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Calisto Ribeiro, da
ORAM – Associação Rural de Assistência Mútua de Nampula, condena a falta de
transparência do projeto de desenvolvimento agrícola e mostra-se preocupado com
a "usurpação de terras dos camponeses".
São muitas as
críticas da sociedade civil e de organizações dos camponeses em relação ao
ProSavana, um projeto dos governos do Brasil, do Japão e de Moçambique que
pretende desenvolver a agricultura no norte do país africano, nomeadamente no
chamado corredor de Nacala, nas províncias de Nampula, Niassa e Zambézia.
Acima de tudo,
receiam que haja uma ocupação de terras de pequenos agricultores por
latifundários. Uma das vozes que critica o ProSavana é Calisto Ribeiro. Em
entrevista à DW África, o responsável da ORAM – Associação Rural de Assistência
Mútua de Nampula mostra-se preocupado com a falta de conhecimento que os
camponeses – os principais afetados – e a própria sociedade civil têm sobre o
ProSavana, e critica que o projeto não está a ser desenvolvido com a
participação das comunidades.
DW África:
Moçambique é um dos países com uma produtividade agrícola muito baixa, uma das
mais baixas do mundo. Não seria ideal ter um projeto como o ProSavana, o
projeto tripartido de modernização da agricultura no norte de Moçambique?
Calisto Ribeiro
(CR): Eu penso que a ideia de um projeto como o ProSavana é uma ideia muito boa
para ajudar o desenvolvimento de Moçambique. Mas o grande problema é o modelo e
a forma como o projeto ProSavana aparece.
Aparece de forma
obscura, de forma escondida e não está a ser desenvolvido com a participação de
todos aqueles que vão ser ou que são os atores do desenvolvimento de
Moçambique, sobretudo das comunidades locais, o grupo-alvo e residente nas
áreas onde esse programa vai ter lugar.
DW África: O que é
que se sabe, por exemplo, na província de Nampula sobre a implementação do
projeto?
CR: Os camponeses
pouco ou nada sabem sobre o programa. Esta é uma inquietação muito grande para
nós. Se o programa é para ser implementado no seio dos camponeses e os
camponeses vão fazer parte deste programa, então fica complicado saber por que
é que os camponeses não conhecem o programa.
Não só os
camponeses, a sociedade civil, que de alguma forma tem facilidades de acesso à
informação, também não sabe sobre o ProSavana. E mesmo da parte do Governo, os
oficiais do Governo – quer sejam administradores, diretores distritais da
Agricultura ou mesmo chefes dos postos das localidades – e os líderes das
comunidades não conhecem o programa.
DW África: Algumas
ONGs da Europa já classificaram o projeto ProSavana como "o maior roubo de
terras da História de África". Será que já existe um roubo ou uma ocupação
efetiva de terras de camponeses que foram desalojados pelos projetos do ProSavana?
CR: Sem dúvida.
Essa é uma das grandes ameaças que nós sentimos: que o ProSavana vai criar ou
está a criar a usurpação das terras dos camponeses. A indicação que nós temos é
que o ProSavana vai ocupar grandes extensões de terra.
DW África: Como é
que são implementados estes projetos?
CR: Normalmente, a
lei moçambicana estabelece que, no caso desse tipo de situações, tem que haver
consultas comunitárias. A comunidade tem que ser consultada, tem que ser
informada sobre o programa, tem que ter a possibilidade de refletir e decidir
se vale a pena ou não conceder o espaço que se pretende. Isto é que a lei
prevê.
Mas no caso
específico dos projetos de impacto que estão a ter lugar no âmbito do programa,
isto não existiu. Consequentemente, os camponeses estão a perder as suas terras
de cultivo porque têm que as dar aos projetos de impacto rápido. E isto está a
criar conflito.
DW África: Em que
zonas nomeadamente é que isso já aconteceu?
CR: Já temos casos
específicos no distrito de Gurué, província da Zambézia, na região do Lioma. E
temos os casos do Ribaué [na província de Nampula] e alguns casos estão
situados em Mogovolas [também na província de Nampula]. Portanto, são alguns
distritos que estão a ser caraterizados por esta situação de usurpação de
terras para dar lugar ao ProSavana e consequentemente estão a resultar em
conflitos.
DW África: E o que
é que está a ser plantado nestas antigas machambas dos camponeses locais?
CR: O que está a
ser feito lá são alguns testes de ensaio, algumas experiências de produção e de
multiplicação de sementes. A soja, por exemplo, é a semente que está a ser
preparada neste momento. E também se fala no milho e no gergelim, entre outras
poucas espécies que vão ser fomentadas no âmbito do programa ProSavana.
DW África: Quanto é
que os camponeses receberam em contrapartida?
CR: Recebem uma
indemnização de cerca de 500 meticais, qualquer coisa como 12 euros por
hectare. Isto é muito, muito pouco.
DW África: Se
olharmos para o PRODECER, que é o projeto “pai” do ProSavana, que também foi
implementado com a ajuda do Japão no Cerrado, na savana brasileira, nos anos 70
e 80, é de esperar que em Moçambique sejam criadas também grandes culturas de
soja como aconteceu no Cerrado?
CR: De acordo com
as imagens que nós temos do Brasil sobre o PRODECER, primeiro, ocupa
vastíssimas áreas de terra. Na minha opinião, se assim for em Moçambique, então
não sei qual vai ser o destino dos camponeses. As imagens também reportam a
utilização de monoculturas. Isso significa que aquelas culturas do setor
familiar, digamos diversificadas, vão deixar de existir em Moçambique. Estarão
em risco.
Em terceiro lugar,
também temos indicação, a partir dos residentes em volta do Cerrado do Brasil,
de problemas de uso de pesticidas e agroquímicos que têm efeitos bastante
nocivos na saúde das pessoas, nas culturas e, em geral, na vida ambiental
daquela região.
Achamos que não é
possível um modelo como o que está a acontecer no Cerrado acontecer em
Moçambique. Aliás, por causa disto, porque nós fomos para o Brasil, onde
tiramos imagens que trouxemos para Moçambique, e começamos a reivindicar e a
repudiar o programa, eles mudaram de discurso. Foi a partir daí que começaram a
dizer que não, que o programa ProSavana não vai retirar nenhum camponês da sua
área.
DW África: Como é
possível, com a ideia de criar milhões de hectares de novas plantações, não
desalojar nenhum camponês? A zona onde o ProSavana é implementado, no norte, é
relativamente povoada.
CR: Aliás, é
impossível. Se é para implementar algo assim, que implique ocupação de grandes
extensões de terra, obviamente os camponeses têm de ser retirados. Não sei como
é que vai ser, mas é impossível. Há um conflito completamente visível. Ou ocupa
grandes extensões de terra e as pessoas saem dali ou então o programa não vai
ocupar nenhuma área e os camponeses continuam nas suas áreas.
DW África: Dentro
das apresentações do ProSavana, muitas vezes também foram apresentados outras
vertentes do programa, para além das grandes culturas de soja para a exportação
ou para alimentar galinhas no norte de Moçambique, foram apresentadas ideias
como a criação de cooperativas, o maior uso de máquinas na agricultura local e
a substituição de antigas árvores de caju. Seriam aspetos para eventualmente
melhorar ou tornar viável o programa para os camponeses locais?
CR: Acho que sim.
Seriam aspetos bons a considerar. Ou seja, na nossa opinião, é preciso um
modelo que permita, de forma gradual, esta prática. Todos nós sabemos que os
camponeses, em termos gerais, são camponeses não escolarizados.
E penso que o
processo de capacitação dos camponeses - para se ajustarem aos modelos que se
pretendem desenvolver na base do programa - vai levar muito tempo. É isto que
para nós não está claro.
E mais uma vez
dizemos: como é que isso vai ser possível? Como é que um camponês vai estar
integrado neste sistema? Como é que um camponês vai competir com uma máquina
que ele nunca viu? Ou se for para usar ou beneficiar daquela máquina, como é
que isso vai ser possível? Então, é isso que estamos sempre a questionar. Como?
E ainda não sabemos como é que isso vai ser e nunca ninguém nos respondeu.
DW África: Se
tivesse um desejo para um ProSavana ideal, qual seria?
CR: Eu tenho um
desejo para um ProSavana ideal. Desejo que o ProSavana nos próximos 10, 15, 20
anos mude a vida das pessoas. Mudar no sentido positivo, para a melhoria das
condições dos camponeses. Por exemplo, acesso a serviços básicos como a
educação e a saúde, vias de acesso. Estamos numa situação de famílias que não
conseguem sequer um dólar, nem meio dólar por dia. Vivem muito abaixo do nível
de meio dólar.
Então, eu gostaria
que o ProSavana permitisse, daqui a uns 10, 15, 20 anos, que as pessoas, os
camponeses tivessem um rendimento um pouco maior do que aquele que têm hoje,
casas cobertas de chapas de zinco, crianças a ir para a escola. É isto que
gostaríamos que o ProSavana trouxesse. Se o ProSavana viesse para incluir os
camponeses, de forma pró e ativa, eu até penso que isso poderia servir para dizer:
muito bem-vindo ProSavana!
Calisto Ribeiro, da ORAM – Associação Rural de Assistência Mútua de Nampula, esteve
na Alemanha a convite de duas ONGs alemã, da rede de desenvolvimento INKOTA e
do Comité Coordenador Moçambique Alemanha – Koordinierungskreis Mosambik KKM.
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