Rui Peralta, Luanda
I - O que sempre
irritou os judeus não sionistas, em relação ao sionismo foi a partilha de
conceitos entre os sionistas e os antissemitas, sobre a “Questão Judaica”
principalmente porque ambos faziam o mesmo diagnóstico e o que era mais irritante,
era que sionistas e antissemitas partilhavam, também a mesma solução: Judeus,
fora da Europa!
A “Questão Judaica”
foi levantada pela Reforma Protestante, com a recuperação do Velho Testamento,
que vinculava os judeus modernos da Europa aos hebreus antigos da Palestina,
vinculo que foi reforçado pelos filólogos dos seculo XVIII, quando incluíram o
hebreu e o árabe na família das línguas semitas. Enquanto os protestantes
divulgavam a crença de que os judeus, por serem os descendentes dos antigos
hebreus, deviam abandonar a Europa e partirem para a Palestina, assegurando
assim a “segunda vinda de Cristo”, os filólogos continuavam a chamá-los semitas
e no seculo XIX, as ciências biológicas reafirmam esta denominação, realçando a
descendência racial.
Mas o seculo XIX
entendeu, também, que para além das determinações linguísticas e biológicas,
existia um potencial politico nesta situação de “devolver” os judeus á
Palestina e que não se prendia com a segunda vinda de Cristo, mas com
objectivos muito mais concretos e racionais. Um grupo de políticos laicos da
década de sessenta, do seculo XIX, defendeu a expulsão e a transformação dos
judeus em “agentes civilizadores da Europa no Oriente”. Esta política seria
apoiada pelos sectores antissemitas mais radicais da sociedade europeia.
O “antissemitismo”
é um conceito reflectido pelo vienense Wilhelm Marr, para caracterizar os
princípios antijudaicos dos racistas europeus. Marr publicou, em 1879, um
manifesto intitulado “A Vitória do Judaísmo sobre o Germanismo”, onde defendia
a política racial e a separação imediata entre europeus, descendentes de
arianos e judeus, descendentes dos antigos hebreus. O “antissemitismo
científico” do século XIX era baseado no princípio de que os judeus eram
diferentes dos europeus e que a sua presença na Europa era responsável pelas
vagas violentas antissemitas, porque os judeus não tinham raízes, logo não
tinham lealdade aos países onde viviam. E este era um problema efectivo no
século XIX, o século dos nacionalismos europeus e da concretização do conceito
de Estado-Nação. Os judeus não se enquadravam nesta configuração nacional, que
redesenhava as fronteiras da Europa. Os nacionalismos europeus da época
necessitavam da figura da pureza nacional, o que os atirava para os braços da
pureza racial.
No lado judaico
esta evolução do pensamento europeu, do romantismo cosmopolita para o
nacionalismo do século XIX, deixa a porta aberta a preocupações e sobreavisos.
Tanto os judeus laicos, como os judeus religiosos opuseram-se a esta nefasta
linha de pensamento. Judeus reformistas, judeus ortodoxos, ateus, socialistas,
anarquistas, comunistas, vastos sectores das comunidades yiddish, judeus
cosmopolitas, opunham-se á expulsão das suas pátrias europeias e á separação
que os nacionalistas pretendiam. Na sua busca pela “pureza nacional” pelos
“valores nacionais”, na sua continuada ladainha de que “só o nacional é bom”
que carateriza o discurso nacionalista, os nacionalismos europeus evidenciaram
a xenofobia e o racismo, factores latentes na praxis nacionalista.
Na época surgiu,
como reacção ao antissemitismo europeu, o movimento Haskalah, que assimilava os
judeus às culturas europeias laicas e que exigia o final do papel dos rabinos
ortodoxos sobre as comunidades e pequenos povoados judeus na Europa de Leste. O
Haskalah lançou campanhas entre as comunidades judaicas europeias, na época,
com o objetivo de as fazer abandonar as prácticas medievalistas, a favor da
moderna cultura laica europeia. Não exacerbava as diferenças culturais e negava
as diferenças físicas e as teses raciais, considerava a Europa a sua casa e
afirmava que os judeus europeus poderiam ter vindo do deserto, caminhando pelas
suas areias desde a Asia Ocidental, mas eram europeus e eram cidadãos dos
países europeus onde habitavam.
Do lado judaico,
nem todos partilhavam esta visão. Existiam vastos sectores que defendiam as
raízes e o retorno às mesmas, que tinham uma práctica cultural que os isolava
das sociedades europeias e que representavam a “identidade judaica”. Estes
sectores reagiram ao antissemitismo, aceitando-o e nos anos noventa do século
XIX surge o sionismo, para o qual os judeus eram semitas e descendentes dos
antigos hebreus. No seu manifesto fundador era explicado que de facto os judeus
provocavam o antissemitismo e propunha o abandono da Europa (tese dos
antissemitas) e defendiam a restauração da nacionalidade.
O discurso racial,
a pureza da nacionalidade e a aceitação das diferenças biológicas, repugnavam a
grande maioria das comunidades judaicas europeias, que mantiveram-se afastadas
do sionismo, considerando-o com a mesma apreensão com que consideravam o
antissemitismo. Quando os sionistas realizaram o seu I Congresso, em Basileia,
Suíça, no ano de 1897, durante finais do mês de Agosto, os sectores judaicos
opostos ao sionismo fundaram, na cidade de Vilna, na Lituânia, em Outubro de
1897, o BUND, União Geral dos Trabalhadores Judeus, organização que abrangia a
Rússia, Lituânia e Polonia. O BUND, algum tempo depois da sua formação,
juntou-se á Coligação Judaica Anti Sionista, formada por judeus reformistas e
rabinos ortodoxos e que representavam vastos sectores das comunidades judaicas
na Europa e nos USA.
II - Em 1903 os
líderes sionistas encontraram-se com o ministro russo do interior, Vyacheslav
von Plehve, um assumido antissemita, encarregado pelo Czar de supervisionar os
“progroms” contra os judeus na Rússia. O sentido desta reunião (e outras que
seguiram) foi visível em 1905, quando Lord Balfour, primeiro-ministro britânico
(e outro notório antissemita) promulgou um decreto que proibia a entrada na
Grã-Bretanha, de judeus provenientes da Rússia e da Europa de Leste, que eram,
precisamente as comunidades vitimas dos “progroms”.
Foi em 1917 com a
Declaração de Balfour, que criava um “lugar nacional” para os judeus, na
Palestina, que os resultados dos sucessivos encontros entre os líderes
sionistas e os antissemitas tornaram-se evidentes. Nesta Declaração juntou-se a
fome á vontade de comer, a necessidade que uns tinham de expulsar os judeus da
Europa e a necessidade que alguns judeus sentiam em sair. Tinha também a
Declaração de Balfour uma função que serviu para travar o apoio judeu á
Revolução Russa. Os Judeus anti sionistas de esquerda, organizados na BUND,
militavam no Partido Operário Social- Democrata Russo (POSDR). O mesmo se
passou com os sionistas de esquerda, que se tinham organizado no seio do
movimento sionista e que tentaram uma aproximação ao BUND. (conseguida, através
dos sindicalistas judeus norte-americanos). O resultado foi que as organizações
judaicas de esquerda (sionistas ou não) e os anarquistas judeus (na sua maioria
de origem alemã, francesa e russa) apoiavam a Revolução Russa.
Os governos
europeus sentiram esse apoio e tentaram colocar um travão no projecto soviético
de criação de uma república judaica naquela que seria, alguns anos depois a
URSS. A Declaração de Balfour acabou com as pretensões da esquerda sionista,
que voltou a centrar-se nas “terras judaicas da Palestina”. Anos mais tarde
encontram-se sectores sionistas a negociar com os nazis, em 1933, a Ha´avara, o
acordo que permitiria aos judeus alemães serem transferidos para a Palestina.
Representantes nazis foram enviados á Palestina, em 1937, para constatarem os
“sucessos” da colonização judaica. Um deles foi Adolf Eichmann, que regressou
entusiasmado á Alemanha, com as colectividades ashknazies, racialmente
separatistas. Eichmann foi hóspede dos sionistas num colonato situado em Monte
Carmelo.
Os sionistas
concordavam com os nazis (e com todos os antissemitas) sobre o facto de judeus
e arianos serem raças separadas e separáveis. Inicialmente, antes de optarem
pela Solução Final, os nazis pretendiam colocar os judeus alemães no Madagáscar
e a federação Sionista da Alemanha colaborava activamente. O resultado final
desta colaboração é conhecido. 90% dos judeus europeus desapareceram, não no
Madagáscar, nem na Palestina, mas nos
campos de concentração nazis. E a grande maioria dos judeus mortos não eram
sionistas. Morreram porque negaram-se a seguir o apelo sionista, porque eram
europeus e porque não acreditavam num mundo de apartheid.
III - No período
imediato pós-guerra, apesar do holocausto, o antissemitismo prevaleceu nas
elites políticas europeias, que apressaram-se a apoiar o sionismo, como forma
de garantir que as comunidades judaicas abandonariam a Europa. Em 1947, os
países árabes apresentaram uma resolução na ONU, no sentido da Europa
reassentar nos seus países os judeus europeus sobreviventes do holocausto. Mas
os governos ocidentais não só não aprovaram a resolução, como negaram-se a
receber os sobreviventes judeus e no mesmo ano aprovaram o Plano de
Participação da ONU, para criação de um Estado Judaico na Palestina. A “questão
judaica” seria, desta forma, resolvida. As indesejadas comunidades judaicas
europeias já tinham para onde ir e os governos ocidentais esfregaram as mãos de
contentamento, com os seus aliados sionistas. Uma vez mais, sionismo e
antissemitismo caminhavam juntos.
O antissemitismo é,
na actualidade, um princípio universal, consubstanciado na existência do Estado
de Israel. O consenso entre as elites ocidentais e os sionistas é absoluto e a
pressão existente na Ásia Ocidental para aceitação deste princípio é, no
mínimo, atroz. As políticas concernentes á Paz nesta região, apresentadas pelo
Ocidente, são baseadas na aceitação do antissemitismo através do reconhecimento
do sionismo, ou seja através da obrigação de reconhecimento do Estado de Israel
aos povos árabes.
Para tás ficaram as
longas lutas travadas por árabes e judeus contra o antissemitismo na Europa,
onde comunidades judaicas residiram durante séculos. Propositadamente omitidas
ficam as grandes comunidades judaicas que sempre viveram em toda a região do
Médio Oriente, Turquia e Norte de África. Quem fala hoje dos judeus marroquinos
, tunisinos, egípcios, sírios, turcos e iranianos? Quem alguma vez refere os judeus do Iraque?
Quem se recorda da vergonha que foi a ponte aérea que os sionistas realizaram
para retirar os judeus etíopes e eritreus das suas terras? Quem refere as
comunidades judaicas islâmicas?
IV - Um dos
exemplos de comunidades judaicas não sionistas foi criado durante a Primeira
Guerra Mundial, quando judeus ortodoxos, não sionistas, residentes em
Jerusalém, organizaram uma comunidade a que denominaram Neturei Karta, que em
aramaico significava Guardiões da Cidade. O próprio facto de utilizarem o
aramaico distinguia-os dos colonos sionistas. O aramaico era utilizado pelas
comunidades judaicas na Palestina e com a ascensão do sionismo, os judeus
árabes utilizaram o aramaico para se distinguirem e desvincularem do sionismo.
A Terra Santa sempre foi uma figura central do imaginário judaico, mas sempre
sob um ponto de vista estrictamente religioso e cultural, nunca sob a
perspectiva política de domínio. A perspectiva de domínio político da Terra
Santa foi introduzida pelo sionismo que a transformou a noção de espaço
espiritual ancestral num conceito alienígena de Estado-Nação.
A Neturei Karta
conseguiu desenvolver-se e sobreviver aos acontecimentos que se desenrolaram na
Palestina. Hoje é uma comunidade autónoma, que não reconhece o Estado de
Israel, cujos membros recusam-se a cumprir serviço militar (inclusive alguns
grupos radicais desta comunidade ameaçaram, quando da revisão da lei sobre a
objecção de consciência, que se tivessem de pegar em armas seria contra os
sionistas) e não pagam impostos às autoridades sionistas, embora acordassem
contribuições com a Autoridade Palestiniana. Esta comunidade autónoma reconhece
a OLP, e considera-a a sua representação política, a que prestam lealdade.
Este é um dos
muitos exemplos de comunidades judaicas árabes, que habitam na Palestina desde
á seculos e que nunca reconheceram o sionismo. È gente que vive no interior da
sua comunidade, que estabelecem relações com os árabes, e declaram-se
palestinianos.
V - Em 1948 os
sionistas forçaram os árabes a abandonar os seus territórios. As tácticas
utilizadas foram as aprendidas com os antissemitas que organizavam os
“progroms” e com os mestres nazis. Em mais de 120 aldeias e povoados, as
milícias sionistas, massacraram, saquearam, torturam e expulsaram, realizando
um “ritual de limpeza étnica”. Os palestinianos denominam período por Nakba. Na
altura Ben Gurion e a elite sionista declararam que os árabes abandonaram os
territórios de livre vontade e com essa mentira se vive até hoje.
Estas atitudes
tipicamente racistas dos sionistas demonstram bem a sua origem, mergulhada nas
áreas obscuras do pensamento nacionalista nascido no seculo XIX. A Nakba foi um
acto repudiável, que deveria ser julgado como crime contra a humanidade, nas
instâncias internacionais. Uma típica represália colonialista, similar a tantas
outras praticadas pelos colonialistas em todo o mundo: casas incendiadas,
assassinatos em massa, aldeias queimadas, mulheres violadas, crianças degoladas,
idosos espancados…A humanidade assistiu a isto durante séculos e todos os povos
colonizados sofreram estes “rituais” dos colonos.
Em Jafa, foram
descobertas no início deste mês, seis valas comuns, que datam dos
acontecimentos da Nakba, em 1948. As valas foram descobertas durante os
trabalhos de manutenção do cemitério da cidade. Contêm centenas de esqueletos e
restos humanos. Jafa foi uma cidade que sofreu durante semanas os ataques das
milícias sionistas. Segundo relatos da época, na cidade podiam ser vistos
centenas e centenas de cadáveres, espalhados pelas ruas, vítimas das explosões,
bombardeamentos e dos tiroteios intensos. A descoberta destas valas comuns e as
centenas de esqueletos nelas contidas revelaram aquilo que os sionistas sempre
esconderam sobre os acontecimentos de 1948. O que acontecia às comunidades
judaicas europeias, vitimas dos “progroms”, obrigadas a abandonar os seus
espaços, sujeitas às perseguições e humilhações de todo o tipo, aconteceu em
1948 às populações árabes, que os sionistas consideravam indesejáveis. Uma vez
mais ficou patente o antissemitismo dos sionistas.
VI - Ao fim de
todos estes anos a “Questão Judaica” não só não foi resolvida pelo sionismo,
como, também, foi criada uma “Questão Palestiniana”. O véu com que o Ocidente
encobre estas questões, gera os juízos mais absurdos sobre a realidade da
região. É frequente ouvirmos comentários sobre o problema da “disputa de
terras”, da “intransigência” de ambas as partes, que dificulta os acordos e de
concluir o apartheid na região, com a criação dos dois estados.
Mas a colonização
sionista não é uma disputa de terras, nem o fracasso contínuo das negociações
são culpas de ambas as partes, nem a solução está nos dois estados, conforme a
ONU considera justa e equitativa. A Europa nunca soube lidar com as comunidades
judaicas, historicamente implantadas no velho continente. No imaginário europeu
os judeus eram inimigos da fé e perigosos para ordem social e cultural. Eram um
resíduo, um “lixo”, uma presença que a Europa não sabia explicar (provavelmente
os europeus nunca perdoaram aos judeus o facto de Cristo - sobre o qual
assentavam as superestruturas europeias desde a decadência do Imperio Romano –
ser judeu) mas que sempre esteve presente, ainda a Europa não tinha qualquer
ideia da sua identidade.
A solução europeia
foi a de colocar o “lixo” na casa do outro. Se a ciência do seculo XIX definiu
os judeus como semitas, então a Europa mandou-os para casa dos semitas. Nada
mais cómodo. De uma assentada as elites europeias matavam dois coelhos com um
só cajado. Viam-se livres dos “judeus errantes” e arranjavam agentes de
colonização na Ásia Ocidental, ou aquilo a que os ocidentais chamam o Médio
Oriente, tudo com o mesmo personagem: o judeu.
Pelo caminho, os
europeus, apanharam boleia dos sionistas, choraram lágrimas de crocodilo com o
holocausto e eis que 65 anos depois criaram mais uma serie de funções e
funcionários, os “especialistas em assuntos do Médio Oriente”, uma mistura
cinzelada de personagens que dizem umas coisas sobre Israel, a OLP, a
Autoridade Palestiniana, Gaza, negociações, terrorismo e por aí e que ganha a
vida em intricadas negociações, que os sionistas desfazem sempre que querem e
entendem.
Quanto aos
sionistas, são colonos, racistas, que gozam do apoio do Ocidente comprometido
com as suas ambições etnocêntricas. Nas suas relações com o Ocidente, os
sionistas constituíram um lobby forte e inteligente, que joga pesado com as
fraquezas dos responsáveis europeus (a fraqueza da culpa) e que trata os
norte-americanos por tu, sejam republicanos ou democratas, texanos ou
afroamericanos. E são colonos, colonos intransigentes, que jogam sujo e se
escondem sob inúmeras capas, para além de antissemitas convictos, que desprezam
tanto o judeu, como os europeus do antanho o desprezava.
E os palestinianos?
Foram apanhados na nova armadilha antissemita do Ocidente pomposamente
denominada “choque civilizacional”, apresentada como uma obra monumental do
pensamento único ocidental mas que não passa de um enredo mal escrito e de uma
produção de série B, que realiza o sonho antissemita e do qual Gaza é um
experimento: o de passar de campos de concentração a “zonas
concentracionárias”. Umas serão para palestinianos e árabes em geral, o espaço
que restar será a “zona concentracionária para judeus” E os guardiões das zonas
são os sionistas, que viverão num espaço maior: o Grande Israel.
Para os europeus
(já mais descansados porque Cristo está prestes a perder a paternidade e já
poderá ser apresentado como louro e de olhos azuis) a Grande Cruzada continua.
Objectivo? Damasco…
Fontes
Massad, Joseph
Colonial Effects: the Making of Colonial Identity in Jordan. Columbia
University Press, NY, 2001
Massad, Joseph The
Persistence of the Palestinian Question: Essays on Zionism and the Palestinians
Columbia University Press, NY, 2006
Haaretz May, 16, 2013
Haaretz May, 27, 2013