Sem
remover esse obstáculo com uma nova hegemonia progressista, reivindicações
avulsas trazidas para as ruas podem conduzir a desfechos inesperados.
Saul
Leblon – Carta Maior
O
golpe militar consumado na Tailândia nesta 5ª feira, o 18º da história do país
(11 bem sucedidos), parece confirmar a eficácia de um protocolo de
validade mais ampla.
À falta de melhor nome ele tem sido denominado de ‘golpe suave’.
Depende muito do que se entende por suavidade.
No caso tailandês, a proclamação militar foi antecedida de 28 mortes e centenas
de feridos em meses de conflitos de rua.
Abstraído o sangue e demais singularidades, a plasticidade da superfície
poderia se confundir com a realidade política em marcha lenta em outras
latitudes.
Não tão distantes assim, diga-se.
Antes que o rosto do general Prayuth Chan-Ocha surgisse nos monitores de tevê
desta 5ª feira, para proferir o clássico ‘viemos por ordem na casa’, o país
viveu um processo tão linear que parece, de fato, como acusam alguns, ter saído
de um manual.
Aquele atribuído à norte-americana Fundação Albert Einstein, supostamente de
estreitas relações com a CIA.
Seu principal ‘estrategista’, um certo Gene Sharp, seria o autor de
livretos instrutivos. Entre eles, ‘A política da ação não violenta’, no qual
elenca 198 técnicas para golpes em câmera lenta.
Sob risco de cometer injustiça com o rico repertório do senhor Sharp,
poderíamos fundir essa versátil suavidade em três momentos encadeados:
I) Promoção de fatores de mal estar: escalada de denúncias de corrupção, de
criminalidade, de autoritarismo e incerteza econômica; o martelete do
descontrole inflacionário deve disputar as esquinas com as manchetes do
colapso iminente em áreas de abastecimento e/ou de serviços essenciais. Tudo
aspergido de frequentes ‘evidências’ de ameaças à liberdade de imprensa. Em
resumo, a crispação de um intolerável quadro de desgoverno, sancionado
por pesquisas de opinião, reportagens e análises reiterativas.
II) O mal-estar vai às ruas: bandeiras legítimas, exacerbadas pelo ultimatismo
e desprovidas de coerência estratégica, fomentam uma espiral de
protestos, conflitos e mobilizações insolúveis. Tudo magnificado pela lente de
aumento das manchetes e câmeras de tevê. Bloqueios de rodovias e avenidas,
assim como a tomada de instituições públicas, esticam as linhas de tensão para
a etapa seguinte.
III) Ruptura institucional: a intensificação das manifestações
inaugura uma rotina pontuada por enfrentamentos de violência crescente,
respingados de escaramuças armadas. A engrenagem autopropelida leva à
paralisia dos grandes centros urbanos. Um ponto de fuga converge então
para a campanha pela renúncia de governantes ‘impopulares’, com prometida
antecipação de eleições.
Pronunciamentos militares preenchem o ar rarefeito da paralisia política.
Sugere-se uma referência de autoridade e ordem a uma democracia agonizante . O
conjunto inocula uma progressiva familiaridade com a ideia de um golpe suave,
tornado inevitável e até mesmo ansiado por uma sociedade exausta e assustada.
É possível enxergar traços de vários processos em curso na América Latina
nesse filme que inclui cenas de outros ciclos golpistas, modulados agora
pela supremacia da guerra midiática.
O episódio tailandês forma um compacto de ilustração pedagógica.
Nele se combinam oito meses de protestos contra um governo supostamente
‘populista’, descarnado progressivamente, em fatias, sob acusação de
corrupção, usurpação de poderes etc.
Rejeitado pela elite e o funcionalismo, que gravita em torno da
monarquia, ele conta, todavia, com apoio da parcela majoritária da população,
que se concentra no norte tailandês e na área rural.
A elite local, sugestivamente liderada por um magnata das comunicações,
na verdade rejeita a solução eleitoral, que lhe tem sido sistematicamente
adversa.
Opta assim pelo ‘caminho suave’, que desembocou na fala imperativa do general
Prayuth Chan-Ocha, nesta 5ª feira.
Os elementos ostensivos desse percurso, planejado ou apenas inerente ao impacto
da transição de ciclo mundial nas nações em desenvolvimento, não devem iludir.
Sobretudo, não devem alimentar simplificações mecanicistas na avaliação
do quadro brasileiro.
Há algo mais grave do que os motins de ônibus atravessados nas grandes avenidas
metropolitanas.
A mãe de todos os piquetes que bloqueiam as artérias do crescimento
brasileiro é a greve do investimento.
Desequilíbrios macroeconômicos reais explicam uma parte dos braços cruzados do
capital diante das urgências do país.
Um exemplo entre outros: o câmbio valorizado.
Ademais de incentivar importações baratas, ele atrofia a exportação, subtrai
demanda à indústria local e leva a uma integração desintegradora diante
das cadeias globais de suprimento e tecnologia.
Em vez de investir, fabricantes trocam máquinas por guias de importação.
O conjunto explica em grande arte os impasses da economia nos dias que correm. Mas não explica tudo.
Se esquematismos conspiratórios devem ser rejeitados quando se analisa a
exacerbação conservadora, o extremo oposto tampouco ajuda a entender a raiz do
que está em jogo.
Quem vê no capitalismo apenas um sistema econômico, e não a dominação
política intrínseca a sua encarnação social, derrapa no economicismo.
Ele subestima aspectos cruciais da atual encruzilhada.
Destravar um novo ciclo de investimento no Brasil envolve uma disputa para
mudar a correlação de forças na sociedade e uma mudança na sua inserção no
sistema financeiro internacional.
Ademais dos constrangimentos macroeconômicos, a greve do investimento
reflete a conveniência de um capital que aderiu à ciranda rentista e dela não
abdicará tão facilmente.
Ao contrário do que aconteceu no caso das cadeias industriais, nisso o Brasil
atingiu o estado das artes.
A coagulação rentista da sociedade, com uma elite perfeitamente integrada ao
circuito da alta finança global, amesquinha a democracia, recusando-lhe
instrumentos para dar à riqueza sua finalidade social.
O lockout do capital é o sintoma de uma corrosão profunda nos laços da
sociedade.
O economista Thomas Piketty, autor do elogiado ‘O capital no século XXI’,
demonstra como a regressividade inerente à hegemonia rentista está promovendo
uma mutação da sociedade em nosso tempo.
As conquistas sociais dos últimos 12 anos --o crescimento do emprego e do
salário, na contramão da restauração neoliberal, não livraram o
Brasil da lógica denunciada pelo autor.
Ela resulta em um ‘murchamento’ produtivo, coroado por uma desigualdade
crescente, hereditária, quase um atributo biológico.
Ganhos financeiros sempre superiores ao crescimento médio da economia
deslocam à cepa dos rentista fatias progressivamente mais gordas da
riqueza social.
Cristaliza-se assim uma nova oligarquia aleitada na teta dos juros.
Como tem demonstrado Carta Maior, a evolução da taxa de juro real no Brasil, no
período entre 1995 e 2012, ou seja, por 17 anos, só ficou abaixo da variação do
produto uma única vez, em 2010 (6,2% e 7,5%, respectivamente).
No segundo governo FHC, para um crescimento médio do PIB da ordem de 2%, a taxa
de juro real ficou em 18,5%.
No segundo governo Lula, para um PIB médio de 4,5% a taxa de juro real foi da
ordem de 11,7%.
Nos três primeiros anos de Dilma (2010-2013), o PIB médio foi da ordem de
2%: a taxa de juro real chegou a um piso de 3,3%; está em 5% atualmente.
A rebelião contra a ‘Dilma intervencionista’, nesse sentido, é, em grande
parte, uma reação da república rentista à tentativa de se desbloquear a
avenida do investimento com a remoção do juro alto.
Mas não se trata apenas de reduzir a Selic.
É pior que isso.
A maximização do retorno financeiro contaminou todas as dimensões do cálculo
econômico submetendo as demais instancias do mercado aos padrões de retorno da
ganância rentista.
Em entrevista recente ao jornal Valor, o economista francês Pierre Salama
aponta uma derivação dessa lógica : a explosão dos dividendos se transformou,
ela também, em um torniquete ao investimento produtivo.
Pressionados a entregar fatias crescentes do lucro aos acionistas, dos quais
dependem em última instância no cargo, os ‘managers’ corporativos atendem à
demanda em detrimento do lucro retido para investimento.
A observação de Salama desvela uma dimensão pouco discutida da
desindustrialização brasileira:
‘Isso explica os efeitos indiretos sobre a primarização da economia’, diz
ele; (ademais da) ‘produtividade média bastante baixa no Brasil’, adverte
o economista francês que alerta para um aspecto contemplado na agenda
presidencial conservadora: ‘Se você não tem uma melhora no nível da
produtividade em geral porque você não tem uma taxa de investimento importante,
a única maneira de obter melhor competitividade é favorecendo a queda do
salário direto e o indireto - por piora (no sistema) da saúde e da aposentadoria
dos trabalhadores. A maneira de sair de tudo isso’, replica, como se fosse uma
aula da alternativa consequente aos gêmeos ideológicos Aécio &
Campos: ‘é limitar a financeirização. Isso implica uma mudança bastante
grande em nível de controle de capitais e também em nível de sistema
tributário, para que o capital pague mais imposto do que hoje paga --isso
poderia limitar a importância dos acionistas’, diz ele.
No Brasil, ao contrário do que apregoa Salama, as remessas de lucros do capital
estrangeiro (US$ 32 bilhões em 2013), bem como lucros e dividendos de pessoa
física, ademais de transferências patrimoniais (heranças etc) e investimentos
estrangeiros em títulos públicos são isentos de imposto de renda.
Não se fabula aqui uma narrativa ideológica. O diagnóstico de Salama, em
linguagem menos contundente, foi endossado esta semana pelo ex-ministro Delfim
Netto.
Em artigo na Folha, na 4ª feira, Delfim, que foi ministro da Fazenda, do
Planejamento e Agricultura na ditadura-- cita pesquisas de economistas
brasileiros, ideologicamente muito distantes do colega francês, mas que
chegaram a conclusões idênticas às dele.
Debruçados em balanços de empresas brasileiras de capital aberto (com ações
em Bolsa) eles constataram que a queda na poupança do país se deve , sobretudo,
‘à redução do importante fluxo dos lucros retidos, fundamental para financiar
os investimentos’, cita Delfim. E completa:
‘A conclusão mais importante é que "as empresas abertas não financeiras
reduziram sua poupança e investimento (...) E que, "em geral, optaram em
reduzir os investimentos, manter a distribuição de dividendos, reduzir a
participação de recursos próprios e aumentar suas dívidas para financiar os
menores investimentos", o que terá graves consequências sobre o crescimento
futuro’, conclui o ex-ministro no texto sugestivamente intitulado,‘Tragédia’ .
Esse é o grande piquete atravessado na garganta do Brasil.
Seria aconselhável que os demais bloqueios e protestos tivessem o
discernimento do que isso significa para a sua causa.
Sem remover esse obstáculo-matriz, as reivindicações trazidas para as ruas,
justas, em sua maioria, não terão lastro capaz de torna-las sustentáveis
por uma dinâmica de ganhos progressivos baseada em crescimento e
produtividade.
O risco, involuntariamente, é o de conduzir a sociedade a um percurso tão
‘suave’ quanto aquele que levou o general tailandês, Prayuth Chan-Ocha, a
convocar uma cadeia nacional de televisão nesta 5ª feira para anunciar, em
seguida à lei marcial:
‘Em nome da lei e da ordem, assumimos os poderes’.
Informação
Página Global
Conforme
temos vindo a informar o Página Global tem estado impossibilitado de publicar normalmente
os conteúdos. Só há cerca de uma semana conseguimos - de modo muito limitado -
efetuar algumas postagens. Contamos no mês de Junho retomar a normalidade e
ritmo anterior de publicações. Até lá agradecemos a vossa compreensão e
paciência. (Redação PG)