terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

A COSMOVISÃO DE BOLIVAR (3)




Rui Peralta, Luanda

Venezuela

I - A situação política da Venezuela oscila em torno da saúde de Hugo Chávez. Com particular incidência na estrutura politica e na incipiente mas palavrosa superestrutura ideológica que suporta o processo revolucionário bolivariano em curso no país. O actual momento poderá ser caracterizado de várias formas, sob o ponto de vista da estrutura de suporte político: os mais ansiosos e apressados vivem numa fase em que “o socialismo não acaba de chegar”. São acompanhados de perto por algumas tendências da superestrutura ideológica que divagam retoricamente sobre a “transição indefinida”.

Ainda na superestrutura ideológica existem os que reflectem sobre o facto de afinal o “socialismo do século XXI ser apenas uma capa latina do capitalismo de estado”, seguidos de perto pelas tendências da estrutura politica que falam em “cesarismo” (o mais correcto seria a híper-liderança, mas isso tem outras causas, como iremos ver depois) e as tendências mais realistas na estrutura politica e na superestrutura ideológica que começam a reflectir sobre se o processo revolucionário bolivariano não será uma nova forma de reformismo desenvolvimentista.

Em suporte desta ideia alguns avançam para um cenário de nacionalismo burgues, construído em torno de Bolivar, um populismo multi-discursivo, que de socialismo do seculo XXI apenas contem a retorica, sendo na práctica uma reposição histórica do pensamento burgues de Bolivar e de contextos sociais provenientes de outras épocas e regiões, como o nacionalismo turco do período pós império otomano ou os populismos latino-americanos dos anos trinta do seculo XX.

II - Qualquer um destes cenários ou reflexões contem uma base, mais solida ou menos solida, de suporte. E isto porque o processo revolucionário em curso na Venezuela é isso tudo que atrás foi dito ao que há ainda a acrescentar algumas questões que ainda não forma referidas. Mas iniciemos pela primeira: “o socialismo não acaba de chegar!”Esta afirmação poderá revelar um caso de impaciência (daquela impaciência que antecede o desespero), mas pode também ser reveladora de um certo mal-estar do proletariado venezuelano (peço desculpas aos meus companheiros do socialismo do seculo XXI por utilizar um termo e um conceito, melhor uma figura, que segundo eles é do século XIX, mas presumo que os pobres, como lhes gostam de chamar no socialismo do século XXI, não são detentores de propriedade, dai serem proletários), criado por promessas incumpridas ou por compromissos assumidos cujo prazo já passou e que uma das partes teima em esquecer.

A principal desconfiança dos que partilham a tese “o socialismo não acaba de chegar” tem a ver com o comportamento de alguns ministros, alcaides, candidatos a alcaides, deputados, governadores, dirigentes da estrutura partidária de suporte ao processo bolivariano, gente que rodeia Chávez. Ou seja: “por Chávez já estaríamos no socialismo, mas estes tipos que o rodeiam…”Este não é um fenómeno original da Venezuela. Passa-se um pouco por todo o lado e tem diversos aproveitamentos e diversas leituras políticas e sociológicas.

Aqui em Angola é frequente ouvir: “A culpa não é do presidente. O problema está nos que o rodeiam” E acredito que até mesmo na Coreia do Norte, por entre o silêncio nocturno das quatro paredes da casa, os cidadãos também possam comentar, sussurrando que o problema não é o querido e amado líder, mas sim, o partido e os que rodeiam o líder. Aliás isto é patente em todo o mundo político e em todas as sociedades humanas. A figura do líder continua a ser a figura a que se recorre quando é necessário lembrar o compromisso assumido, o contracto social e portanto enquanto o contracto estiver em vigor, mesmo que não esteja a funcionar, enquanto a figura do líder for a do compromisso assumido, o contracto não é rasgado.

Esta questão transporta-nos directamente para a questão da híper-liderança (o cesarismo, o culto da personalidade e outras figuras de retorica inerentes ás estruturas organizativas carismáticas, no sentido weberiano do conceito), mas primeiro quero referir uma questão que é adjacente á figura do “socialismo que não acaba de chegar” e que é expressa na “transição indefinida”.

III - Dizer “transição indefinida” é praticar pura retórica. Todas as transições são indefinidas. Seja nos processos biológicos, químicos, físicos, sociais, psicológicos, as fases de transição são sempre indefinidas. Sabe-se de onde se parte mas não se sabe onde chega, porque pelo caminho existem infinitas variáveis que não podem ser equacionadas no ponto de partida, porque apenas surgem durante a transição e são produtos da especificidade do processo de transição.

No caso especifico do processo bolivariano da Venezuela, Chávez arranca com o apoio popular massivo. A sociedade venezuelana tinha passado por uma crise sem precedentes, que afectou todos os níveis da estrutura social, politica e económica. A economia em crise, a classe politica desmascarada, as elites económicas a ausentarem-se do país, transportando consigo os capitais, o estado em decomposição, o aparelho militar á deriva, assim como todo o aparelho repressivo do estado, enfim, quando Chávez assume o poder, com o apoio popular, a Venezuela era uma sociedade traumatizada.

Chávez foi portador de um projecto emancipador, de uma palavra de esperança, com um discurso que era compreendido e sentido pelas mais amplas camadas da população, um homem cujo passado inspirava confiança e que assumia de forma corajosa a transformação necessária. Se analisarmos o que foi feito desde a chegada ao poder de Chávez, ou seja, desde o primeiro momento da fase de transição, o resultado é positivo. A Venezuela de hoje já não é uma sociedade traumatizada, as amplas camadas da população vive em melhores condições, a escola tornou-se uma realidade, a saúde pública assumiu forma de serviço público social, a habitação deixou de ser um monopólio do mercado e torna-se um direito, enfim a fase de transição, desde o momento zero até ao momento actual, já produziu resultados concretos e palpáveis.

Se os objectivos finais, ou cronológicos, outros ainda não foram atingidos, ou não foram atingidos dentro do tempo previsto, isso tem a ver com as infinitas variáveis que já referimos, geradas pela dinâmica do processo. É obvio que têm de ser efectuados reajustamentos e é óbvio estes processos não são lineares, comportam contradições e geram contradições. Da resolução dessas contradições comportadas e geradas depende o avanço do processo, se avança mais rápido ou mais lentamente, ou se é reajustado, adiando objectivos ou atingindo objectivos mais cedo, ou redefinindo prioridades.

IV - Esta questão da “transição indefinida” levou alguns, que não suportam a indefinição, a arranjarem um percurso. Pesaram as circunstâncias, mediram os comportamentos da nova camada burocrática e concluíram: “a transição vai-nos conduzir ao capitalismo estado!” Analisemos com cautela esta possibilidade, que representaria uma crueldade histórica: acontecer ao socialismo latino-americano do século XXI o que aconteceu ao socialismo real.

Atendendo ao contexto internacional em que se move o processo revolucionário venezuelano, situado numa região onde o capitalismo BRICS, representado pelo Brasil, mas com fortes candidatos na zona a pretenderem acrescentar-se á sigla, será com certeza uma tentação para as camadas burocráticas, que ascenderam com o actual processo bolivariano. Mas atenção: não será um capitalismo de estado o modelo que se implantará na Venezuela, caso a alternativa socialista não prevaleça e morra em função das suas contradições.

Será o tal modelo de capitalismo BRICS, em que o Estado tem uma função importante na mobilização de recursos e na definição de estratégias, depois executadas pela nova burguesia nacional (globalizada, porque inserida nos mercados internacionais através das parcerias), proveniente do processo bolivariano. E esta é uma via que permanecerá na encruzilhada pantanosa da actual fase de transição.

Se as dinâmicas socialistas suplantarem as dinâmicas capitalistas originadas pelo processo de emancipação da Venezuela, o socialismo prevalecerá como opção de desenvolvimento e far-se-á sentir através da socialização da produção. Se as dinâmicas capitalistas prevalecerem, agrupadas como estão em torno do aparelho do estado e da estrutura política do processo revolucionário e dominantes na superestrutura ideológica (o socialismo XXI é um produto hibrido, como o socialismo democrático), então a aliança táctica entre as novas elites aspirantes á posição de burguesia nacional e as velhas estruturas e representantes da burguesia nacional tradicional e oligárquica da sociedade venezuelana (cujo aparelho ainda não foi destruído), o capitalismo BRICS (que está patente na ovulação do processo bolivariano) será a resultante do processo.

V - Analisemos então a questão da híper-liderança, que alguns definem por cesarismo (a aplicação deste conceito na politica actual é errado. Na actualidade o cesarismo poderia germinar nos USA, na Federação Russa ou na China, mas não nos restantes sistemas. É que o cesarismo implica um aparelho estatal forte, sob o ponto de vista da estrutura repressiva: forças armadas e policia, para alem de apenas ser possível em potencias económicas. Portanto só em sociedades que aliem estes factores, o cesarismo pode tornar-se uma realidade).

A híper-liderança é um fenómeno transversal na estrutura politica. Tanto existe em regimes estatais como de mercado, tanto existe nas formas socialistas de desenvolvimento, como no capitalismo. Comparemos, por exemplo, a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, ao nível da liderança. O papel do líder na Coreia do Norte é exacerbado. O líder é grande, querido e amado. Está em todo o lado, sabe tudo e aparentemente comanda tudo. A sua omnipresença e omnisciência é incontestável, conseguida através da máquina de propaganda e dos serviços de informação. Mas a sua omnipotência, não.

Os inúmeros casos existentes de híper-liderança não são despóticos, por uma simples razão: a dinâmica da circulação de elites no capitalismo, obriga, mesmo nos sistemas que no seu discurso e praxis estão afastados dos modelos capitalistas, obriga a um dialogo nos meios do poder, a uma partilha funcional, por muito que isso custe ao amado líder. Mas é essa partilha que lhe permite assumir a função de grande líder e ele depende desse compromisso, entre partido e exercito, por exemplo.

Na Coreia do Sul esta estrutura carismática não é visível ao nível do poder político mas é práctica comum no poder económico. As grandes corporações sul-coreanas são todas lideradas por excelsos líderes, que comportam os mesmos títulos dos seus compadres políticos do norte.

Não é objectivo deste texto discutir as razoes antropológicas (para ser mais exacto deveria escrever sociobiológicas, porque não são um exclusivo das sociedades humanas) deste comportamento, pelo que esta abordagem ligeira parece-me ser suficiente para explicar o que vem a seguir.

Já foi referido que a figura do líder é uma figura do compromisso assumido. O processo venezuelano sempre teve em Chávez a figura impulsionadora, o homem que assumiu um novo contrato social e que dinamizou novos conceitos de soberania popular e de democracia participativa (ou seja, reanimou o procedimento democrático). Não foi uma força política organizada, uma estrutura político-militar ou um momento eleitoral de circunstância que forjaram a liderança de Chávez. Foi a dinâmica popular, apoio massivo, a soberania popular que o assumiu como líder.

Neste sentido a Venezuela é um caso diferente da Líbia de Kadhafi, (outro líder que não foi consequência de uma organização politica, ou que tivesse alguma a suportá-lo. Como se sabe a única instituição criada pela revolução líbia dos Oficiais Livres foi o Congresso Popular e era essa a instituição base. A figura de Kadhafi foi, também ela, assumida pelas amplas camadas da população líbia e pelos diversos grupos tribais durante o processo revolucionário), da Síria de Bashar (a liderança do pai de Bashar, Afez al Assad, foi uma liderança estabelecida através do partido BAAS sírio), ou do Iraque de Hussein (que também não foi uma liderança assumida pela soberania popular mas pelo partido BAAS iraquiano) e mesmo diferente da liderança de Fidel, embora este seja um caso completamente aparte a nível mundial e que tem muito a ver com a especificidade da sociedade cubana no momento em que se realiza o assalto ao Quartel de Moncada.

Chávez foi um líder naturalmente aceite pelo proletariado venezuelano, que deposita nele a confiança necessária enquanto perdurar o seu compromisso com o contracto social estabelecido no processo de emancipação. No dia que terminar este apoio, Chávez não é líder de nada e sucumbirá aos golpes que a nova camada burocrática, nascida do processo bolivariano, lhe infligir. Quanto muito procurará a solução turca, mas será que a espiral dinâmica da burguesia nacional venezuelana necessitará dele? (Continua)

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CIENTISTA POLÍTICO COMENTA CANDIDATURA DE DILMA À REELEIÇÃO




Lucas Bessi, especial para a RFI – foto REUTERS/Ueslei Marcelino

O ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva lançou na última quarta-feira, 20 de fevereiro, durante um evento comemorativo dos dez anos do PT no comando do governo federal, a candidatura de Dilma Rousseff à reeleição em 2014. 

A RFI conversou com o professor de Ciências Políticas e brasilianista da Sorbonne, Stéphane Monclaire, que comenta essa candidatura. Para o cientista político, mesmo se Dilma faz parte do Partido dos Trabalhadores, ela não deve associar sua campanha ao PT.


BRASIL PODE COMPRAR SISTEMA ANTIAÉREO RUSSO POR US$ 1 BILHÃO




Patricia Moribe – RFI – foto REUTERS/Ueslei Marcelino

Em visita ao Brasil, o primeiro-ministro russo, Dimitri Medvedev, assinou vários acordos bilaterais com o governo brasileiro. Entre eles, um acordo de intenções de compra de um sistema de defesa antiaéreo

A aproximação de grandes eventos internacionais, como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 podem ser uma das motivações, além da exigência brasileira de obter transferência de tecnologia. Ouça a análise de Nelson During, editor-chefe da publicação Defesanet, voltada para assuntos de estratégia, defesa e inteligência.

- Áudio

HUMAN RIGHTS WATCH DENUNCIA CONDENAÇÕES ARBITRÁRIAS EM ANGOLA





Num relatório divulgado em Joanesburgo, África do Sul, a Human Rights Watch denuncia que desde o dia 1 Fevereiro, a polícia tem feito detenções arbitrárias de pessoas vítimas de despejos forçados no Maiombe, no município de Cacuaco.

A Human Rights Watch denunciou, nesta terça-feira, a detenção de pelo menos 40 pessoas, acusadas de ocupação ilegal de terras, a sua condenação em julgamentos sumários, e a penas de três a oito meses de prisão ou a pagamento de multas elevadas, que chegam aos 800 dólares.

A denúncia foi tornada pública num relatório da HRW divulgado em Joanesburgo, África do Sul. A organização avança que desde o dia 1 de Fevereiro, as forças policiais têm feito detenções arbitrárias e despejos forçados no Maiombe, no município de Cacuaco. Os despejos forçados tinham já sido denunciados pela Amnistia Internacional e por organizações como a angolana SOS Habitat.

De referir ainda, que no sábado passado, forças de segurança impediram uma delegação da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), principal partido da oposição, de se reunir com a comunidade de Maiombe. A delegação era chefiada pelo líder do partido, Isaías Samakuva, que pediu um inquérito ao facto de não ter podido visitar o local.

Lisa Rimli, investigadora da secção África da Human Rights Watch, dá-nos as conclusões do relatório e afirma que com estas denúncias a organização pretende fazer pressão sobre as autoridades angolanas.

Guiné - Bissau: A TENSÃO ESTÁ A SUBIR ENTRE PARLAMENTARES E GOVERNO





Depois das denúncias proferidas, na Segunda-feira, pelo presidente da Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau,  hoje foi a vez de e Ministro das Finanças vir desmentir a existência de despesas não orçamentadas.

A tensão está a subir em Bissau. As chefias militares reuniram-se hoje com os deputados na Assembleia Nacional Popular, num encontro que os militares classificaram de rotineiro.

No entanto, esta reunião surge um dia depois de o presidente da Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau, Ibraima Sory Djaló, ter acusado o Governo de governar sem programa e sem orçamento. Por outro lado,  o Ministro das Finanças, Abubacar Demba Dahaba, veio hoje desmentir, em conferência de imprensa, a existência de « despesas não orçamentadas », que podem atingir os 15 biliões de francos CFA ( 17 mihões de euros).

O correspondente da RFI em Bissau, Mussá Baldé, dá pormenores da situação que se vive no País.

Ramos-Horta apresenta aos líderes de África ideias para resolver crise na Guiné-Bissau




FP – VM - Lusa

Bissau, 26 fev (Lusa) - O representante especial do Secretário-Geral das Nações Unidas em Bissau, José Ramos-Horta, vai apresentar na quarta-feira aos chefes de Estado dos países da África Ocidental as ideias que defende para a resolução da crise na Guiné-Bissau.

Ramos-Horta participa na cimeira de chefes de Estado da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) que decorre na quarta e na quinta-feira em Yamoussoukro (Costa do Marfim), para a qual foi convidado pelo Presidente da Nigéria.

Ramos-Horta reuniu-se com o Presidente nigeriano em Abuja, na segunda-feira, a quem manifestou a intenção de trabalhar "em estreita colaboração" com a CEDEAO, em parceria com outras organizações internacionais como a União Africana, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e a União Europeia, para ajudar a Guiné-Bissau a alcançar uma paz duradoura.

Segundo um comunicado do Gabinete Integrado das Nações Unidas para a Consolidação da Paz na Guiné-Bissau (UNIOGBIS), Jonathan convidou Ramos-Horta para participar na cimeira ordinária da CEDEAO da Costa do Marfim, que na quarta e na quinta-feira vai discutir a questão da Guiné-Bissau e do Mali.

De acordo com a imprensa, Goodluck Jonathan afirmou a Ramos-Horta o envolvimento da Nigéria na resolução da crise na Guiné-Bissau, sob a égide da CEDEAO e da ONU.

"Comprometemo-nos a resolver esta crise, por conseguinte vamos trabalhar convosco sob a égide da CEDEAO a fim de restabelecer a paz e a democracia na Guiné-Bissau", disse o Presidente nigeriano a Ramos-Horta.

Ramos-Horta, prémio Nobel da Paz e ex-Presidente de Timor-Leste, está em Bissau desde dia 13 para chefiar o UNIOGBIS.

*Publicado em TIMOR LOROSAE NAÇÃO. Destaque dos títulos mais recentes:


AS UNHAS DE GEL DE PASSOS COELHO




Tiago Mesquita – Expresso, opinião

"O feitiço virou-se contra o feiticeiro. Em protesto contra a nova legislação que penaliza com multas até 2000 euros quem não pedir facturas, muitos consumidores começaram a pedir facturas com o número de identificação fiscal de Pedro Passos Coelho. Os dados do primeiro-ministro estão a ser divulgados em SMS e emails que se tornaram virais. As redes sociais estão a propagar o protesto.

Segundo o Correio da Manhã, deram entrada no sistema e-factura "milhares de facturas" com o número de contribuinte do primeiro-ministro, passadas em restaurantes, cabeleireiros e oficinas de automóveis - totalizando milhões de euros em despesas." Público

Pois é, isto de legislar à portuguesa tem quase sempre uma resposta... à portuguesa. A originalidade sempre foi uma das facetas do povo português e isso está a ficar demonstrado nos balcões de pastelaria e nas mesas de restaurante, ao som dos secadores e com um cheiro intenso a óleo de motor impregnado no ar. O protesto, apesar de ilegal, pois configura um crime de falsas declarações, é de tal forma criativo que jornais como o El Pais e oFinancial Times já o destacaram nas suas edições. Uma página criada no Facebook denominada "As Facturas do Coelho" vai dando conta das "alegadas" despesas privadas de algumas figuras de Estado.

E ao que parece não é só Pedro Passos Coelho a fazer unhas de gel todo o santo dia, depois de comprar vários quilos de cenouras a granel. Enquanto o primeiro-ministro comprava um corpete e preservativos que davam para um regimento numa sex-shop do Bairro Alto, o ministro Miguel Relvas, em Campolide, colocava extensões pela quinta vez em apenas uma semana. Ao mesmo tempo, comprava um chupa-chupa em Évora.Vítor Gaspar muda o óleo do automóvel de hora a hora e bebe mil e quinhentos cafés por dia, facto que não parece ajudá-lo em relação à acuidade das suas previsões orçamentais, nem tão pouco parece a cafeína em excesso acelerar-lhe o discurso. Passa a vida a recauchutar os pneus e o défice.

A ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, também não sobreviveu à onda das facturas: deve ter mais pontos da Galp que uma empresa de camionagem. O ministro Paulo Portas, a julgar pelo dinheiro que gasta em fast food, deve estar a pesar trezentos e cinquenta quilos. A caminho de Viseu, comprou um rapa-tachos.

Mas não fica por aqui. Desde que a legislação se tornou moda pelo célebre discurso do "tomar no cu" proferido pelo ex-secretário de Estado da Cultura, insurgindo-se contra a máquina fiscal do Estado, até o Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, parece ter sido "obrigado" a aderir ao e-factura. Um brushing, meia-perna e virilhas, seguidos de um almoço farto na estrada da Guia. Ironias do destino, seguir-se-á a mais que provável fiscalização por gastos superiores aos rendimentos declarados. Se é de lei, é para cumprir.

Portugal está a desperdiçar o seu melhor património, os portugueses - Helder Macedo




DP – MAG - Lusa

Ao escritor Helder Macedo, que acaba de publicar o seu último romance, “Tão longo amor tão curta a vida”, custa-lhe ver Portugal desperdiçar aquele que considera ser o seu melhor património, os portugueses.

“Está-se a desinvestir no que Portugal tem e que é mais importante… a gente”, afirmou o escritor, em entrevista à Lusa, em vésperas de apresentação da sua última obra, marcada para quarta-feira, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. “Portugal não tem petróleo, não tem diamantes, não tem ouro, tem gente, e gente só pode ser valorizada através de cultura e de educação”.

Helder Macedo, 77 anos, é o celebrado autor de obras de ficção como “Partes de África” ou “Pedro e Paula”, poeta, estudioso de Camões e de Cesário Verde, e professor de Literatura Portuguesa no King's College de Londres, onde vive há anos.

“Não estou exilado, eu vivo em Inglaterra por opção”, afirma o escritor que, durante a ditadura, foi censurado e preso pela PIDE, a polícia política do regime, e teve de se exilar, para regressar a Portugal após o 25 de Abril, chegando a ocupar cargos públicos como o de secretário de Estado da Cultura, no Governo de Maria de Lurdes Pintasilgo.

O escritor esteve no encontro literário Correntes d’Escritas, que decorreu na Póvoa de Varzim, entre 21 e 23 de fevereiro, e logo no seu discurso, na cerimónia de abertura, afirmou que Portugal é “um país que é perdulário, como só os países pobres conseguem ser”.

O seu último romance, lançado durante o encontro na Póvoa, é um “thriller” psicológico em que o narrador, um escritor residente em Londres, recebe, uma noite, a visita inesperada de um diplomata seu amigo, que afirma correr perigo, e lhe conta uma intrincada história de sequestro e de amor de uma mulher, que tinha desaparecido no dia da queda do Muro de Berlim. O narrador acaba por desenvolver a história, tentando preencher as lacunas da história do diplomata.

Este narrador coincide com o autor, admite Helder Macedo, mas “torna-se uma personagem fictícia a partir do momento que está a contracenar com alguém que não existe, que é o embaixador que o procura”.

O título, “Tão longo amor tão curta a vida”, foi buscá-lo a um soneto de Camões e condensa, de alguma forma, “a dialética presente no próprio livro, que contém uma demanda psicológica, em que há esta personagem à procura do seu amor perdido”.

A viver há muitos anos em Londres, acredita que o seu julgamento lhe permite ter alguma objetividade. “Mas, por outro lado, não sou tão objetivo como isso, porque eu sou português, sinto-me português e lastimo profundamente o que está a acontecer a Portugal”, afirmou.

Acredita que, com a democracia, houve “um investimento que funcionou em termos de cultura” e de educação - temos excelentes diplomados, afirma -, mas lamenta “que governantes responsáveis digam aos diplomados portugueses que o melhor é emigrarem, da mesma forma que Salazar mandava os portugueses trabalhar nas fábricas em França ou limpar casas na Alemanha, porque não cabiam em Portugal”.

Um país que passa a depender das remessas dos emigrantes ou do turismo, passa, nessa altura, para Helder Macedo, “a ser um país auto colonizado e autofágico, que se está a destruir e isso é terrível”.

Os problemas do país, para o escritor, são “genéricos”, não podem ser limitados à qualidade das suas elites, até porque “temos elites culturais, mas não são quem governa o país”.

Quem governa o país, sustenta, “são os medíocres de carreira que, através dos aparelhos partidários, chegam a situações de poder, sem ter direito a isso; basta ver o atual governo que até aldrabões ao nível mais charro tem, que dizem que têm cursos que não têm… Eu estou-me nas tintas para que tenham cursos, mas não estou nas tintas para que mintam”.

“Tão longo amor tão curta a vida” vai ser apresentado pelo escritor, e pelo seu editor, Francisco Espadinha, quarta-feira, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, numa sessão com início marcado para as 18:30.

Fenprof compareceu no ministério, mas recusou reunir-se com secretário de Estado




IMA – MAG – Lusa - foto de Manuel Almeida

A Fenprof recusou reunir-se, hoje, com o secretário de Estado do Ensino e da Administração Escolar, por entender que os temas em discussão requeriam a presença “de alguém com capacidade para se comprometer politicamente”, ou seja, o próprio ministro.

“A insegurança com que os professores estão hoje nas escolas justifica que alguém com capacidade para se comprometer politicamente – e pensamos que é o senhor ministro da Educação – possa de facto assumir os compromissos, e dar as respostas que se exigem”, disse aos jornalistas o secretário-geral da Federação Nacional de Professores (Fenprof), Mário Nogueira.

Apesar de uma comitiva da Fenprof ter comparecido no Ministério da Educação, à hora prevista para a reunião com o secretário de Estado do Ensino e da Administração Escolar, João Casanova de Almeida, não se reuniu com este responsável do ministério.

A organização sindical mantém a exigência de o encontro ser com o ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, como tinha ameaçado ao longo da passada semana, dedicada a ações de luta em todo o país.

Nuno Crato encontra-se na China, até à próxima sexta-feira, em visita oficial.

Portugal: "Grândola Vila Morena" interrompe Marco António Costa em Braga




VCP - LIL – MSP – Lusa – foto José Sena Goulão

O secretário de Estado da Solidariedade e Segurança Social, Marco António Costa, foi hoje interrompido por um grupo de manifestantes que entoaram a “Grândola” quando o governante falava numa conferência na Universidade do Minho.

Com alguns enganos, os cerca de 20 manifestantes, do movimento “Quês se lixe a Troika”, cantaram a música de Zeca Afonso até ao fim.

No final, proferiram palavras de ordem como “a luta continua, o governo para a rua”.

A conferência integra-se nas comemorações dos 125 anos do Jornal de Notícias.

Portugal: A LIBERDADE ESTÁ A PASSAR POR AQUI




Nuno Ramos de Almeida – Jornal i, opinião

No dia 2 de Março, os que se opõem a um caminho que está a levar o país à miséria podem mostrar que esta política não pode continuar e que é preciso dar voz ao povo

O maior filósofo de origem portuguesa viveu em Amesterdão. Bento Espinosa e a família fugiram aos archotes da inquisição numa época em que a liberdade não existia em Portugal. Na sua obra defendeu que a soberania não tinha origem nas instituições, que a origem dessa estranha potência residia no povo em movimento. O povo não aprisionado em instituições era o excesso que estava na base do poder constituinte da liberdade. Diríamos hoje que a democracia tem de ser o regime em que o sujeito é o povo. Algo que é muito diferente da ditadura dos governantes. Os poderosos e os seus acólitos esqueceram convenientemente que a democracia não é apenas o acto de eleger um parlamento: só há democracia a sério se as pessoas tiverem a liberdade de se opor a políticas e governos injustos. A democracia mede-se pela possibilidade de dizer “não”.

O actual governo foi a eleições defender que baixava os impostos, não cortava nos subsídios e nos salários dos trabalhadores, não extorquia as reformas dos pensionistas e não ia despedir funcionários públicos e muito menos aumentar o desemprego.

Um dia depois de a troika aterrar para a sua sétima avaliação, sabemos que governo e troika mentiram e fizeram tudo ao contrário do que prometeram. As suas medidas estão a levar o país à ruína. No final de 2013 haverá cerca de 17,5% de desempregados nas estatísticas, mas o número real de pessoas que estarão no desemprego tocará os 25%. A maioria das pessoas estarão mais pobres e muitas serão obrigadas a deixar Portugal. A dívida externa será superior a 122% do produto interno bruto (PIB) e desde que os homens da troika aterraram em Portugal esse mesmo PIB terá descido mais de 7%.

Basta viver e trabalhar em Portugal para saber que esta política tem sido uma catástrofe. Um relógio parado acerta mais vezes nas horas que o governo de Vítor Gaspar nas projecções económicas. Chegou o momento de recusarmos um caminho que não votámos, que não discutimos e que vai hipotecar o futuro de muitas gerações.

A manifestação de 2 de Março, que está marcada para mais de 40 cidades, em Portugal e no estrangeiro, é esse momento. Se formos muitos os que sairmos à rua, vamos mostrar que a maioria das pessoas não quer este caminho. Há um governo, um parlamento e um Presidente da República da mesma cor política e que querem ser cegos e surdos à vontade dos portugueses, mas eles só conseguem governar se nós quisermos e se a nossa rejeição for invisível. A 2 de Março, do que se trata é de mostrar que não queremos mais esta situação e esta política.

Quando conquistámos a nossa liberdade, há mais de três décadas, fizemo-lo com um símbolo que era uma canção que nos lembrava que “o povo é quem mais ordena”. Neste momento é preciso relembrar àqueles que servem outros interesses que não os da população que em democracia o poder é do povo. E em momentos determinantes é preciso dar a voz ao povo.

Num belo texto de apoio à manifestação de 2 de Março, o poeta Manuel Gusmão escreveu que nós somos “a esperança que não fica à espera”:

“Quem pode ser no mundo tão quieto/Que o não movem nem o clamor do dia/Nem a cólera dos homens desabitados/Nem o diamante da noite que se estilhaça e voa/Nem a ira, o grito ininterrupto e suspenso/Que golpeia aqueles a quem a voz cegaram/Quem pode ser no mundo tão quieto/que o não mova o próprio mundo nele.”

A 2 de Março somos todos precisos para mover Portugal.

Editor-executivo

Escreve à terça-feira

*Áudio-Vídeo “A Liberdade Está a Passar Por Aqui” (Maré Alta)

A ITÁLIA À BEIRA DA INGOVERNABILIDADE




Em porcentagens absolutas, o vencedor é a centro-esquerda do Partido Democrático, mas os números desenham um futuro nebuloso. A Itália é, no momento, um país ingovernável. A Câmara de Deputados é da coalizão de centro-esquerda, mas o Senado pertence a Berlusconi. Isso trava praticamente todas as decisões que um futuro governo possa tomar. Todos os caminhos que restam são instáveis: formar um governo estável parece um milagre. O artigo é de Eduardo Febbro, direto de Roma.

Eduardo Febbro – Carta Maior

Roma - A Itália colocou um pé na fronteira da ingovernabilidade. Ao final das eleições legislativas realizadas domingo e segunda-feira, o Partido Democrático, movimento de centro-esquerda liderado por Luigi Bersani, ganhou as eleições, mas não o poder. A direita ressuscitada de Silvio Berlusconi e a poderosa emergência de uma força política contestadora que cresceu fora dos esquemas tradicionais da prática política deixaram a tímida esquerda italiana com uma escassa maioria para governar. Ninguém sabe hoje quem estará no poder amanhã. A centro-esquerda de Pier Luigi Bersani obteve 29,75% dos votos na Câmara de Deputados. Com isso, consegue o abono de 55% das cadeiras em jogo que o sistema outorga ao ganhador. No entanto, o caminho para o governo tropeça no Senado, onde o Povo da Liberdade, do patético Silvio Berlusconi, em coalizão com a racista Liga do Norte, faz sombra ao PD com 28,96% dos votos. Logo em seguida vem o Movimento Cinco Estrelas, do comediante genovês Beppe Grillo, que obteve 25,5% na Câmara de Deputados e 23,7% no Senado. O atual presidente do Conselho italiano, Mario Monti, ficou distante com cerca de 11% dos votos e perde assim muitas possibilidades de respaldar a centroesquerda em um futuro governo de coalizão.

As eleições não resolveram o dilema italiano e muitos prognosticaram segunda-feira à noite um retorno às urnas para dirimir a incerteza. As duas maiores surpresas desse pleito foram protagonizadas pelo movimento Cinco Estrelas e por Silvio Berlusconi. O primeiro porque conseguiu atrair centenas de milhares de eleitores enojados com o sistema político. O segundo é, indiscutivelmente, a potência eleitoral que Berlusconi ainda detém. Após vinte anos de escândalos de toda índole e há apenas alguns meses de ter deixado o país à beira do abismo moral e financeiro, Berlusconi, segue sendo o árbitro da política nacional. Pior ainda, não é improvável que seja ele quem consiga governar. Acossado pela justiça, com denúncias de conteúdo sexual e acusações de corrupção, Berlusconi sai das urnas com um êxito angustiante. As pessoas seguem acreditando em que as enganou e as manipulou como ninguém. Entre a oferta da centro-direta apresentada por Mario Monti e a direita escandalosa do “Cavaleiro”, a Itália preferiu o último.

Em porcentagens absolutas, o vencedor é a centro-esquerda do Partido Democrático, mas os números desenham um futuro nebuloso. A Itália é, no momento, um país ingovernável. A Câmara de Deputados é da coalizão de centro-esquerda, mas o Senado pertence a Berlusconi. Isso trava praticamente todas as decisões que um futuro governo possa tomar. Todos os caminhos que restam são instáveis: formar um governo estável parece um milagre. Pode-se também pensar em um acordo entre Bersani e o movimento Cinco Estrelas, mas não para governar e sim para mudar a lei dos partidos e, com uma legislação menos diabólica como método, voltar a votar.

O grande herói da noite eleitoral é indiscutivelmente Beppe Grillo. Nela recai um poder que abre um rombo na sólida frente dos partidos de governo italianos. O comediante zombou daqueles que governam e desprezam a sociedade. A Itália ingressou na noite de segunda-feira no seleto grupo de países europeus que, ao cabo de processos eleitorais celebrados em plena crise, terminam com partidos anti-sistema que obtém resultados parlamentares consequentes. O caminho foi aberto pela Grécia no ano passado, quando o movimento da esquerda radical Syriza, dirigido por Alexis Tsipras, esteve a ponto de formar o governo e depois, nas novas eleições realizadas em maio, obteve cerca de 20% dos votos. Syriza ficou como a segunda força política da Grécia, na frente do histórico e corrompido partido socialista grego, Pasok.

Quase simultaneamente, na França, a Frente de Esquerda, de Jean-Luc Mélenchon protagonizou uma penetração eleitoral espetacular par uma formação praticamente nova e em cujo interior há desde socialistas dissidentes, anarquistas libertários, ecologistas e comunistas. De uma maneira distinta, mas com um resultado mais espetacular, a Itália entrou na dissidência política. O movimento Cinco Estrelas, liderado pelo humorista Beppe Grillo, se içou a níveis desafiadores frente a uma casta política que funciona como esses sistemas de irrigação automática: só vive para si mesma, para preservar suas prerrogativas e benefícios. Cinco Estrelas rompeu o esquema. Beppe Grillo estragou a festa dos partidos de governo: o Partido Democrático, de Luigi Bersani, e o Povo da Liberdade, do sobrevivente de todas as batalhas e golpes baixos nos últimos 20 anos, o ex-presidente do Conselho Silvio Berlusconi. Esse movimento é uma mistura ousada, uma espécie de “bíblia junto al calefón”, como diz a letra do célebre tango. Se perguntarem a qualquer italiano que decidiu votar neste partido que se define como uma “comunidade”, sua resposta é inequívoca: porque quero que as coisas mudem.

A mudança é, nas sociedades ocidentais, como a irrenunciável aspiração human ao amor. Algo desejado com uma permanência física e metafísica e sempre postergado por essa tendência à incrustação e ao imobilismo que caracteriza os partidos uma vez que se instalam no poder. Contestadora, aberta e declaradamente anti-sistema, Cinco Estrelas é exatamente igual ao slogan com o qual lançou sua campanha: “o Tsunami tour”. Um tsunami cuja verdadeira capacidade de ação e de construção ainda está por se ver. Disparatado para alguns, populista para outros, Cinco Estrelas, seja como for, é a demonstração de um cansaço infinito que se volta contra a política neste século XXI, uma empresa insaciável de mentiras, manipulações, enganos, uma indústria ao serviço de uma corporação de engravatados e não ao povo que foi tentado com propostas que jamais se cumpriram. A socialdemocracia moderada do presidente francês François Hollande é uma prova amável disso: palavras, palavras, palavras.

Beppe Grillo ingresso por essa brecha de desencanto, de orfandade representativa de uma sociedade onde 8 milhões de pessoas vivem com menos de mil euros por mês – é um índice baixo na Europa – e onde um em cada três jovens não tem trabalho. Força destruidora do sistema que se propõe reparar os esquecimentos interessados da governabilidade acomodada e corrigir o sacrifício a que o neoliberalismo europeu submete a milhões e milhões de indivíduos para não perder as suas já grandiosas margens de lucro. Melhor um milhão de desempregados a mais do que 3% de lucros a menos. Com um blog, uma conta no twitter e sem jamais ter pisado num canal de televisão em um país onde os políticos dão a vida para aparecer na frente das câmeras, Beppe Grillo conquistou as massas. Há alguns anos, este humorista genovês organizou o “Vaffanculo Day”, um dia de protesto global contra os políticos. Agora o Vaffanculo passou dos protestos ás urnas e a Itália entrou em uma incerta dissidência contra o sistema.

Tradução: Katarina Peixoto

Fotos: Ansa 

GRILLO VENCEU MAS NÃO QUER SER PARTE DA SOLUÇÃO ITALIANA




Pedro Cordeiro, com agências – Expresso - foto Massimo Percossi/EPA

A estrela das eleições italianas é um cómico antissistema que rejeita alianças com os partidos políticos tradicionais. A aritmética para uma maioria de Governo afigura-se difícil, mas Berlusconi afirma estar aberto a coligações com a esquerda, que, contudo, ainda lhe torce o nariz.

Sendo certo que a aliança de centro-esquerda liderada por Pierluigi Bersani ganhou as eleições, a verdade é que, em termos individuais, o partido mais votado nas eleições de domingo e segunda-feira foi o Movimento Cinco Estrelas (M5S), com 25,5% dos votos, contra os 25,4% do Partido Democrático (PD).

Este só venceu por estar aliado a três outras formações e é esse coletivo (29,5%) que terá uma maioria absoluta de 340 deputados na Câmara dos Deputados (em virtude do "bónus" que a lei eleitoral atribui ao partido ou coligação mais votado).

O M5S, criado há três anos pelo cómico populista e antissistema Beppe Grillo, foi o fenómeno destas eleições. No Senado será a terceira força (23,8%), atrás do centro-esquerda (31,6%) e do centro-direita (30,7%), mas individualmente ficou à frente do Povo da Liberdade (PdL), o partido de Silvio Berlusconi (22,3%).

Na câmara alta nenhuma força tem maioria (os bónus da lei eleitoral funcionam por regiões e não sobre a votação global) e o M5S seria crucial para a formação de uma maioria estável, mas recusa-se a fazer parte de qualquer solução de Governo.

Grillo diz que terá um grupo parlamentar, não um partido, e critica as formações tradicionais. Acredita que o PD e o PdL "farão um 'governíssimo'", referindo-se a uma grande coligação (a única solução aritmeticamente viável, face à negativa de Grillo), mas augura-lhes um período de vida de "seis a sete meses". "Tentaremos mantê-los sob controlo", promete.

A solução passará, necessariamente, pelo Presidente da República, Giorgio Napolitano. Este ex-comunista termina o mandato em maio e um dos desafios da nova maioria será eleger o seu sucessor. Grillo, sempre iconoclasta, disse que gostava muito de Dario Fo, o polémico escritor que ganhou o Nobel em 1997.
Berlusconi aberto a alianças 

Silvio Berlusconi estaria disposto a coligar-se com a esquerda. O seu PdL vale 21,6% dos votos para a Câmara sozinho e 29,1% numa aliança com outras oito formações. "Temos de pensar no bem da Itália", disse o ex-governante na TV, considerando que voltar às urnas (a saída caso não haja mesmo uma coligação governamental) "não seria útil nesta situação".

"Todos devemos preparar-nos para fazer sacrifícios", defendeu Berlusconi, que só exclui, por agora, alianças com o primeiro-ministro cessante, Mario Monti, cuja aliança centrista obteve 10,5% dos votos para a Câmara e 9,1% para o Senado (sendo, por isso, irrelevante na prática para obter maiorias).

"Com a aplicação de uma política de austeridade, [Monti] só colocou a Itália numa situação perigosa, a de uma espiral descendente que levou a um aumento da dívida e do desemprego e ao encerramento de milhares de empresas a cada dia", criticou Berlusconi. 
Será possível seduzir Grillo?

Não é garantido que a esquerda aceite a proposta de Berlusconi. "Não estaremos em governos que são responsáveis pela confusão em que nos encontramos", diz a vice-presidente do PD, Marina Sereni, que ainda acredita poder seduzir Grillo. Anuncia que "será apresentada uma proposta para uma mudança, que vai apelar para toda a Câmara, mas primeiro ao M5S". Bersani falará esta tarde. Ontem disse apenas: "Geriremos os resultados no interesse da Itália".

Parece difícil, mas talvez Sereni confie em declarações como a de Carla Ruocco, deputada eleita pelo M5S no Lácio: "O nosso movimento não é só protesto, é também construção". Grillo estipulou as suas prioridades durante a campanha: água pública, educação pública, saúde pública. O combate à corrupção e as energias renováveis são outras bandeiras do M5S.

Civati Pippo, membro do PD, prefere um governo minoritário do que pedir apoio a Berlusconi. Diz que um Executivo de centro-esquerda deveria dedicar-se a aprovar "a reforma eleitoral, uma disposição sobre conflitos de interesses e corrupção, e uma medida de liberalização e recuperação económica, e depois levar o país para votar."

Entre os aliados de Berlusconi a ideia do "governíssimo" não é unânime. Luca Zaia, dirigente da Liga do Norte (segundo membro da aliança conservadora), afirmou que nesse caso o seu partido preferia aprovar propostas de lei caso a caso, ficando fora do Executivo.

Mercados "um bocado loucos" ressentem-se

A confusão resultante das eleições fez subir os juros da dívida italiana, de 0,73% para 1,24%. O euro caiu face ao dólar e ao iene. Preocupado com o pós-eleições, Mario Monti reuniu-se, hoje, com o governador do Banco central e com os ministros da Economia e dos Assuntos Europeus.

Já Berlusconi mostra-se agastado com a inquietação perante os mercados: "Chega dessa história de prémio da dívida. Vivemos felizes durante muitos anos sem nos preocuparmos com ele. Não estejamos sempre a comparar-nos com a Alemanha, não importa", afirmou hoje, concluindo que "os mercados são independentes e um bocado loucos".

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OPERAÇÃO SERVAL – IV




Martinho Júnior, Luanda

LÍBIA, MALI, ARGÉLIA…

11 – No Mali, a ocupação de todo o território pelas forças militares africanas no quadro da MISMA e com o suporte da ONU terá como resposta uma ementa que já se começou a sentir:

- Probabilidade de ataques a unidades económicas importantes;
- Disseminação de minas terrestres nas principais rotas do país;
- Ataques suicidas com homens-bomba (registaram-se agora em Gao, pela primeira vez no Mali);
- A surpresa das emboscadas e dos golpes de mão.

Os grupos islâmicos ao não aceitarem combate directo, estão espalhados no território e para além dele, misturando-se com a escassa população do Sahel e com os tuaregues e começaram uma guerra com argumentos de terror e de natureza não convencional.

Se as forças militares francesas tiveram muito poucas baixas na ofensiva para recuperar o território, as forças africanas encarregues da ocupação tendem a vir a ter muito mais baixas.

A esta data as forças francesas começam a retirada, deixando o espaço para as forças africanas, que serão “recicladas” para fazer face ao tipo de ameaça.

O Movimento Nacional de Libertação do Azawad, considerado como estrutura política representativa dos tuaregues em relação ao Mali, distanciou-se dos radicais islâmicos e ao que tudo indica está a comprometer-se ao lado das forças internacionais “no terreno”.

Muito provavelmente a sua posição será tida em conta não só pelo que ela representa no Mali, mas em relação a todo o Sahel.

Essa posição é apenas a repescagem duma parte das iniciativas que antes Kadafi havia tido para com toda a imensa região a oeste da Líbia, que haviam dado como resultado um clima de paz que agora se tornou muito mais difícil de alcançar por que as “explosões” suceder-se-ão em cadeia e cada vez, à excepção da Argélia, mais para sul!

A população civil sofrerá consequências directas e indirectas da situação, no âmbito duma guerra psicológica nunca antes sentida no Mali e no resto do Sahel.

As retaliações poderão tornar-se sangrentas e a causar anda mais baixas entre a população.

Quando chegar essa altura, a utilização dos drones por parte dos norte-americanos poderá abrir-se a ataques ao solo.

As Forças Armadas do Mali iniciaram uma reforma do exército sob as ordens do Capitão Sanogo, o militar que frequentou escolas militares norte americanas e chefiou o golpe de estado.

As reformas da Administração do Estado e das Forças Armadas do Mali vão ser “garantidas” pela União Europeia!

Desse modo a Europa, associada às estratégias do AFRICOM, explora o êxito do desmantelamento do regime de Kadafi, cuja influência se estendia de forma construtiva e pacífica por todo o Sahel, contribuindo na região para uma outra União Africana que se está a perder ao ponto de “facilitar” a intervenção militar francesa ao nível duma força de choque de 5.000 homens…

Agora um “efeito dominó” está a expandir-se da forma conveniente ao domínio das potências ocidentais, que regulam a torneira da ameaça salafista, ao mesmo tempo que modelam as forças armadas dos países CEDEAO, particularmente os do Sahel!

A reconversão neo colonial do Mali é uma das ameaças para com a Argélia, ciosa de sua soberania e dirigida por nacionalistas: sem sombra de dúvida que as fronteiras leste e sul da Argélia tornar-se-ão muito mais permeáveis aos radicais islâmicos que foram “tocados” no Mali, radicais islâmicos providos agora de meios poderosos fornecidos pelos ocidentais, ou provenientes dos arsenais da Líbia, com o suporte de radicais líbios como os do “Libyan Islamic Fighting Group”.

Com os exércitos africanos subalternizados ao AFRICOM e à NATO, com o entendimento de livre comércio entre os Estados Unidos e a Europa às portas, além dos riscos das articulações salafistas atingirem profundamente o território argelino, as Forças Armadas da Argélia podem ter de fazer frente às forças armadas africanas que se perfilam numa CEDEAO envenenada pela matriz neo colonial a sul, à desestabilizada Líbia (de onde podem chegar golpes inesperados) a leste e ao domínio discreto, mas influente, das Armadas ocidentais no Mediterrâneo, a norte!

A complacência de África para com o quadro da Líbia e agora para com o quadro do Mali, apesar da substituição de Jean Ping na União Africana, só favorece a manobra neo liberal e neo colonial em curso, aumentando a curto prazo as vulnerabilidades instaladas na CEDEAO, no Maghreb e no Sahel e colocando um horizonte de chumbo que se distende em direcção ao Golfo da Guiné, à África Central e ao “reduto” da África Austral!

Toda a África deveria aproximar-se da Argélia, não deixando que ela se venha a tornar no próximo “estado falido” e de forma a fazer face a ameaças que, depois daquele país do Maghreb produtor de petróleo e gás, se vão expandir em direcção sul… mas uma vez mais, as novas elites africanas forjadas nos parâmetros do capitalismo neo liberal, demonstram estar contaminadas pelo vírus neo colonial, submetendo-se cada vez mais ao “diktat” das potências ocidentais ávidas das possibilidades que se lhes oferecem com a “reconversão”!

Ao não fazer isso, África indicia que está muito longe de entender em toda a extensão o que está a acontecer: a ingerência, a manipulação e a pressão que em cadeia se vai sentir em direcção a sul, com tão evidentes sinais neo coloniais, procurarão um novo impulso na plataforma que constitui a RDC!

Mapa: Ilustração do ponto de situação no Mali a 11 de Janeiro de 2013, no arranque da Operação Serval.

A consultar:
- La guerra de Occidente contra el desarrollo africano continua – http://www.rebelion.org/noticia.php?id=164044
- How Washington helped Foster – the islamist uoprising in Mali – http://www.globalresearch.ca/how-washington-helped-foster-the-islamist-uprising-in-mali/5321468
- Iyad Ag Ghaly – Mali’s extremist leader – http://www.bbc.co.uk/news/world-africa-18814291
- Mali: uma guerra pode esconder a chegada de outra – http://www.voltairenet.org/article177223.html
- France’s millitary operation in Mali in final phase – http://www.bbc.co.uk/news/world-africa-21563077

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