Rui
Peralta, Luanda
I
- Quando, em Julho, Israel iniciou o ataque a Gaza, Washington entrou em
frenesim, ao melhor estilo Gospel. A Casa Branca e o Capitólio mais pareciam
enormes templos onde os fiéis entram em transe, enquanto o Pastor grita, geme e
contorce-se ao som de um coro de espasmos, na mais absoluta epifania. Obama
reiterou a sua "forte condenação" aos rockets lançados contra os
colonatos e aos ataques contra o exército sionista através da rede de tuneis
pelo Hamas. Expressou, ainda, uma "crescente preocupação" com o
numero de civis Palestinianos mortos em Gaza, embora sem condenar ou
culpabilizar o exército israelita, o que foi aproveitado pelo Senado, que
aprovou por unanimidade o apoio às acções israelitas em Gaza, enquanto condenava
"as provocações" do Hamas e apelava ao Presidente da Autoridade
Palestiniana Mahmoud Abbas para dissolver o governo de unidade com
o Hamas e que condenasse os ataques a solo israelita.
Para
Washington é normal que na Cisjordânia, os israelitas avancem com a construção
ilegal de colonatos e respectivas infraestruturas, para que possam ser, depois
de valorizadas, integradas em Israel, enquanto os Palestinianos são acantonados
e sujeitos a uma intensa repressão e violência. É também normal, para
Washington, que nos últimos 14 meses as forças de segurança de Israel tenham
assassinado mais de duas crianças Palestinianas por semana. A violência
sionista subiu de tom depois do assassinato brutal de três adolescentes
israelitas de um dos colonatos israelitas nos territórios ocupados. Um mês
antes, dois adolescentes Palestinianos foram baleados mortalmente na
cidade de Ramallah.
Olho
por olho, dente por dente, é uma norma que Washington considera legitima para
Israel, pois não é este o único Estado de Direito na região? (claro que para os
Palestinianos esta norma não pode ser aplicada, pois Washington atira-lhes logo
com os Direitos Humanos á cara e quanto aos Estados árabes da região mesmo que
sejam Estados de Direito, para Washington não interessa, porque é Direito Islâmico).
II
- A intenção de separar Gaza da Cisjordânia é vigorosamente tentada desde a
assinatura dos acordos de Oslo. Por estes acordos as duas regiões são partes
inseparáveis. Um olhar rápido ao mapa explica porquê: Gaza é o único contacto
territorial da Palestina com o mundo exterior. Se a unidade territorial for
quebrada a Palestina fica fechada na Cisjordânia aprisionada entre dois Estados
hostis (Israel e Jordânia). Em Gaza, os Palestinianos foram afastados das áreas
de fronteira com Israel, o que inclui cerca de um terço das terras aráveis. Os
israelitas alegam razões de segurança, mas a realidade é outra. A
História oficial descreve um conto que é assim: depois de Israel ter,
graciosamente, entregue Gaza aos Palestinianos, esperaram que estes construíssem
um Estado próspero e que a Paz reinasse na região. Mas os Palestinianos
revelaram a sua verdadeira natureza, atacando Israel com rockets. Só que este é
um conto que está bem distante da realidade e cuja moral da história é
suspeita. Israel dedica a sua atenção á destruição da Palestina e
empenha-se nesse objectivo.
Em
Janeiro de 2006 os Palestinianos cometeram um "crime": elegeram, em
eleições livres e internacionalmente supervisionadas, o Hamas para a
administração de Gaza. Óbvio que diversos factores pesaram nesta decisão dos
palestinianos de Gaza (talvez não se deva dizer que foi uma vitória eleitoral
do Hamas, mas antes uma derrota eleitoral da OLP), mas um facto é que o Hamas
mostrou-se, quase sempre, dentro dos âmbitos definidos pela soberania popular.
USA, U.E. e Israel é que nunca aceitaram esta decisão dos habitantes de Gaza e
no caso de Israel, a derrota da OLP, serviu para agitar o fantasma
fundamentalista islâmico e terrorista e alegar razões de segurança para lançar
uma forte ofensiva politica, diplomática e militar. Foram impostas sanções, que
mais não eram que o primeiro passo da ofensiva militar, iniciada pela guerra
económica.
Em
2013 o Hamas e o Fatah (maioritário na Cisjordânia) estabelecem um acordo que
reforça a unidade palestiniana e leva á formação de um novo governo, sem
participação do Hamas e aceitando todas as propostas do Quarteto (USA, U.E.,
Rússia e Israel). Esta vitória diplomática palestiniana afastava-se dos planos
de Israel. O acordo de unidade palestiniana foi um golpe bem assente, que
obrigou Israel a alterar a sua estratégia negocial. Os israelitas já não
estavam perante uma Palestina dividida, uma Cisjordânia isolada e uma Gaza
afogada. Algo tinha que ser feito e o assassinato dos três jovens israelitas na
Cisjordânia aconteceu no momento exacto.
O
governo de Netanyahu aproveitou a situação e acusou o Hamas de estar por detrás
dos assassinatos. O facto de estes terem ocorrido na Cisjordânia serviu para
que o governo israelita lançasse as suspeitas que o Hamas agia clandestinamente,
com o objectivo de destruir a Autoridade Palestiniana e retirar a maioria á
Al-Fatah, tomando o poder na Cisjordânia. Desta forma, os sionistas tentavam
criar divisões na unidade palestiniana, fazendo-a regressar á situação anterior
(embora a base deste argumento não seja apenas uma mera invenção dos
israelitas.
Um
olhar atento às relações entre as elites palestinianas e às dinâmicas internas
palestinianas, não exclui essa pretensão do Hamas). Um dos especialistas
israelitas em assuntos do Hamas, Shlomi Eldar, considera que estes três
jovens israelitas foram executados por um clã dissidente do Hamas baseado em Hebron. As autoridades
israelitas ignoraram, no entanto, os pareceres dos seus especialistas e
procederam a detenções massivas, prendendo 419 palestinianos, dos quais
335 eram militantes do Hamas. Foram, ainda, mortos, pelas forças
israelitas, 6 palestinianos durante as operações de detenção, para além dos
israelitas confiscarem 350 mil US dólares. A 7 de Julho Israel efectuou dezenas de ataques a Gaza, matando
cinco militantes do Hamas. O Hamas reagiu, depois destes ataques,
lançando os primeiros rockets em 19 meses. A 8 de Julho os israelitas iniciaram
a operação Margem Preventiva.
Em
finais de Julho cerca de 1500 Palestinianos estavam mortos, numero que
ultrapassou as estatísticas dos bombardeamentos israelitas de 2008-9. 70%
destas baixas são civis, incluindo um número ainda indeterminado de mulheres,
idosos e crianças. Estes dados de finais de Julho contrastam com as baixas
civis israelitas, vitimas dos rockets do Hamas: três. Vastas áreas de
Gaza foram completamente destruídas. Durante as pausas dos bombardeamentos da
artilharia e força aérea israelitas, os civis de Gaza contam os mortos e tratam
dos feridos, para além de fazerem contas aos bens perdidos, no meio das ruinas.
A central de energia foi atacada, limitando ainda mais a deficiente
distribuição de electricidade, com todas as implicações que advêm da falta de
rede eléctrica (alimentos, água, hospitais, etc.. As equipas de salvamento são
repetidamente atacadas e grande parte das ambulâncias encontram-se danificadas,
devido aos ataques israelitas. Quatro hospitais foram atacados pela artilharia
israelita. O primeiro foi Al-Wafa, na cidade de Gaza, um Hospital de Reabilitação,
atacado no dia em que as forças terrestres israelitas invadem a prisão de Gaza.
Grande parte dos 17 pacientes e dos 25 médicos e enfermeiras são
evacuados antes do edifício ser destruído.
Também
uma escola da ONU foi atacada, deixando 3300 refugiados sem aulas. A ultrajada
UNWRA reagiu, assim como o secretário-geral da ONU, mas o vento levou as
palavras. O vento e a Casa Branca, através de uma das suas porta-vozes,
Bernadette Meehan, que varreu as palavras da ONU para debaixo do tapete da sala
oval, desta forma: “We are extremely concerned that thousands of internally
displaced Palestinians who have been called on by the Israeli military to
evacuate their homes are not safe in UN designated shelters in Gaza. We
also condemn those responsible for hiding weapons in United Nations
facilities in Gaza”. Foi, assim, omitido qualquer menção ao ataque e á
destruição da escola, ao mesmo tempo que a ONU foi acusada de albergar
armamento do Hamas. Mais tarde a administração norte-americana condenaria
a destruição das infra-estruturas escolares da ONU fornecendo mais armas a
Israel, conforme se conclui pelas palavras do porta-voz do Pentágono, Steve
Warren: “And it’s become clear that the Israelis need to do more to live
up to their very high standards (…) for protecting civilian life”.
São, sem dúvida, altos os standards da hipocrisia da Casa Branca e dos falcões
do Pentágono...
III
- Ataques a estruturas e infraestruturas da ONU, como escolas, abrigos,
centros de apoio a populações, campos de refugiados e mesmo a aquartelamentos
das forças de paz, é um hábito e uma especialidade sionista. Actualmente
já existem muitos Estados que não deixam cair no atroz silêncio da diplomacia
hipócrita, estes atentados contra a comunidade e o Direito internacionais. Bolívia
e Venezuela deram um exemplo ao retirarem os seus embaixadores em Israel. Este exemplo
foi seguido por mais cinco Estados (todos Latino-Americanos): Brasil,
Chile, Equador, El Salvador e Peru.
Diferente é a reação dos USA e da U.E.,
obcecados pela condenação do Hamas. Os europeus padecem de um sentimento de
culpa em relação aos judeus. As perseguições a que as comunidades judaicas
foram submetidas durante séculos, as atrocidades que sofreram na Europa, os
pogroms, os campos de extermínio, o Holocausto, levam a U.E. a tomar uma
atitude de simpatia por Israel, mais numa atitude de expiação. Quanto aos USA é importante lembrar que
na sua mitologia identitária são um Povo Eleito, uma Nação abençoada por Deus e
que com Ele mantem uma atitude de confiança.
Claro
que para além destes factores (expiação tolstoiana da U.E. e mitologia
norte-americana) existe o factor principal: o negócio. Este factor encontra-se
muito além das tragédias humanas causadas pela guerra. Torna-se indiferente ao
numero de mortos, de feridos, de vitimas, de questões como o facto de não haver
água potável em Gaza desde 31 de Julho porque a Coastal Water Utility, o
distribuidor de água potável para a Faixa de Gaza anunciou que não está em
condições de abastecer água e prover outros serviços sanitários devido à falta
de combustível e aos frequentes ataques às suas instalações. É indiferente aos
falcões das negociatas que Gaza esteja sem serviços primários de saúde, ou que
esteja em situação de catástrofe humanitária.
Tudo
isso são riscos secundários, factores de somenos importância. Quando este
pesadelo terminas os habitantes de Gaza serão "livres" para retornar
às ruinas das suas casas, á normalidade das detenções e das atrocidades
israelitas enquanto na Cisjordânia, os seus habitantes retornarão á normalidade
de assistirem á construção de colonatos nas suas antigas terras. Tudo isto
enquanto o negócio perdura e os USA mantêm o seu decisivo, virtual e unilateral
apoio aos crimes israelitas e impedem que o Direito Internacional seja aplicado.
Passaram-se
quatro décadas desde que Israel tomou a decisão de expandir-se,
rejeitando uma proposta de paz oferecida pelo Egipto em troca da
evacuação dos territórios do Sinai, onde Israel iniciara a construção de
colonatos. Washington interveio e o acordo foi assinado. Esta é uma constante
nas relações Washington / Telavive. Israel estica a corda e os USA observam a
corda a ser esticada. Quando a corda parece querer desfiar-se, os USA intervêm
e com a ajuda da U.E.
Seria
desejável uma mudança na política norte-americana para a Palestina, mas é
ingenuidade acreditar que isso possa acontecer, ou que a opinião pública possa
ser ouvida nesta questão, que encontra-se escudada á opinião pública por razões
de segurança (duplamente escudada pelo segredo de Estado e pelo segredo do
negócio ao nível da industria da segurança e da industria militar). Por essa
razão a Amnistia Internacional tem em curso uma acção contra os crimes
israelitas em Gaza e apela a um embargo de equipamento militar, armas e munições
a Israel (e ao Hamas), processo conduzido no Senado norte-americano pelo
senador Patrick Leahy, autor da proposta de lei.
Este
é um bom exemplo, de potencial aplicabilidade a Israel em casos
específicos e que a ser bem conduzido, representará uma porta aberta para
futuras e mais efectivas propostas de acção no sentido de inverter a actual
orientação, punindo Israel pelo seu comportamento criminoso e forçando
Washington a tornar-se parte da comunidade internacional (abandonando a sua
postura imperial e a sua politica imperialista) e a respeitar o Direito
Internacional.
Eis
algo que as vítimas palestinianas, após décadas de repressão e de violência,
agradecerão.
(continua)