Rui
Peralta, Luanda (continuação - ler anteriores)
VI
- A cimeira internacional realizada em Paris com objectivo de coordenar o
combate ao ISIS, reuniu cerca de 30 países e formou uma coligação liderada
pelos U.S.A., enquanto os fascistas islâmicos executavam reféns ocidentais,
decapitando-os. O encontro realizou-se uma semana depois de Obama ter revelado
o plano de ataques aéreos contra o ISIS na Síria e no Iraque. Este plano foi
apoiado pela França, apoio que o presidente François Hollande expressou ao
apelar para a unidade internacional no combate contra o ISIS. É nas palavras do
presidente francês que se revela o conteúdo ideológico do discurso desta
coligação. Hollande utilizou - e bem - os termos "terrorismo",
"movimento terrorista", "ameaça global" e
"resposta global". O problema, no entanto, é que esta coligação foi
formada em função dos interesses de Washington e em função desses interesses, o
fascismo islâmico é uma arma de arremesso contra a Síria, o Irão e a Rússia.
A
coligação de Washington, coadjuvada pelo intrépido François Hollande (logo com
os interesses da França por arrasto, o que deixa os franceses com os restos, a
fazerem figura de peixinho limpa-fundos, o que deve obrigar De Gaulle a dar
umas voltas no tumulo), irá ser um misto de policia de intervenção e casa de
correcção, para que os "rapazes" do califado virem as suas hormonas
para outro lado e apliquem utilmente (para os interesses ocidentais, claro) os
seus ardorosos ímpetos juvenis. Para tanto basta umas bofetadas á distancia
(através das "bombocas" atiradas pelos aviões) e depois alguns
correctivos mais cara-a-cara, procurando "inseri-los" e
"enquadrá-los".
Como
bom serviçal, o novo primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, ordenou
(traduziu a ordem) á Força Aérea Iraquiana, para não bombardear os abrigos nas áreas
civis, mesmo nas localidades ocupadas pelo ISIS. O Estado iraquiano pretende,
desta forma (aparentemente) fazer face á vaga de criticas, devido ao bombardeamento
indiscriminado. A questão é hipócrita a vários níveis. A preocupação não é com
os civis. Todos os que têm experiencia em situação de guerra (ou os que
sofreram uma boa recruta e uma sólida formação militar básica), sabem que este
é um problema que deve ser analisado de diversos ângulos. Os danos colaterais
são, em condições determinadas, inevitáveis e nunca devem ser escamoteados. Mas
o problema do governo iraquiano prende-se não com a salutar opção de salvar
vidas inocentes mas com o facto do exército sírio ter essa pratica - de
bombardear objectivos no seu próprio território - e essa desgraça ser
aproveitada pela máquina de propaganda anti-governamental síria e pelos
panfletos propagandísticos (vulgo jornais e meios audiovisuais) ocidentais (e não só, até
mesmo o bajulador Jornal de Angola e a incipiente TPA, fazem, a troco de nada,
o favor aos "amos secretamente desejados"), ou nos relatórios
internacionais como um da Human Rights Watch (HRW), que denunciou a morte de 31
civis (entre os quais 24 crianças) num ataque da Força Aérea Iraquiana que
atingiu uma escola na região de Tikrit.
Outra
questão que coloca duvidas quanto aos objectivos desta coligação prende-se com
a Síria. Como é sabido o califado localiza-se numa região que estende-se por
este país e pelo seu vizinho Iraque. A Casa Branca andou num corrupio para
estabelecer um acordo entre as diversas forças politicas (curdos, xiitas,
sunitas moderados). Seria de esperar que fizesse o mesmo em relação á Síria...
Mas não! Com dois pesos e duas medidas, a administração Obama considera que o
combate ao ISIS na Síria não deve envolver o exército sírio, mas o Exército
Livre da Síria, recuperado do Livro dos mortos. Ficamos, assim, esclarecidos
acerca das reais intenções da coligação.
O
New York Times divulgou, em finais de Agosto, uma reportagem, onde o "Free
Syrian Army", os "moderados", é acusado de executar 6
prisioneiros por degolação. Mesmo assim o Secretário de Estado John Kerry
enfatizou o papel da oposição síria no combate ao ISIL. Disse Kerry: "The
Syrian opposition is on the ground. And one of the regrettable things is it has
been fighting ISIL by itself over the course of the last couple of years, and
it’s one of the reasons that they’ve had a difficult battle. Now, with the air
support and other effort from other countries, they will be augmented in their
capacity. One of the things the president put in the plan is the effort to
increase the training, increase the equipping and advising to that—to the
Syrian opposition. And I can’t tell you whether some other country in the
neighborhood will or won’t decide to put some people in there". As
palavras de Kerry, no entanto, camuflam a realidade no terreno.
A
componente maioritária da oposição síria assinou um acordo com o ISIS, que se
manterá em vigor até a queda de Assad. Portanto esta noção de que o ELS vai
combater o ISIS é conversa para boi dormir. O que se irá passar na Síria é que
as armas, munições e treino, fornecidos pelos USA e NATO, mais o dinheiro
financiado pelos petro-protectorados do Golfo representarão uma mais-valia para
os fascistas do Califado, que aumentarão a sua capacidade militar. Esta
história já se passou antes, com os curdos, quando estes controlavam as áreas
fronteiriças entre a Síria e a Turquia, aproveitando as armas que iam para o
ELS, que nunca as recebiam. Curdos, Hezbollah e milícias sírias pro-governamentais
usufruíram deste abastecimento. Quando a CIA e os turcos se aperceberam
alterarem os pontos de passagem. Mas estes novos pontos eram controlados não
pelo ELS, nem pelo Conselho Nacional Sírio, mas pelos fascistas da Al-Nusra, o
braço da Al-Qaeda no pais, que mais tarde fundiu-se com a sua congénere
iraquiana, fundando o ISIS.
A
solução passa, pois, por Damasco e Teerão, duas das sete cidades-pilares do
Islão. Também á dois anos atrás, quando a ONU iniciou o processo de diálogo na
Síria, entre o governo e a oposição, os USA não consentiam a participação do
Irão. Acabaram por ceder e as negociações iniciaram-se. Afinal o Irão faz,
indubitavelmente, parte da solução!
VII
- Existe um outro problema por resolver e causador de dores de cabeça: o
problema saudita. O governo saudita recebeu cerca de 60 mil milhões de USD em
armas, munições, formação e equipamento militar, dos USA, nos últimos 2 anos.
Muitas destas armas, munições e equipamento foram parar ao ISIS, através de
interesses dos clãs sauditas e dos serviços de segurança, inteligência e contra
inteligência, que desta forma afastam o ISIS do território, recorrendo a uma
tradicional prática tributária, vigente em toda a região (por exemplo, os
sírios no Líbano, durante a vigência da Pax Siria nesse país, pagavam tributo
aos drusos para atravessarem o vale de Bhekah e o mesmo fizeram os israelitas e
fazem os curdos e o Hezbollah. O não pagamento deste tributo saiu caro á OLP).
Egipto,
Iraque, Jordânia, Líbano, Arábia Saudita, Qatar, Bahrein, Emiratos Árabes
Unidos, Omã e Kuwait, concordaram ajudar os USA a combater o ISIS, durante um
encontro com o Secretario de Estado John Kerry, ocorrido em Riade, no 13º
aniversário do 11 de Setembro. Neste encontro Kerry afirmou: "Arab nations
play a critical role in that coalition, the leading role, really, across all
lines of effort: military support, humanitarian aid, our work to stop the flow
of illegal funds and foreign fighters, which ISIL requires in order to thrive,
and certainly the effort to repudiate once and for all the dangerous, the
offensive, the insulting distortion of Islam that ISIL propaganda attempts to
spread throughout the region and the world". Treze anos após o 11 de
Setembro, ocorre um encontro para discutir a "ameaça terrorista global",
no pais que forneceu 15 dos 19 terroristas que participaram no ataque de 11 de
Setembro.
Pode,
este facto, indicar duas pistas: 1) os USA não aprenderam nada, em 13 anos; 2)
as ligações entre Washington e Riade ultrapassavam as meras sociedades de
interesses no sector petrolífero e derivados, sendo a Arábia Saudita um
colonato norte-americano com funções geoestratégicas, geopolíticas e
geoeconómicas de longo prazo. A primeira hipótese é uma carapuça que só serve
os incautos e ingénuos. A segunda é um cenário determinado pelas dinâmicas
externas, que necessita ser confirmado pelas dinâmicas internas da região. E
estas desenvolvem-se em diversos sentidos e níveis de intensidade.
Nos
Estados do Golfo existe um movimento das classes médias, no sentido da democratização
e da liberalização da vida politica, social e económica. Não choca frontalmente
com os interesses ocidentais a longo prazo e até os favorecem, mas as
exigências destas camadas são imediatas e urgentes, não se encaixando nos
moldes das eventuais reformas prometidas pela realeza e acordadas (por descargo
de consciência) com os USA e NATO. Os movimentos internos na Arábia Saudita vão
desenrolar-se em torno de questões como os direitos das mulheres, a
homossexualidade, liberdade de expressão e de informação. Paralelamente a estes
movimentos e nele inseridos, manifestar-se-ão as minorias xiitas, os movimentos
sindicais e de trabalhadores imigrantes e movimentos estudantis.
Todos
estes movimentos repudiam o ISIS, coisa que não acontece nas elites dominantes
sauditas, onde as relações de famílias e de clãs colocam o assunto fora do
alcance das palavras de Kerry.
VIII
- Obama (como de costume), foi cilindrado pelos falcões - republicanos e
democratas - no Congresso e assumiu a insanidade de prosseguir na agressão a
Damasco. A administração Obama utiliza um ardil bem encenado e actua num palco
bem montado, embora o argumento seja pobre e mal escrito, baseado no velho
conto do policia bom (ele, Obama) e o policia mau (os republicanos). Este
argumento serve para a politica interna (caso da politica de saúde e das
reformas sociais) e para a politica externa.
Quando,
recentemente, acerca do combate ao ISIL, Obama referiu: "I want the
American people to understand how this effort will be different from the wars in
Iraq and Afghanistan. It will not involve American combat troops fighting on
foreign soil. This counterterrorism campaign will be waged through a steady,
relentless effort to take out ISIL wherever they exist, using our air power and
our support for partners’ forces on the ground. This strategy of taking out
terrorists who threaten us, while supporting partners on the front lines, is
one that we have successfully pursued in Yemen and Somalia for years. And it is
consistent with the approach I outlined earlier this year: to use force against
anyone who threatens America’s core interests, but to mobilize partners
wherever possible to address broader challenges to international order" ,
assume uma posição que transforma o drama em comédia barata. Iémen e Somália
são exemplos, de facto, mas não do que deve ser feito, da mesma forma que o
Afeganistão e o Iraque, ou o desastre líbio.
A
intervenção norte-americana no mundo islâmico é um dos factores geradores do
fascismo nesta parte do mundo. Os Talibãs no Afeganistão, os tribunais
islâmicos na Somália, os bandos líbios, o califado no Iraque e Siria, a
Al-Qaeda, são consequência do Great American Disaster da intervenção, para alem
de serem causadas pelos fenómenos inerentes ás dinâmicas internas. Os
norte-americanos acumulam erros de analise no que respeita ao mundo islâmico.
Por exemplo: Obama autorizou ataques aéreos na Siria e o incremento dos
bombardeamentos contra o Califado. Os ataques aéreos são eficazes quando
existem forças no terreno. E aqui reside a grande questão operacional desta
opção. No interior do Iraque ou da Siria existem três forças principais, que
podem constituir um suporte ás acções aéreas: os combatentes curdos (
Peshmerga); as forças armadas dos respectivos Estados; as milícias locais (xiitas,
sunitas anti-fascistas e outras). Estas são as forças no terreno que poderão
ser o suporte das acções aéreas e simultaneamente as que consideram as acções
aéreas um suporte para a sua movimentação. O problema é que a coligação exclui
a maioria destas forças. Ao excluir o governo sírio exclui as forças armadas
sírias e todas as milícias pró-governamentais sírias (BAAS, curdos, xiitas). Ao
excluir o Irão cria desconfianças no campo xiita, que no caso iraquiano
reflectem-se nas alianças politicas. Ao apoiar, na Siria, as milícias
anti-governamentais esta a reduzir a base de suporte operacional da coligação
neste país (não esquecer, também, que os curdos, têm um acordo com
Bashar). Por outro lado nada está a ser feito em termos de captação e de mobilização
das maiorias sunitas, que constituem o suporte do ISIS.
Os
USA não conseguem entender a estrutura de alianças no mundo islâmico, em geral
e no mundo árabe em particular, embora falem muito sobre isso e publiquem
toneladas de papel referenciando o assunto. Ao partirem para o campo de analise
com pressupostos baseados nos mitos da "liberdade e democracia do
Ocidente", do "despotismo oriental", do "choque de
civilizações" e outras barbaridades do género, os USA não podem esperar
fazer uma analise correcta de uma situação que ocorre a milhares de quilómetros
das suas fronteiras, no mundo cultural diferente do seu e que apenas USA
interferiram e interferem em função dos seus interesses imperiais, com uma
atitude colonialista, desprezando povos, culturas e História.
As
intervenções norte-americanas no mundo islâmico geraram expectativas, primeiro,
duvidas, depois e revolta logo de seguida. Os povos do mundo islâmico aspiram a
regimes democráticos, onde as liberdades, direitos e garantias sejam uma
realidade. Aspiram á justiça social, a uma vida melhor, a condições de saúde e
de educação e a construir um mundo onde os seus filhos vivam com dignidade.
Nesse sentido as suas aspirações são as mesmas de qualquer cidadão dos USA e da
U.E., do mundo ocidental, da cultura "cristã". Os parâmetros são os
mesmos e os anseios e esperanças têm o mesmo teor, assim como a dignidade e o
direito a uma vida condigna. O problema não é o Islão, não são os sunitas, nem
o fundamentalismo teológico. O problema é o fascismo que se faz sentir a
Oriente e a Ocidente, como reacção aos novos paradigmas colocados pela
economia-mundo e que não encontram resposta nos dois principais arsenais
ideológicos do capitalismo (liberalismo e socialismo).
continua