A
pesquisadora Luciane Lucas dos Santos fala sobre como o atual modelo de
desenvolvimento e a sociedade de consumo se relacionam com as formas de
violência presentes em nosso cotidiano
Ieda Estergilda de
Abreu – Revista Forum
Como o atual modelo
de desenvolvimento, adotado não apenas no Brasil, mas também em outros em países,
afeta a dignidade humana? A questão do modelo neoextrativista de
desenvolvimento, a violência intrínseca a ele, o consumo e a questão indígena
brasileira, temas entrelaçados, são estudados e discutidos pela professora e
pesquisadora em Sociologia do Consumo Luciane Lucas dos Santos. Carioca com
doutorado em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), ela hoje é pesquisadora pós-doc no Centro de Estudos Sociais (CES) da
Universidade de Coimbra, em Portugal, e em junho esteve em São Paulo, onde
conduziu o 105º Fórum do Comitê de Cultura de Paz, parceria Unesco-associação
Palas Athena.
Na entrevista
abaixo, Luciane aborda as inúmeras formas de violência presentes no nosso
cotidiano e como a sociedade de consumo e o modelo de desenvolvimento nutrem a
invisibilidade desses fenômenos.
Fórum – Como se
manifesta a violência hoje, na sua avaliação?
Luciane Lucas dos
Santos – Muitos imaginam a violência como sendo apenas algo que tem a ver com o
mal que um vai causar ao outro, com o contexto da guerra, da limpeza étnica, da
violência das cidades. Há muitas formas de violência. Caminhões com ameixas
apodrecendo ao sol, que não chegam ao território palestino, é, por exemplo, uma
forma de violência. Pode-se pensar também na humilhação social e na
invisibilidade de algumas minorias – caso dos moradores de rua – como uma forma
agressiva e silenciosa de violência. É comum pensarmos que morador de rua quer
vida fácil, não faz nada, não gosta de trabalhar. Não é verdade. Estive com
alguns numa feira de trocas embaixo do Viaduto do Glicério [região central de
São Paulo] e aprendi muito. Muitos estão diretamente envolvidos na organização
da feira de trocas do Glicério. Trabalham montando e desmontando as barracas,
na limpeza dos banheiros, no apoio às tarefas da cozinha. Recebem mirucas
(moeda social) por este trabalho e, com elas, obtêm aquilo de que necessitam –
alimento, roupas, produtos de higiene pessoal. Nós temos uma concepção
equivocada sobre a população em situação de rua. Muitos trabalham. Tem gente
que veio de outros estados, da construção civil, perderam o emprego, não
tiveram como voltar e ficaram por aqui. Muitos não voltam para casa, para sua
terra, por vergonha. A razão para se estar na rua também pode ser diversa: o
abandono e a desagregação familiar, assim como o desemprego, estão entre os
motivos. A droga e o álcool chegam, às vezes, depois. A invisibilidade social a
que eles são muitas vezes relegados é, sem dúvida, uma forma de violência.
Fórum – A senhora
diz que o modelo de desenvolvimento de um país pode vir a ser, paradoxalmente,
um vetor de violência. Como é isso?
Luciane – As ideias
de progresso e desenvolvimento não raro transformam-se em desrespeito às
diversidades e às diferentes temporalidades que marcam as múltiplas formas de
organização da vida. O Brasil faz parte de um grupo de países que têm apostado
no neoextrativismo – ou seja, trata-se de uma aposta nos hidrocarbonetos, na
mineração, no alargamento dos latifúndios. As correlações, no entanto, nos
escapam. O hidrocarboneto pode estar no batom; quanto mais você compra, mais
petróleo é necessário; quanto mais renova o celular, mais é necessário o
coltan. Muita gente não sabe que por trás da sede de novidades tecnológicas
(laptops, celulares, pads), existe uma demanda crescente por este minério – o
coltan (columbita-tantalita) – e que, muitas vezes, a demanda de coltan no
mercado internacional implicará o acirramento da guerra civil em países como a
República Democrática do Congo, onde há uma grande quantidade desse minério.
Não se trata de não ter celular, mas de discutir a violência invisível que
habita os produtos, serviços e tudo mais que está no nosso cotidiano.
Fórum – Qual o
papel do consumo nesse contexto?
Luciane – A maneira
como eu me visto, onde eu como, que lugares eu frequento, tudo isto diz algo
sobre mim. Os hábitos de consumo estão diretamente relacionados à questão da
identidade. Há um mito, aqui, que precisa ser desfeito: o de que o consumo seja
um ato individual. Embora ele pareça ancorar-se na escolha do indivíduo, o
repertório que sustenta e valida o consumo é social. Isto quer dizer que,
embora os indivíduos re-signifiquem, a todo momento, os conteúdos que recebem
eles estão sempre presos a uma teia de significados validada socialmente. Outra
questão a considerar é que, no mundo contemporâneo, os nossos afetos têm sido
mediados pelo mundo dos bens. Há riscos nisto. Uma mãe atarefada que leva o
filho, no fim do dia, para comer numa destas grandes lojas de fast food está
tentando propiciar à criança uma experiência de bem-estar instantânea. Ela pode
pensar: “meu filho, não temos muito tempo para estarmos juntos…. quero que esta
experiência seja alegre pra você… se você gosta tanto de ficar aqui, então vambora”.
Mas de todas as
coisas que precisamos repensar acerca do consumo, uma me parece urgente: o
reconhecimento de que o consumo constitui um sistema de classificação social.
Este modelo de consumo que hoje alimentamos contribui para que se naturalize
uma hierarquia entre diferenças. Hierarquia entre gêneros, etnias e classes
sociais. Mas, também, entre saberes, entre temporalidades, entre modos de estar
no mundo e organizar a reprodução material da vida.
Fórum – O que o
carro significa nesse contexto?
Luciane – Tem tudo
a ver, estamos falando da violência estrutural, cotidiana e que tem muito da
nossa aceitação. E aí entram as relações de trabalho. Falemos do combustível
que alimenta nossos carros – carros que associamos ao conforto. Um trabalhador,
no canavial, corta 12 toneladas diárias de cana. Ele anda quase nove
quilômetros para cortar essas toneladas, segundo uma pesquisa da Embrapa. Faz
cerca de 800 trajetos diários, dá 133 mil golpes de podão por dia. É uma
violência silenciosa de que não temos notícia. Ainda assim, queremos que
aumente o valor do etanol no mercado internacional porque significa que o
Brasil vai crescer. De que modelo de desenvolvimento estamos falando, afinal?
Fórum – E sobre os
impactos sociais e culturais por trás do nosso consumo?
Luciane – Vamos ao
caso dos megaeventos, tendo em vista o “consumo” da cidade. Veja o que se passa
no Rio de Janeiro. Bairros inteiros estão sendo afetados para facilitar o
tráfego entre o Galeão e a Barra. Em São Paulo são organizadas visitas a
Paraisópolis, que fica ao lado do Morumbi, por R$ 300. Você sai da Vila
Olímpia, por exemplo, e vai até Paraisópolis fazer um city tour. Os pobres
viram, simplesmente, objeto de consumo. De repente, torna-se in subir o
bondinho do Alemão ou ir aos restaurantes bacanas que agora estão dentro das
favelas. Usando um termo empregado por Boaventura de Sousa Santos, estamos
diante de uma relação de “apropriação e violência”. A favela tem sido
espetacularizada. Não estou dizendo que tudo o que esteja acontecendo em função
da Copa seja ruim, que as pessoas não estejam se reorganizando e criando
oportunidades, mas quando transformamos a favela noutra coisa, estabelecemos
com ela uma relação de violência.
Fórum – A questão
indígena é outro tema de sua pesquisa. Como encaixaria no contexto da
violência?
Luciane – Vou dar
alguns exemplos do que tem acontecido com os povos indígenas para mostrar a
situação de insegurança jurídica e fundiária. Inúmeros documentos – entre
projetos de lei, decretos etc – tratam de questões candentes sob uma perspetiva
claramente anti-indígena. A PEC 215 e a PEC 38 são bons exemplos. A PEC 215
propõe que seja do Congresso Nacional a responsabilidade pela demarcação das
terras indígenas e quilombolas (já a PEC 38 propõe que seja o Senado a
fazê-lo). Isto significa, todos sabemos, uma barreira política aos processos de
demarcação. A Portaria 303, por sua vez, em consonância com o Código Florestal,
separa os povos originários dos recursos que estão em suas terras. Ou seja,
restringe o usufruto dos bens e recursos por parte destas populações, ainda que
tais bens e recursos se encontrem em terras indígenas. Se o Código Florestal
abre o caminho ao retrocesso em relação aos direitos coletivos, a Portaria 303
pavimenta a estrada que confirma o grande latifúndio. Mas a questão não pára
aí: a partir da Portaria 303, as demarcações já estabelecidas podem ser
revistas e reconsideradas.
Outro exemplo é o
projeto de lei 1610/96, bem como seu texto substitutivo, que complementam o
cenário de retrocesso. Versam, ambos, sobre a exploração de recursos minerais
em terras indígenas – sempre, é claro, com a alegação do interesse nacional.
Segundo este Projeto de Lei, alcunhado de PL da Mineração, a consulta pública
passa a ser um ato mais simbólico do que deliberativo e não interfere na
continuidade do processo de exploração mineral.
Fórum – O que
fazer?
Luciane – Primeiro,
precisamos entender que dentro da diferença existem diferenças, para podermos
perceber a dignidade de forma mais ampla. Na luta das mulheres, por exemplo, é
comum acharmos que o movimento feminista é um só, que vai reunir todas as lutas
numa luta única. Há também violência quando as mulheres são tratadas como se
falassem em uníssono, como se seus mundos fossem de uma única cor ou matiz. Os
problemas das mulheres não são sempre os mesmos; tampouco elas têm uma essência
platônica a compartilhar. Cair nesta cilada epistemológica é desconsiderar que
os problemas vividos por estas mulheres podem ser ampliados diante de outras
questões vividas na própria carne, como, por exemplo, o racismo, a intolerância
religiosa, o preconceito com a opção sexual e as diferenciações de classe que
abatem ainda mais o corpo da mulher pobre. Já ouvi de uma mulher da periferia
de São Paulo dizendo: “Quero saber como é que vocês podem me apoiar no final de
semana, que é quando o bicho pega.” É uma pergunta interessante. As condições
de resposta de uma mulher de classe média à situação de violência doméstica não
são as mesmas de uma mulher que vive na periferia. Assim, não dá para, em nome
dos direitos humanos, acharmos que a luta é a mesma para todo mundo; não
necessariamente ela será.
Fórum – A senhora
diz também que precisamos repensar a paz.
Luciane – Sim,
fala-se muito na cultura de paz, mas acho importante pensarmos de que paz
estamos falando e como ela é possível. Evocar a paz implica, primeiro, não
esquecer a diferença dentro das diferenças e perceber que não é possível evocar
a paz, a dignidade, passando por cima de desigualdades e dívidas históricas.
Não estou dizendo que a paz não é possível, quero deixar claro. Contudo, é
importante ter em conta que esta paz branca que tudo dilui – inclusive a
história – é também violenta. A cultura de paz só poderá efetivamente acontecer
mediante efetivos processos de tradução intercultural e, portanto, de respeito
às diferenças. A tradução intercultural, nos termos propostos por Boaventura de
Sousa Santos, configura-se como um antídoto poderoso contra o esgarçamento do
tecido social, constituindo também uma forma preciosa de articulação política
das minorias silenciadas. Queremos a paz, sim, mas uma paz justa, que não seja
construída em cima do silenciamento e da diluição da diferença. F
Na foto: Morador de
rua em São Paulo: uma forma de violência não identificada pela sociedade em
geral (Valter Campanato / ABr)
Esta matéria faz
parte da edição 125 da revista Fórum. Compre aqui.