Filipe
Figueiredo, São Paulo - Opera Mundi
Entenda
o argumento por trás da demanda do premiê Alexis Tsipras, exigindo o pagamento
de uma dívida 'financeira e moral' que persiste desde a 2ª Guerra
Há
uma semana, o primeiro-ministro da Grécia, Alexis Tsipras, esteve em Berlim,
onde se encontrou com a chanceler alemã, Angela Merkel. O tema principal foi,
obviamente, a discussão da dívida grega, que supera os € 300 bilhões.
O governo Tsipras já abandonou a retórica do calote na dívida, mas insiste em
discutir seus termos e, principalmente, garantir que o país tenha meios para
sanar a “crise humanitária” decorrente do colapso econômico. Nas conversas com
Merkel, entretanto, existe o componente da crescente antipatia grega ao governo
alemão. Maior fiadora da moeda europeia, a Alemanha também é vista como a vilã
causadora da crise, mas agora com um novo, e delicado, elemento: Tsipras, em
plena capital alemã, afirmou que a Alemanha possui uma dívida “financeira e
moral” para com a Grécia, decorrente da Segunda Guerra Mundial.
A
demanda grega é baseada em dois fatores principais. Em 1942, o governo fantoche
da Grécia ocupada teria sido obrigado a emprestar depósitos em ouro no valor
equivalente de 476 milhões de marcos, sem juros devidos, ao governo do Reich
alemão. Um relatório do Bundestag, o Parlamento alemão, de 2012, estima que o
valor corrigido seria de cerca de € 8 bilhões — a Grécia, por sua vez,
calcula o valor em € 11 bilhões, apenas corrigido, sem a incidência de
juros. O tempo verbal utilizado não é por excesso de zelo, mas pelo fato de que
a existência de tal “empréstimo” é contestada. Claramente não se trataria de
empréstimo, mas de confisco forçado por uma potência ocupante. Além disso, a
natureza dos documentos é dúbia. Argumenta-se tanto que é uma dívida quanto que
são apenas papéis de contabilidade da ocupação alemã na Grécia.
Além
disso, a Grécia considera que não foi contemplada nos acordos de reparação e
indenização do pós-guerra. O país foi indenizado pela Itália e pela Bulgária
nos Tratados de Paz de Paris de 1947, mas a discussão de reparações pela
Alemanha não foi feita, sendo deixada para o tratado de paz final. Isso foi
acordado em 1953, com o Acordo de Londres sobre a dívida alemã. Após a divisão
do país em duas repúblicas alemãs, a Federal (Ocidental) e a Democrática
(Oriental), e a busca por espaço na polarização da Guerra Fria, o encerramento
formal da Segunda Guerra Mundial se deu apenas em 12 de setembro de 1990, com o
tratado sobre o acordo final em respeito à Alemanha, que reunificou o país.
Assinado pelas duas repúblicas alemãs e pelas quatro potências aliadas (EUA,
URSS, Reino Unido e França), o tratado não aborda indenizações financeiras e
não contou com representantes de países tais como a Grécia.
A
reunificação da Alemanha é essencial para a compreensão dessa dívida, pois o
citado Acordo de Londres, além de amenizar o débito alemão, classificado de
“impagável”, estabelecia que todas as dívidas fossem pagas pela Alemanha
unificada, incluindo débitos decorrentes do Tratado de Versalhes, após a
Primeira Guerra Mundial. O débido deste conflito de quase um século atrás só
foi finalmente quitado quando a Alemanha pagou os últimos € 70 milhões em
outubro de 2010.
No
que concerne à Segunda Guerra Mundial, a Alemanha fez uma série de acordos bilaterais
com outros países e também reparações pelas atrocidades cometidas contra as
populações dos países ocupados. Por exemplo, no decorrer de décadas, a
ex-Iugoslávia recebeu quase US$ 40 bilhões (data base de 1938) em
equipamentos e fábricas transferidas. Na década de 1970, a Alemanha ocidental
pagou mais de 1 bilhão de marcos à Polônia, além de compensações financeiras e
territoriais pela então Alemanha oriental.
Dívidas
do holocausto
O
caso mais conhecido é o de reparações pelo Holocausto pagas ao Estado de
Israel, considerado herdeiro legal para famílias de judeus que não deixaram
parentes vivos. Estima-se que, em valores atuais, as compensações foram
equivalentes a US$ 150 bilhões, pagos por duas décadas. Em 1960, a Alemanha
ocidental pagou 115 milhões de marcos em compensação às vítimas gregas do
Holocausto, e esse é o único pagamento alemão para a Grécia confirmado.
Entra-se,
então, em uma disputa legal, baseada na retórica jurídica. A Alemanha considera
que já indenizou os países devidos, incluso a Grécia em 1960, e que os temas de
compensação entre países foram encerrados pelo tratado da reunificação de 1990;
Merkel afirmou que o assunto está “legalmente e politicamente encerrado”. A
Alemanha, hoje, aceita apenas casos de compensação individual.
A
Grécia, por sua vez, afirma que a indenização de 1960 foi para indivíduos, que
nem o país foi indenizado e nem o empréstimo forçado de 1942 foi compensado. A
Grécia teve quase meio milhão de mortos durante a guerra e a consequente
ocupação, de uma população de pouco mais de 7 milhões de habitantes. Cerca de
300 mil morreram de fome ou doença durante a ocupação e quase toda a população
judia do país foi exterminada. Daí a frase de que a Alemanha possui uma
obrigação moral para com a Grécia. Logo após a Segunda Guerra Mundial, a Grécia
viveu em guerra civil até 1949. Temerosos por uma vitória da guerrilha
comunista que resistiu aos nazistas, os EUA colocaram a Grécia no Plano
Marshall; a rápida separação da Europa em duas zonas de influência efetivamente
suspendeu as conversas sobre reparações alemãs. Chega-se ao ponto de ameaças
veladas de confisco de propriedades alemãs por Nikos Paraskevopoulos, Ministro
da Justiça do governo Tsipras.
Precedente
aberto?
A
diferença de perspectivas sobre o tema é clara. A Alemanha foca-se nos aspectos
políticos e legais de uma eventual reparação à Grécia, especialmente o temor de
que abra um precedente perigoso. Bélgica, Noruega, Dinamarca, República Tcheca
e Eslováquia foram ocupados diretamente pela Alemanha e poderiam pedir
compensações semelhantes. A Grécia baseia-se na condenação moral do país
derrotado no maior conflito da Europa e no fato de que a indenização teria fins
humanitários, a recuperação da economia e da sociedade gregas. Algumas
estimativas extrapolam que compensações totais e seus respectivos juros
simplesmente cobririam toda a dívida grega. Para o cidadão alemão, entretanto,
a Grécia passa por caloteira; além de não querer pagar suas dívidas, é
oportunista em querer usar a Segunda Guerra Mundial como escudo. Essa acusação
não é totalmente verdadeira.
O
governo grego fala do assunto, na atual conjuntura, desde 2012, ainda durante o
governo do conservador Antonis Samaras. A cobrança, entretanto, é histórica. O
europarlamentar e herói da resistência Manolis Glezos cobra o governo alemão
desde a década de 1970. Para os gregos, fica o ressentimento de um país que se
viu como alvo de especulação, especialmente por uma potência que ocupou e
vitimou o país. E as notícias fazem com que o ressentimento fique difícil de
esquecer. Uma das queixas gregas é que a Alemanha foi um dos maiores
beneficiados dos orçamentos gregos nos últimos 15 anos; a Grécia assinou
contratos de mais de € 8 bilhões para aquisição de cerca de 500
tanques e quatro submarinos alemães. Há uma semana, no dia 26 de março, 32
gregos, civis e militares, foram indiciados por corrupção no processo de compra
dos submarinos. Do tema, delicado, das indenizações pela guerra, fica a
reabertura de feridas entre os dois países e, principalmente, entre as duas sociedades.
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