Em
finais de Abril de 2015, o Governo de Moçambique começou um processo de
consulta pública às comunidades locais do Corredor de Nacala, a respeito do
grandioso projecto ProSAVANA, amplamente denunciado por oponentes como uma
iniciativa de usurpação de terras. Tais consultas foram imediatamente
repudiadas por membros das comunidades, os quais disseram que as reuniões
violavam uma série de leis moçambicanas sobre o acesso à informação e o
processo de consulta pública com as comunidades afectadas.
O
mais ultrajante ainda é que as consultas não aconteceram antes de se falar do
projecto, mas, sim, seis anos depois de os investidores brasileiros terem
ouvido falar, pela primeira vez, sobre o plano. Dois anos depois, o projecto
chegou ao conhecimento do público num momento em que vários conflitos de terra
estavam e continuam a eclodir ao longo do Corredor de Nacala.
Agora,
a controvérsia história do ProSAVANA está a repetir-se como uma farsa. O
Conselho de Ministros de Moçambique está a considerar aprovar um projecto
massivo ao longo do rio Lúrio, na região norte do país, sem fazer uma consulta
junto a uma população de aproximadamente 500.000 pessoas afectada pelo programa
nessa área.
O
vale do rio Lúrio: o próximo ProSAVANA?
Em
Dezembro passado, um funcionário do Ministério da Agricultura facultou-nos uma
informação sobre o projecto do vale do rio Lúrio. Segundo ele, o ProSAVANA era,
em larga escala, um fracasso; por isso os investidores não estavam interessados
nele, e que o lançamento do plano tinha sido conduzido de forma ruim. Esperava
que isso fosse levar a uma mudança, sincera, de comprometimento por parte do Governo
em relação a tais projectos controversos de larga escala, mas nada disso
aconteceu. O funcionário a que nos referimos disponibilizou-nos uma proposta do
programa detalhado para o vale do rio Lúrio.
O
projecto em questão continua envolvido num manto de segredos, pese embora o
Conselho de Ministros esteja a ponderar aprová-lo. A única informação pública
disponível é uma breve apresentação em Power Point feita em Janeiro de 2014 para um
grupo selectivo de investidores, agências de desenvolvimento e oficiais do
Governo. A proposta de projecto, cujo documento tem quatro centímetros de
espessura, não foi disponibilizada ao público.
O
projecto do rio Lúrio é enorme, tão grande como qualquer iniciativa do
ProSAVANA. Com um orçamento de 4.2 biliões de dólares norte-americanos, ele
inclui dois planos de barragens e uma série de programas de desenvolvimento
agrário que cobrem uma área de mais de 240.000 hectares (cerca de 600.000
acres). Os planos incluem a construção de infra-estruturas de irrigação para
dar apoio a uma ampla gama de grandes, médias e pequenas farmas interessadas em
cultivar uma variedade de produtos: algodão, milho, açúcar, etanol e gado.
De
acordo com uma análise feita pelo grupo de pesquisa moçambicano Acção Académica
para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais (ADECRU) e pela organização
internacional de movimento social GRAIN, a área da proposta do projecto
afectaria cerca de 500.000 pessoas ao longo de nove distritos de três
províncias da região norte. O relatório estima que o projecto do rio Lúrio iria
deslocar 100.000 pessoas, já que ele atravessa uma das regiões mais populosas
da zona rural de Moçambique.
Pesquisadores
da ADECRU visitaram, no início de Maio corrente, oito dos distritos afectados.
Os residentes e líderes comunitários relataram que eles, para além de não terem
sido consultados, nunca ouviram falar sobre esse projecto. A ADECRU solicitou
ao Governo uma cópia da proposta do projecto, como previsto pelas leis
moçambicanas, mas até 13 de Maio de 2015 eles ainda não tinham recebido
resposta alguma. O grupo divulgou, naquele mesmo dia, com a GRAIN, um
comunicado de imprensa a denunciar o carácter sigiloso e secretista do projecto
e a falta de consulta pública, e solicita ao Conselho de Ministros que o mesmo
não seja aprovado.
A
história está a repetir-se? Não teria sido uma das falhas fundamentais do
ProSAVANA o seu carácter oculto e secreto, além das consultas públicas tardias
com comunidades afectadas? As leis de terra em Moçambique são progressistas e
prevêem acesso público à informação e consultas públicas prévias junto às
populações impactadas pelo projecto. Alguns investidores seguiram tais leis e
muitos encontraram comunidades dispostas a trabalhar com eles. Muitos outros
não as seguiram.
Durante
a nossa visita, em Dezembro último à província nortenha de Nampula, vimos,
repetidamente, casos de camponeses que perdem as suas terras em benefício de
estrangeiros sem qualquer aviso prévio. Em alguns casos, eles simplesmente
encontraram uma cerca a atravessar as suas terras, mesmo quando eles tinham
título de posse legal (Direito de Uso e Aproveitamento da Terra – DUAT). Outros
não conseguiram sequer encontrar qualquer documentação que indicasse a
identidade ou a nacionalidade dos farmeiros que ameaçam as suas terras, e
tampouco puderam encontrar os mapas que delineavam as terras que tinham sido
concedidas a tais usurpadores.
Em
relação ao projecto do rio Lúrio, as investigações da ADECRU não puderam
identificar, sequer, os investidores envolvidos. Por outro lado, eles
descobriram um consórcio criado para gerir o projecto. Trata-se da Companhia do
Vale do Rio Lúrio (CVRL). Dois dos principais membros são a companhia
TurConsult, com um passado de desenvolvimento em hotelaria e turismo, e a
AgriCane, uma companhia açucareira da África do Sul, que também faz consultoria
para projectos de larga escala em África. Até agora ninguém identificou outros
investidores internacionais ou as possíveis fontes de financiamento para
desenvolvimento provenientes de credores internacionais, embora um dos
projectos de barragem possa envolver o Banco Mundial.
Consentimento
Crítico
O
Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) é um princípio sagrado dos
direitos humanos internacionais. As partes afectadas devem ser informadas antes
do início de um projecto e elas devem dar o seu consentimento num processo
livre de coerção ou intimidação. Esse princípio é consagrado em praticamente
todas as directrizes e normas criadas recentemente, tais como as “Directrizes
sobre Investimentos Responsáveis em Agricultura” elaboradas pela Comissão
Mundial em
Segurança Alimentar, e o “Plano de Acção de Nairobi para
Investimentos Agrários de larga escala”. Muitos destes instrumentos estavam em
discussão na conferência organizada pela Coligação Internacional para o
Acesso à Terra, da qual participámos em Dakar, Senegal.
O
que torna um projecto de desenvolvimento agrário de larga escala numa
expropriação de terra é a falta de consentimento. No projecto do rio Lúrio, o
Governo de Moçambique optou por não disponibilizar as informações antes de
aprovar um projecto de larga escala e falhou por não informar e consultar as
comunidades afectadas e, muito pior, por não obter o seu consentimento.
As
consultas tardias do ProSAVANA podem dificilmente ser consideradas como
melhorias. A ADECRU e a Comissão Episcopal de Justiça e Paz de Nampula
denunciaram o processo recente de consulta pública como sendo manipulado e por
violar as leis de informação do país. Os dois grupos monitoraram 24 das 38
consultas previstas e descobriram membros das comunidades que foram excluídos e
intimidados, reuniões abarrotadas com oficiais de Governo, e as informações
acerca do novo Plano Director não disponibilizadas a tempo. As consultas não
envolveram as muitas comunidades afectadas previstas no plano do projecto.
Projectos
agrários internacionais de larga escala continuam a ser controversos mesmo
quando são introduzidos de acordo com a lei. Quando esses projectos ignoram os
princípios de consentimento livre, prévio e informado, eles estão destinados a
gerar sérios conflitos. Veremos mais conflitos como este na região norte de
Moçambique, caso o Conselho de Ministros aprove o projecto do vale do rio
Lúrio.
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Timothy A. Wise é Director do Programa de Política e Pesquisa do Instituto de
Desenvolvimento Global e Meio Ambiente da Universidade de Tufts.