desconfiados á saída) ou num centro comercial (com os sacos carregados de compras).

A máxima valorização deste espaço desumanizado e alienante em que se converteu a universidade (uma antecâmara do espaço concentracionário da empresa) é a certificação, factor que dá forma aos Currículos Vitae normalizados, estandardizados e aos inúmeros certificados de qualificações despersonalizadas e de curto prazo, tudo expedientes manipulados e manipuláveis. Uma carreira universitária imaculada, cheia de menções honrosas, quadros de honra, grandes notas, não significa nada, nem é indicativo de que o estudante alguma vez se tenha interrogado sobre o mundo em que vive, ou sobre a sua condição. A ausência de sentido crítico, o facto de nunca ter adquirido mecanismo de racionalização critica, leva-o á condição de mineral.

O bom estudante é hoje um depositário de conteúdos que aprendeu a memorizar e que os vomita (sem nunca os ter digerido) quando é chamado a expressar uma opinião. É um cavalo adestrado que supera os obstáculos melhor do que os outros e que não tem dúvidas, não se interroga, não questiona. É obcecado pela qualificação e estuda, memoriza e ensina num sistema meritocrático, baseado na tirania da avaliação, onde a ausência dos valores comuns e dos bens públicos são preenchidos pelo fetiche da competitividade. Cada um ganha o seu posto em concorrência com os demais, é esta a ética empreendedora e meritocrática, que exclui todos os “inadaptados” que não entrarem neste jogo. Quanto aos perdedores, terão próximas oportunidades mas nos escalões mais baixos. Se continuarem a perder é porque também eles (iguais aos que recusaram a entrada no jogo) são inadaptados e têm de ser excluídos.

Na universidade pós-Abril, ou de Abril normalizado, é isto que se aprende: o outro é o teu inimigo, nunca o teu companheiro. Aqui não se pode falar em regresso ao passado. A universidade salazarenta era vocacionada para a submissão a valores retrógrados (Deus, Pátria, Autoridade, Nação, Estado, Ordem Hierárquica, Militarismo). Na Universidade pós-Abril, a universidade da austeridade, em que o controlo financeiro foi promovido a direito e obrigação constitucional (num contrato social que não foi referendado), os valores são menos “heroicos e épicos” destruindo o individuo, também, mas desta feita em nome de um pretenso individualismo, que mais não é do que uma atitude alienada, consequência da impotência dos indivíduos face á espada de Démocles que pende sobre a sua cabeça.

Perdida fica a aproximação ao mundo e a sua compreensão, transformando-se a universidade num antro dominado pela mediocridade colectiva. Estudantes obedientes e professores cumpridores, de preferência ligados ao “tecido empresarial” ou às “instituições financeiras” eis a característica principal de uma instituição universitária de “sucesso”. Excluídos desta estrutura ficam o livre-pensamento e os dissidentes deste espaço doutrinário pré-fabricado, ficando aberto o caminho á interiorização acrítica do conhecimento, aos valores e objectivos concentracionários previamente fixados pela hierarquia. E sem margem de manobra! Ao mínimo desvio soam as sirenes e as luzes vermelhas da condenação, revelada geralmente através da proscrição, da exclusão dos financiamentos para a investigação, a qualificação e promoção laboral, etc...

Óbvio que existem e existirão resistências. A Universidade, porque centro de conhecimento, é sempre (embora cada vez mais em ocasiões contadas) espaço para o encontro com o diferente (e essa é a sua principal riqueza), para a discussão, para o conflito, o oposto e os complementos. E esta vertente da resistência surge naturalmente, de forma insuspeita, quebrando a docilidade da submissão e a burocratização do saber. 
       
Quanto ao estudante, escravo estoico, crê-se cada vez mais livre, quanto mais o aprisionam as cadeias da autoridade (tal como o trabalhador que crê-se mais livre, quanto mais o aprisionam as cadeias do trabalho). Adquire facilmente os tiques e as ilusões da instituição que frequenta, a Universidade e pensa que tornou-se mais “social” porque mais “autónomo”, não conseguindo vislumbrar que afinal representa directamente os dois sistemas mais poderosos da autoridade social: a família (considerada o núcleo da sociedade) e o Estado (a coluna vertebral da sociedade e o bastão que parte as vértebras da subversão). Transformado em ser submisso, o estudante participa nos valores e mistificações do discurso ético dominante, tornando-se apto a entrar no mercado como activo. 
  
As ilusões impostas aos estudantes (transformados em empregados) convertem-se em ideologia interiorizada e inicia a sua caminhada, alegre e contente porque é um futuro pequeno quadro, que poderá ascender e tornar-se numa grande moldura que ornamenta o quarto das empregadas…

II – Abril, socialismo, democracia e capitalismo

Abril começou com os militares, dá o passo vitorioso com o povo nas ruas, abre as cadeias, imprime a liberdade de expressão, a pluralidade, os direitos e liberdades e aos poucos assume uma postura socialista. Era uma postura vaga, indefinida, mesmo disforme se considerarmos que todos os partidos políticos, inclusive os da direita falavam em socialismo. Mas o socialismo de Abril teve a sua demonstração de força nas ocupações de terras e de casas, nas greves operárias, nas grandes manifestações de rua, no sistema nacional de saúde, na democratização do ensino, na igualdade do género, no combate ao analfabetismo e em tantos outros combates travados nas mais diversas frentes que Abril abriu (o socialismo até chegou a marcar posição na Constituição).

Claro que depois o tempo varreu as concretizações, os ensejos, a tomada de consciência e a Primavera, após um Verão escaldante, deu lugar a um Outono insipido e a um Inverno rigoroso, que se prolonga até hoje. Para trás ficou o vago projecto socialista, umas vezes utópico, outras construido no ardor da luta de classes e foi metido na gaveta. Permaneceu a democracia política, mas as realizações da democracia na economia foram rotuladas de “projecto totalitário” e “coisa do PREC”. Com o socialismo engavetado, Portugal o ultimo Imperio Colonial do Império do Capital, caminhou aos altos e baixos nos sinuosos percursos de Abril (não os do 25 mas do 26, que os do 24 já não cabiam nos novos planos).

Apesar de tudo, em termos de direitos políticos, liberdade de expressão, de opinião e de informação, os Portugueses estão em melhores condições que os cidadãos norte-americanos por exemplo. Pelo menos têm representações políticas parlamentares que giram em torno de projectos socialistas, coisa que nos USA pode ser considerado perigoso e que torna-se motivo para escutas e violação da privacidade. Até porque a direita norte-americana (que é toda a representação republicana e democrata) é uma força política única. Os dois partidos principais do espectro político norte-americano são de direita e para a grande maioria do eleitorado a direita é o espectro político da nação. Nesse sentido o pluralismo político da sociedade portuguesa é de muito maior amplitude (mesmo em relação á maioria dos seus parceiros europeus da U.E.) e essa é, também, uma consequência do socialismo, ou seja, da cultura socialista que cresceu com Abril e que permaneceu nos arquétipos da cultura politica e social portuguesa do pós-25.

Em Abril de 1974, a sociedade portuguesa metamorfoseou-se, em todas as suas estruturas e em todos os níveis da vida social. As pessoas aperceberam-se que podiam ter o controlo das suas vidas, definirem o futuro e descobriram que em conjunto poderiam controlar os recursos que tornam a liberdade possível (o que não veio a acontecer porque a vida económica não se democratizou). O socialismo representava todo este movimento, não era uma cátedra ideológica, mas era algo que podia ser sentido, vivido no dia-a-dia.

No lado oposto (mas também ligado a Abril) residia o Capitalismo. Capitalismo e democracia não são incompatíveis. Aliás o capitalismo não é incompatível com nada. O capitalismo é como um organismo parasitário, que penetra e desenvolve-se em qualquer meio, porque tem uma quase infinita capacidade de adaptação. Entra manso, convive nos mercados, alimenta-se neles e deles, depois, já crescido, domina-os. Dos mercados dominados ao domínio da esfera política é um passo, até porque o capitalismo pretende a anulação da esfera politica, mal esta deixe de ser útil para afirmar o seu domínio. O capitalismo apenas pode ser mantido na esfera económica e por isso reduz a esta esfera toda a vida humana. O resto é deixado para o Além.

O problema da relação capitalismo versus democracia é que, no momento em que a democracia deixa de servir para o alimentar, o capitalismo necessita de condicioná-la á esfera politica. Mas como a esfera politica, devido às relações criadas pelo capitalismo (que nasceram no mercado e dele se alimentaram ao ponto de insufla-lo e extrapolarem as relações de mercado a toda a relação social) é secundarizada e a esfera económica é a única no mundo unidimensional por ele criado, a democracia torna-se incompatível com o capitalismo, exactamente porque este impede a democratização da vida económica. Ou seja, a democracia é uma enorme pastilha elástica, que depois de devidamente mascada é deitada fora porque já não é doce.

Quarenta anos depois da queda da ditadura conservadora fascistoide e do colonialismo, o capitalismo (que para se desenvolver em Portugal necessitava da democratização da vida politica, para melhor aperfeiçoar o mecanismo de rejuvenescimento das elites) necessita de uma nova forma de totalitarismo, construído sobre os escombros de Abril. A situação que Portugal vive actualmente é esse momento de transição, da democracia politica (formal e burguesa) para uma forma totalitária, ainda indefinida, mas que encontra na austeridade os seus contornos e nos cortes aos direitos, liberdade e garantias (as grandes conquistas de Abril) o seu casulo.

III – Abril e o modelo híbrido

Os USA são o melhor exemplo de uma democracia engolida pelo capitalismo e o melhor modelo de regime hibrido que caminha a passos largos para uma forma de totalitarismo (apesar das fortes instituições democráticas que ainda persistem). Com o maior fosso entre ricos e pobres desde 1928, os USA não deixaram no entanto de ter crescimento económico nos últimos quatro anos e os lucros das grandes corporações norte-americanas não deixaram de crescer e em muitos casos atingindo os níveis mais elevados desde a crise de 1928. Os “bónus” na Wall Street são os mais altos desde o “crash” de 2008, mas para a grande maioria dos norte-americanos a recuperação não se faz sentir nas suas vidas.  
                      
Uma das características do regime hibrido que se desenha nos USA é o papel histórico crucial da elite financeira na política interna e externa. O relacionamento entre a burguesia financeira e a Casa Branca influenciou acontecimentos-chave na economia norte-americana, como a criação da Federal Reserve, a resposta á Grande Depressão e a fundação do FMI e do Banco Mundial. Durante grande parte do século XX banqueiros e presidentes norte-americanos criaram e geriram um sistema financeiro exponencialmente expansivo, assente em longas curvas de estabilidade e altos picos de instabilidade em períodos curtos. Mas o crescimento da Wall Street saiu fora do controlo de Washington, a especulação em grande escala levou á crise de 2008 e desde aí a velha parceria Washington/Wall Street é cenário de uma feroz luta interna.
            
Em 1929 emergem a JP Morgan (J.P. Morgan foi o mais poderoso banqueiro norte-americano e o mais poderoso elo de ligação entre o mundo financeiro e politico e o responsável pela constelação de relações entre estes dois sectores das elites norte-americanas, se atendermos ás suas relações com Teddy Roosevelt, iniciadas em 1907 e que eram muito similares ás existentes actualmente entre Jamie Dimon e Obama. J.P.Morgan morreu em 1914), na época liderada por Tom Lamont, o National City Bank (actualmente na Citigroup) liderado por Charles Mitchell, o Chase Bank (agora parte da Chase-JP Morgan) presidido por Al Wiggin e mais alguns bancos em situação difícil, sem terem o peso destas instituições financeiras, mas sobreviventes. Alguns anos depois, vindos de outras avenidas, surgem a Goldman Sachs e o Bank of America, provindos das relações com F.D. Roosevelt. 
    
Esta história de relacionamentos entre famílias e clãs (por isso no capitalismo a família é o núcleo da sociedade, desempenhando papeis que vão além da socialização do individuo enquanto criança) tem um ponto alto em 1907, quando Teddy Roosevelt, o homem forte da burguesia industrial norte-americana e que nunca teve investimentos no sector financeiro, acredita que a única esperança de salvação do país é J.P.Morgan e o seu banco. Reúne no Hotel Manhattan, durante longas horas, um punhado de banqueiros, sob a direcção de J.P.Morgan, sem o presidente da Republica ou o secretário de estado do Tesouro. Desta reunião nasceu a solução para a grande catástrofe e as suas decisões foram de imediato aplicadas pela Casa Branca. Desta forma foram salvos os interesses da grande banca e dos seus principais clientes, estabelecendo-se desde essa altura uma santa aliança entre a burguesia financeira e a burguesia industrial nos USA, que prevalece até hoje, mesmo quando existem situações de aparente ruptura entre ambos os sectores. Aprisionados a este acordo ficaram a burguesia comercial e a burguesia agrária, sob elas recaindo as grandes falências da época, para além dos sectores da pequena e média industria.
         
Um pouco mais tarde nasceu a Federal Reserve, instituição proposta na reunião de Manhattan e que contou com a colaboração de alguns senadores, como Nelson Aldrich, presidente do Comité do Senado para as Finanças Públicas. Aldrich, em 1910, reuniu um grupo de banqueiros (os mesmos do Hotel Manhattan, 3 anos antes) na Ilha de Jeckyll, durante a administração Taft. A reunião prolongou-se por 10 dias e aí nasceu a Federal Reserve. O presidente Taft já não chegou a ver a implementação desta decisão, que foi efectuada pelo presidente Woodrow Wilson, em 1913. Wilson, do Partido Democrático, contava com muitos amigos no sector financeiro, todos eles presentes na reunião de Manhattan, em 1907 e na da Ilha de Jeckyll em 1910. Estes laços permaneceram durante o New Deal, entre a burguesia financeira e o presidente F.D. Roosevelt, embora Wall Street não morresse de amores pelas políticas do New Deal. A grande ligação foi efectuada através de Winthrop Aldrich (filho de Nelson Aldrich) um dos fundadores da Federal Reserve (Fed), um velho amigo de F.D. Roosevelt e da família, que foi colega de escola do presidente.

Actualmente os laços perduram, embora de forma muito mais perigosa e não se resumem a salvar negócios, famílias e amigos, com os quais se fazem mais negócios, cruzam-se famílias e fazem-se mais amigos. Hoje a relação é mais perigosa, porque os grandes seis bancos norte-americanos representam 85% dos depósitos de toda a banca comercial, 84% dos activos da banca comercial, controlam 96% dos derivativos (instrumentos financeiros cujo pagamento são definidos em termos dos preços de outros activos) de todas as instituições financeiras norte-americanas e 45% dos derivativos mundiais. Estes seis bancos têm tanto poder como toda a legislação em torno do capital (muito dela aprisionada ao poder destes seis bancos e legislada em função do seus interesses).

Este cartel entra em força na administração Reagan, permanece com Bush I, adquire laços com os democratas através de Clinton, toma posições-chave com Bush II e reforça-se com Obama. Durante a década de 70 houve uma revisão estratégica, iniciada com Nixon e revelada com o término do standard ouro, medida que permitiu á banca norte-americana utilizar os petrodólares obtidos no Médio Oriente e reciclá-los na América Latina, operando a nível internacional numa agenda diferente da administração e fora das conexões presidenciais.

È neste período que acontece o 25 de Abril de 1974, período recheado de alterações conseguidas também na Grécia, ensaiadas em Espanha, profundas alterações no continente africano através das descolonizações das ex-colónias portuguesas no continente e do golpe militar na Etiópia e o realinhamento asiático, atribuindo-se um novo papel á China, o fim da guerra na Indochina, as tentativas de modernização da Indonésia (na qual a ocupação de Timor foi uma etapa), Filipinas, Tailândia, Malásia e Coreia do Sul, para além de um novo papel de expansão de investimentos japoneses que terminariam no entanto em estagnação financeira do país.
  
IV – Abril e o Imperialismo
        
Os USA acompanharam de perto o desenvolvimento dos acontecimentos em Portugal. Este acompanhamento implicava, necessariamente, intervenção, diplomacia, ameaças veladas, campanhas de propaganda e de contrainformação, espionagem e infiltração. São muitos os rastos deixados pela ansiedade e pela preocupação do imperialismo em relação ao “período quente”, o PREC, período que transformou a idílica Primavera em Verão abrasador.

Desde as simpatias por Spínola, a criação de partidos (os do “arco da maioria silenciosa” – desaparecidos apos o 28 de Setembro - e os do actual “arco da responsabilidade”), as infiltrações nos movimentos esquerdistas (maoistas, trotskistas e outros), o ELP e o MDLP, as campanhas de destruição das sedes do PCP, a aposta em figuras da “esquerda militar” mais moderadas, os Meninos de Deus e outras organizações religiosas, Carlucci, a Confederação dos Agricultores (CAP) as confederações patronais, as infiltrações no movimento sindical, enfim todo a habitual panóplia de meios, recursos e jogadas com que os USA “acompanha” os “aliados”, principalmente os que são da NATO.
  
Uma das notícias mais alarmantes, na imprensa portuguesa da época, foi a de que em Portugal já estavam cubanos em prontidão (parece terem-se esquecido os jornalistas e os informadores que sempre houvera cubanos em Portugal, os cubanos de Cuba, no Alentejo, com certeza muito diferentes dos cubanos que estavam em Angola, mas, para os alarmistas anticomunistas, cubanos são cubanos). Este episódio anedótico é revelador da guerra de contrainformação que Portugal sofreu durante o PREC, o Período Revolucionário Em Curso, um período de intensa luta de classes no plano interno.

A estrutura de envolvimento da CIA era diferente da actual e menos complexa, o que a levava a acções mais tipificadas, experimentadas e ensaiadas na América Latina e na Ásia. A CIA não tinha os meios tecnológicos actuais (inexistentes na época) que permitem a montagem de campanhas globais de propaganda e de contrainformação, embora tivesse ao seu dispor os principais jornais privados, que faziam com bom agrado o seu papel e a sua função agenciada, temendo a “ameaça comunista e totalitária” representada pelo PREC. As operações dos USA não tinham a complexidade de meios e ao mesmo a simplicidade de objectivos que têm actualmente, como por exemplo, um recente artigo publicado na Associeted Press descreve detalhadamente como a USAID criou um falso Twitter, o Zun Zuneo, financiado por diversas instituições financeiras e que é uma plataforma de tratamento e manipulação de informação e de conteúdos políticos destinados a Cuba, com o intuito de ser uma rede de comunicação que esteja na linha da frente de uma eventual Primavera Cubana.

Segundo um documento da USAID o objectivo do ZunZuneo é “"renegotiate the balance of power between the state and society" (sic). Esta operação foi iniciada em 2011, quando surgiram uma serie de mensagens sobre a liberdade de imprensa em Cuba e deu os primeiros passos em céu aberto nos finais de 2012. Recentemente o Secretário da Casa Branca para a Comunicação Social, Jay Carney, defendeu o Twitter cubano da USAID, desmentindo que se tratava de um programa camuflado e encoberto e garantindo que os fundos do Congresso fornecidos á USAID para este programa eram para proporcionar aos cubanos uma maior informação e fortalecer a sociedade civil e que o programa estava em consonância com a Lei.
 
Este programa da USAID é nitidamente uma acção formativa de agitadores e propagandistas, no sentido de provocar acções de desestabilização, aproveitando as mudanças introduzidas no país pelo governo cubano. È um programa que utiliza diversas contas bancárias secretas (provavelmente para escapar ao bloqueio bancário imposto a Cuba pelos USA, complementar ás restantes medidas de bloqueio), utiliza diversas companhias e plataformas multinacionais em diversos países (Nicarágua, Espanha, Irlanda, UK) e o suporte de um gabinete da USAID, o Office of Transtion Iniciative (OTI) que complementa serviços da CIA relacionados com a infiltração nas iniciativas de alteração e de remodelação das políticas governamentais cubanas (o que implica já uma rede de infiltrados em diversas estruturas do Estado cubano e do PCC). A USAID beneficia de 20 milhões de USD, anualmente cedidos pelo Congresso norte-americano para efectuar programas e operações em Cuba. Com as recentes aberturas proporcionadas pela actual política cubana, os USA esperam poder financiar escolas e institutos e participar em programas sociais e humanitários, para além da criação de redes de estudantes universitários cubanos.

V – Abril Hoje

Claro que em Abril de 1974 não existiam estruturas destas. Eram estruturas mais simplificadas, mas que foram eficazes o suficiente, ao travar uma eventual socialização mais radical de Abril. Aos poucos os cravos vermelhos foram murchando e hoje os cravos são todos encarnados (como o Benfica), só sendo vermelhos durante as comemorações do Vinte Cinco barra Quatro.

Hoje Portugal está no núcleo duro da U.E. (a Eurolândia, ou zona Euro) vive na e da austeridade, é um fundamental elemento secundário da NATO e tem um imenso fosso entre ricos e pobres, para além de uma população envelhecida e de sofrer um processo de desertificação do interior. O desemprego é elevado e crónico, os níveis de produtividade são baixos e a economia portuguesa sofre de uma mal-estar permanente, o que não impede as exportações de aumentarem, de a banca ser uma actividade de grandes lucros e dos ricos de enriquecerem (obviamente com o empobrecimento das classes médias e com a acentuada exclusão social dos mais pobres).

Quarenta anos depois Portugal comemora um Abril liberal, uma “abrilada” caótica feita de incompetência, desgoverno, roubo e corrupção. Os heróis de Abril (o maior deles foi o Povo) daquele núcleo central, os chamados capitães - os capitães de Abril não são hoje mais do que capitães da areia, que levam reprimendas da Presidente da Assembleia da Republica – e o resto (MFA, cravos vermelhos, descolonização, democratização, desenvolvimento etc.) são marcas registadas do processo histórico, prontos a residirem em duas linhas de um qualquer manual escolar de História de Portugal, com 500 páginas de colonização e três ou quatro linhas sobre Abril.

Quanto ao resto… Educação, Saúde, Habitação… já não são! 

Luanda, 25 de Abril de 2014

Fontes 
Fernández; Sevilla; Urban De la nueva miseria: la universidad en crisis y la nueva rebelión estudiantil Akal, Madrid, 2013.
Del Rey, Angélique La tyrannie de l'évaluation La Découverte, Paris, 2013
Various Imagine: Living in a Socialist USA. Goldin, New York, 2014
Prins, Nomi All the Presidents’ Bankers: The Hidden Alliances that Drive American Power Free Press, Washington, 2014

A REVOLUÇÃO CIDADÃ TEM QUEM A DEFENDA?




Será que Correa ainda pode resgatar a oportunidade de realizar a revolução cidadã que se propôs? Penso que sim, mas a margem de manobra é cada vez menor.

Boaventura Sousa Santos – Carta Maior

Os intelectuais da América Latina, entre os quais me considero por adoção, têm cometido dois tipos de erros nas suas análises dos processos políticos dos últimos cem anos, sobretudo quando eles contêm elementos novos sejam eles, ideais de desenvolvimento, alianças para construir o bloco hegemónico, instituições, formas de luta, estilos de fazer política. Claro que os intelectuais de direita têm igualmente cometido muitos erros, mas deles não cuido aqui. O primeiro erro tem consistido em não fazer um esforço sério para compreender os processos políticos de esquerda que não cabem facilmente nas teorias marxistas e não marxistas herdadas. As reações iniciais à revolução cubana são um bom exemplo desse tipo de erro. O segundo tipo de erro tem consistido em silenciar, por complacência ou temor de favorecer a direita, as críticas aos erros, desvios e até perversões por que têm passado esses processos, perdendo assim a oportunidade para transformar a solidariedade crítica em instrumento de luta.

Desde 1998, com a chegada de Hugo Chavez ao poder, a esquerda latino-americana tem vivido o mais brilhante período da sua história e talvez um dos mais brilhantes de toda a esquerda mundial. Obviamente não podemos esquecer os tempos iniciais das revoluções russa, chinesa e cubana nem os êxitos da social democracia europeia no pós-guerra. Mas os governos progressistas dos últimos quinze anos são particularmente notáveis por várias razões: ocorrem num momento de grande expansão do capitalismo neoliberal ferozmente hostil a projetos nacionais divergentes dele; são internamente muito distintos, dando conta de uma diversidade da esquerda até então não conhecida; nascem de processos democráticos com elevada participação popular, quer institucional, quer não-institucional; não exigem sacrifícios às maiorias no presente em nome de um futuro glorioso, mas tentam pelo contrário transformar o presente dos que nunca tiveram acesso a um futuro melhor.

 Escrevo este texto muito consciente da existência dos erros acima referidos e sem saber se terei êxito em evitá-los. Para mais, debruço-me sobre o caso mais complexo de todos os que constituem o novo período da esquerda latino-americana. Refiro-me aos governos de Rafael Correa no poder no Equador desde 2006. Alguns pontos de partida. Primeiro, pode discutir-se se os governos de Correa são de  esquerda ou de centro-esquerda, mas parece-me absurdo considerá-los de direita, como pretendem alguns dos seus opositores de esquerda.

Dada a polarização instalada, penso que estes últimos só reconhecerão que Correa era afinal de esquerda ou de centro-esquerda nos meses (ou dias) seguintes à eventual eleição de um governo de direita. Segundo, é largamente partilhada a opinião de que Correa tem sido, "apesar de tudo", o melhor presidente que o Equador teve nas últimas décadas e aquele que garantiu mais estabilidade política depois de muitos anos de caos. Terceiro, não cabe dúvida de que Correa tem vindo a realizar a maior redistribuição de rendimentos da história do Equador, contribuindo para a redução da pobreza e o reforço das classes médias. Nunca tantos filhos das classes trabalhadoras chegaram à universidade.  Porque é que tudo isto, que é muito, não é suficiente para dar tranquilidade ao "oficialismo" de que o projeto da Correa, com ele ou sem ele, prosseguirá depois de 2017 (próximas eleições presidenciais)?

Apesar de o Equador ter vivido no passado alguns momentos de modernização, Correa é o grande modernizador do capitalismo equatoriano. Pela sua vastidão e ambição, o programa de Correa tem algumas semelhanças com o de Kemal Ataturk na Turquia das primeiras década do século XX. E a ambos preside o nacionalismo, o populismo e o estatismo. O programa de Correa assenta em três ideias principais. Primeiro, a centralidade do Estado como condutor do processo de modernização e, ligada a ela, a ideia de soberania nacional, o anti-imperalismo contra os EUA (encerramento da base militar de Manta; expulsão de pessoal militar da embaixada do EUA; luta agressiva contra a Chevron e a destruição ambiental que ela causou na Amazônia) e a necessidade de melhorar a eficiência dos serviços públicos.

Segundo,  "sem prejudicar os ricos", ou seja, sem alterar o modelo de acumulação capitalista, gerar com urgência recursos que permitam realizar politicas sociais (compensatórias, no caso da redistribuição de rendimento, e, potencialmente universais, no caso da saúde, educação e segurança social) e construir infraestruturas (estradas, portos, eletricidade) de modo a tornar a sociedade mais moderna e equitativa. Terceiro, por ser ainda subdesenvolvida, a sociedade não está  preparada para altos níveis de participação democrática e de cidadania ativa e, por isso, estas podem ser disfuncionais para o ritmo e a eficiência das políticas em curso. Para que tal não aconteça há que investir muito em educação e desenvolvimento. Até lá, o melhor cidadão é o cidadão que confia no Estado por este saber melhor que ele ou ela qual é o seu verdadeiro interesse.

Este vasto programa colide ou não com a Constituição de 2008, considerada uma das mais progressistas e revolucionárias da América Latina? Vejamos. A Constituição aponta para um modelo alternativo de desenvolvimento (senão mesmo para uma alternativa ao desenvolvimento) assente na ideia do buen vivir, uma ideia tão nova que só pode ser adequadamente formulada numa língua não colonial, o kishwa: Sumak Kawsay. Esta ideia tem um riquíssimo desdobramento:  a natureza como um ser vivo e, portanto, limitado, sujeito e objeto de cuidado, e nunca como um recurso natural inesgotável (os direitos da natureza); economia e sociedade intensamente pluralistas orientadas pela reciprocidade e solidariedade, interculturalidade, plurinacionalidade; Estado e política altamente participativos, envolvendo diferentes formas de exercício democrático e de controle cidadão do Estado.

Para Correa (quase) tudo isto é importante mas é um objetivo de longo prazo. A curto prazo e urgentemente é preciso criar riqueza para redistribuir rendimento, realizar políticas sociais e infraestruturas essenciais ao desenvolvimento do país. A política tem de assumir um carácter sacrificial, pondo de lá o que mais preza para que um dia este possa ser resgatado. Assim, é necessário intensificar a exploração de recursos naturais (mineração, petróleo, a agricultura industrial) antes que seja possível depender menos deles. Para tal é necessário levar a cabo uma agressiva reforma da educação superior e uma vasta revolução científica assente na biotecnologia e na nanotecnologia de modo a criar uma economia de conhecimento à medida da riqueza de biodiversidade do país. Tudo isto só dará frutos ( que se têm como certos) daqui a muitos anos.

À luz disto, o Parque Nacional Yasuni, talvez o mais rico em biodiversidade do mundo, tem de ser sacrificado e a exploração petrolífera realizada apesar das promessas iniciais de não o fazer,  não só porque a comunidade internacional não colaborou na proposta de não-exploração, como sobretudo porque os rendimentos previstos decorrentes da exploração estão já vinculados aos investimentos em curso e o seu financiamento por países estrangeiros (China) tem como garantia a exploração do petróleo. Nesta linha, os povos indígenas que se têm oposto à exploração são vistos como obstáculos ao desenvolvimento, vítimas da manipulação de dirigentes corruptos, políticos oportunistas, ONGs ao serviço do imperialismo ou jovens ecologistas de classe média, eles próprios manipulados ou simplesmente inconsequentes.

A eficiência exigida para realizar tão vasto processo de modernização não pode ser comprometida pelo dissenso democrático. A participação cidadã é de saudar mas só se for funcional e isso, por agora, só pode ser garantido se receber uma orientação superior do Estado, ou seja, do governo. Com razão, Correa sente-se vítima dos média que, como acontece em outros países do continente, estão ao serviço do capital e da direita. Tenta regular os meios de comunicação e a regulação proposta tem aspetos muito positivos mas ao mesmo tempo tensiona a corda e polariza as posições de tal maneira que daí à demonização da política em geral vai um passo curto. Jornalistas são intimidados, ativistas de movimentos sociais (alguns com larga tradição no país) são acusados de terrorismo e a consequente criminalização do protesto social parece cada vez mais agressiva. O risco de transformar adversários políticos, com quem se discute, em  inimigos que é necessário eliminar, é grande. Nestas condições, o melhor exercício democrático é o que permite o contacto direto de Correa com o povo, uma democracia plebiscitária de tipo novo. À semelhança de Chavez, Correa é um brilhante comunicador e as suas "sabatinas" semanais são um exercício político de grande complexidade. O contacto direto com os cidadãos não visa que estes participem das decisões mas antes que as ratifiquem por via de uma socialização sedutora desprovida de contraditório.

Com razão, Correa considera que as instituições do Estado nunca foram social ou politicamente neutras, mas não é capaz de distinguir entre neutralidade e objetividade assente em procedimentos. Pelo contrário, acha que as instituições do Estado se devem envolver ativamente nas politicas do governo. Por isso, é natural que o sistema judicial seja demonizado se toma alguma decisão considerada hostil ao governo e celebrado, como independente, no caso contrário; que o Tribunal Constitucional se abstenha de decidir temas polémicos (casos La Cocha sobre  a justiça indígena) se as decisões puderem prejudicar o que se julga ser o superior interesse do Estado; que um dirigente do Conselho Nacional Eleitoral, encarregado de verificar as assinaturas para uma consulta popular sobre a não-exploração do petróleo no Yasuni, promovida pelo movimento Yasunidos, se pronuncie publicamente contra a consulta antes de a verificação ser feita.  A erosão das instituições, que é típica do populismo, é perigosa sobretudo quando à partida elas já não são fortes devido aos privilégios oligárquicos de sempre. É que quando o líder carismático sai de cena (como aconteceu tragicamente com Hugo Chavez) o vazio político atinge proporções incontroláveis devido à falta de mediações institucionais.

E isto é tanto mais trágico quanto é certo que Correa vê o seu papel histórico como o de construção do Estado-nação. Em tempos de neoliberalismo global, o objetivo é importante e mesmo decisivo. Escapa-lhe, no entanto, a possibilidade de esse novo Estado-nação ser institucionalmente muito diferente do modelo do Estado colonial ou do Estado criolo e mestizo que lhe sucedeu. Por isso, a reivindicação indígena da plurinacionalidade, em vez de ser manejada com o cuidado que a Constituição recomenda, é demonizada como perigo para a unidade (isto é, a centralidade) do Estado. Em vez de diálogos criativos entre a nação cívica, que é  consensualmente a pátria de todos, e as nações étnico-culturais, que exigem respeito pela diferença e relativa autonomia, fragmenta-se o tecido social, centrando-o mais nos direitos individuais do que nos coletivos. Os indígenas são cidadãos ativos em construção mas as organizações indígenas independentes são corporativas e hostis ao processo. A sociedade civil é boa desde que não-organizada. Uma insidiosa presença neoliberal no interior do pós-neoliberalismo?

Trata-se, pois, do capitalismo do século XXI. Falar de socialismo do século XXI é, por enquanto e no melhor dos casos, um objetivo longínquo.  À luz destas características e das contradições dinâmicas que o processo dirigido por Correa contém, centro-esquerda é talvez a melhor maneira de o definir politicamente.

Talvez o problema esteja menos no Governo do que no capitalismo que ele promove. Contraditoriamente, parece compor uma versão pós-neoliberal do neoliberalismo. Cada remodelação ministerial tem produzido o reforço das elites empresariais ligadas à direita. Será que o destino inexorável do centro-esquerda é deslizar lentamente para a direita, tal como sucedeu com a social-democracia europeia? Seria uma tragédia para o país e o continente se tal ocorresse. Correa criou uma mega-expectativa mas perversamente o modo como pretende que ela não se transforme numa mega-frustração corre o risco de afastar de si os cidadãos, como ficou demonstrado nas eleições locais de 23 de fevereiro de 2014, um forte revés para o movimento Alianza País que o apoia. Custa a acreditar que o pior inimigo de Correa seja o próprio Correa. Ao pensar que tem de defender a revolução cidadã de cidadãos pouco esclarecidos, mal intencionados, infantis, ignorantes, facilmente manipuláveis por politiqueiros oportunistas ou por inimigos oriundos da direita, Correa corre o risco de querer fazer a revolução cidadã sem cidadãos ou, o que é o mesmo, com cidadãos submissos. Ora os cidadãos submissos não lutam por aquilo a que têm direito, apenas aceitam o que lhes é dado.

Será que Correa ainda pode resgatar a grande oportunidade histórica de realizar a revolução cidadã que se propôs? Penso que sim, mas a margem de manobra é cada vez menor e os verdadeiros inimigos da revolução cidadã parecem estar, não cada vez mais longe do Presidente, mas antes cada vez mais próximos. Solidários com a revolução cidadã todos nós devemos contribuir para que tal não se concretize.

Para isso, identifico três tarefas básicas.  Primeiro,  há que democratizar a própria democracia, combinando democracia representativa com verdadeira democracia participativa. A democracia que é construída apenas a partir de cima corre sempre o risco de se transformar em autoritarismo em relação aos de baixo. Por muito que custe a Correa, terá de sentir suficiente confiança em si para, em vez de criminalizar o dissenso (sempre fácil para quem tem o poder), dialogar com os movimentos e as organizações sociais e com os jovens yasunidos, mesmo se os considerar "ecologistas infantis". Os jovens são os aliados naturais da revolução cidadã e da reforma do ensino superior e da política científica se esta for levada a cabo com sensatez. Alienar os jovens parece suicídio político.

Segundo, há que desmercantilizar a vida social, não só através de política sociais, como através da promoção das economias não-capitalistas, camponesas, indígenas, urbanas, associativas. Não é certamente consonante com o  buen vivir entregar bonos às classes populares para que elas se envenenem com a comida-lixo (comida-basura) do fast-food que inunda os centros comerciais. A transição para o pós-extrativismo faz-se com algum pós-extrativismo e não com a intensificação do extrativismo. O capitalismo entregue a si mesmo só transita para mais capitalismo, por mais trágicas que sejam as consequências.

Terceiro, há que compatibilizar a eficiência dos serviços públicos com a sua democratização e descolonização. Numa sociedade tão heterogénea quanto a  equatoriana há que reconhecer que o Estado, para ser legítimo e eficaz, tem ele próprio de ser um Estado heterogéneo, convivendo com a interculturalidade e, gradualmente, com a própria plurinacionalidade, sempre no marco da unidade do Estado garantida pela Constituição. A pátria é de todos mas não tem de ser de todos da mesma maneira. As sociedades que foram colonizadas ainda hoje estão divididas entre dois grupos de populações: os que não podem esquecer e os que não querem lembrar. Os que não podem esquecer são aqueles que tiveram de construir como sua a pátria que começou por lhes ser imposta por estrangeiros; os que não querem lembrar são aqueles a quem custa reconhecer que a pátria de todos tem, nas suas raízes, uma injustiça histórica que  está longe  de ser eliminada e que é tarefa de todos eliminar gradualmente.

A SILENCIOSA SOVIETIZAÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS




Há sessenta anos, censura a “Doutor Jivago” resultou em desastre midiático. Hoje, russos são mais livres, na vida privada, que norte-americanos

Paul Craig Roberts – Outras Palavras - Tradução Cauê Seignemartin Ameni

A propaganda americana no período da Guerra Fria teve pouco, ou nada, a ver com o colapso da União Soviética. No entanto, ao dramatizar as mentiras soviéticas o mundo ficou cego com as de Washington.

Quando as autoridades soviéticas recusaram-se a publicar Doutor Jivago, obra do destacado escritor soviético Boris Pasternak, a CIA transformou o gesto num golpe midiático. Um jornalista italiano e membro do Partido Comunista soube do manuscrito censurado e se ofereceu para levá-lo a um editor de Milão, próximo dos comunistas: Giangiacomo Feltrinelli, que publicou o livro em italiano em 1957, apesar das objeções soviéticas. Feltrinelli acreditava que o Doutor Jivago era uma obra-prima e que o governo da União Soviética era tolo, ao não capitalizar em seu favor a obra de um grande escritor. Em vez disso, o Kremlin, dogmático e inflexível, caiu na arapuca da CIA.

Os soviéticos fizeram tanta sujeira com o livro, que a controvérsia elevou o perfil da obra. De acordo com documentos recentemente revelados pela CIA, o órgão de espionagem norte-americano vislumbrou uma oportunidade para os cidadãos soviéticos se perguntarem por que o romance de um proeminente escritor russo só estava disponível no exterior.

A CIA organizou uma edição na língua russa, publicada e distribuída aos cidadãos soviéticos na Feira Mundial de Bruxelas, em 1958. O golpe midiático foi consumado quando Pasternak recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em outubro de 1958.

O uso do romance de Pasternak para minar a confiança dos cidadãos soviéticos em seu governo continuou até 1961. Naquele ano eu era um membro do programa de intercâmbio de estudantes EUA / URSS. Fomos encorajados a levar conosco cópias de Doutor Jivago.

Disseram-nos que era improvável algum inspetor aduaneiro soviético saber inglês, e ser capaz de reconhecer o título dos livros. Se perguntassem algo, fomos instruídos a responder que se tratava de “leitura de viagem”. Se as cópias forem reconhecidas e confiscadas, não devíamos nos preocupar. Elas eram muito valiosas para serem destruídas. Os funcionários iriam lê-las primeiro, e vendê-las em seguida no mercado negro — uma forma eficiente para espalhar a distribuição.

Leia a reportagem do Washington Post a respeito das ações da CIA aqui; e os documentos secretos da agência, aqui.

O que me impressiona sobre os memorandos da CIA é como o governo dos Estados Unidos de hoje se assemelha com o governo soviético de 1958. A chefe da Divisão Soviética da CIA descreve, numa análise de julho de 1958, por que Doutor Jivago era uma ameaça para o governo soviético. A ameaça residia na “mensagem humanista de Pasternak”, segundo a qual “cada pessoa tem o direito a uma vida privada e merece respeito como ser humano”.

Diga isso para a Agência de Segurança Nacional (NSA), para os detidos em Guantánamo, para os torturados nas prisões pela CIA. Nos Estados Unidos, a privacidade individual não existe mais. A NSA coleta e armazena cada e-mail, cada compra com cartão de crédito, cada conversa telefônica, todas as pesquisas de internet, cada uso das mídias sociais de todos os cidadãos. Pasternak tinha muito mais privacidade do que qualquer norte-americano hoje. Os viajantes soviéticos jamais foram submetidos a tateamento genital ou a porno-scannersAs penalidades impostas aos cidadãos soviéticos, por dizerem verdades inconvenientes ao governo, não eram mais graves do que as sanções impostas a Bradley Manning, Julian Assange e Edward Snowden.

E hoje, os cidadãos russos são mais livres em sua vida privada do que os norte-americanos. A imprensa russa é mais vívida e crítica ao governo do que a imprensa norte-americana…

Escrevi em uma das minhas colunas que, quando o comunismo alemão se dissolveu, a Stasi [temida polícia secreta da Alemanha Oriental] mudou-se para Washington…

Na imagem: “Desfrutando a maravilhosa sensação de segurança nos Estados Unidos” (charge de Monte Wolverton, no Alternet)

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