Rui Peralta, Luanda
O
mundo dos povos ou a luta pelo planeta Terra sem amos e sem fronteiras
I - Mantras e oráculos
Nos
últimos 20 anos, cerca de 30 mil pessoas morreram às portas da Europa. Em 2014
a cifra da morte refere cerca de 3 mil e 500 pessoas e no presente ano de 2015
("ano do desenvolvimento" segundo a UE) estimam-se entre 1700 e 2000
mortes até fins de Abril. De cimeira em cimeira os dirigentes europeus e
africanos inventaram a ilusão do "desenvolvimento económico" que
baseia-se no seguinte oráculo: "o desenvolvimento cobrirá as necessidades
de África". O "novo oráculo" ganhou forma na Conferência de
Rabat e de Trípoli, em 2006, foi revisto em Ugadugu e Paris (2008) e ê decorado
em todas as cimeiras euro-africanas (metrópoles-província?) realizadas até
2015, ano em que a UE debateu entre si (sem a presença indiferente dos
responsáveis africanos) as vagas migratórias africanas que se abatem nas suas
costas mediterrânicas e do Atlântico Sul.
O
assunto tornou-se urgente em Bruxelas e de forma febril iniciou-se um processo
de contratações e subcontratações, confina-se, projetam-se centros de detenção
e de retenção, arquipélagos concentracionários à imagem dos campos de
extermínio dos nazis (que hoje rebolam-se nas campas, rindo dos seus juízes e
questionando-se porque em vez de os enviarem para um tribunal em Nuremberga não
os colocaram a dar formação de arte e ciência do extermínio e do genocídio num
qualquer instituto de formação profissional, ou a realizar workshops de
formação de quadros) longe dos olhos das gentes, dos direitos, liberdades e
garantias. Enquanto Bruxelas reunia-se, consultando o oráculo, os responsáveis
africanos batiam com as cabecitas duras nas rochas, repetindo ferverosamente e
de forma metódica, por que razão o oráculo não lhes respondia, a eles crentes
sequiosos de fé, metodologicamente expressa nas palavras sagradas: "taxa
de crescimento". Cegos, surdos e mudos, de tanto baterem com a cabeça na
rocha, os responsáveis africanos viraram-se para Oriente (não para Meca que é
metodologia incorreta, mas para a "Ásia profunda") abandonando o
oráculo e passando a recitar o "mantra" do desenvolvimento "neo-Bandung".
Com
as suas mortes, no mar ou no deserto, os jovens africanos interpelam os seus
governos e as metrópoles do Ocidente e do Oriente, onde os governantes
africanos e as oligarquias económicas e burocráticas do continente passeiam a
sua exuberante e luxuosa submissão (que a prepotência fica em casa quando se
visita o patrão). Com as suas mortes no deserto e no Mediterrâneo, os jovens
africanos lançam um repto ao mundo, um grito amordaçado à ONU e aos Objectivos
do Milênio para o Desenvolvimento (que termina este ano. Que constará no
relatório final? Mais um oráculo? Um mantra? Uma pia baptismal? Ou uma grande
campanha de marketing a anunciar os novos objectivos do milénio?).
II - A Europa-Fortaleza e a África-Presidio
Para
demonstrar que está a fazer algo a Europa veste a camisa do avesso e ataca os
traficantes. É claro que estes têm de ser condenados, mas eles não são a causa
do problema, apenas uma das suas inúmeras consequências. Aliás este tipo de
raciocínio, próprio do polícia que anseia pela promoção, vem na sequência de
outro perigoso "palpite" que considerava os emigrantes africanos como
"terroristas" (em alguns países africanos da faixa Atlântica mais a
sul esta lengalenga pegou: os emigrantes africanos e do Médio-Oriente são todos
uma cambada de terroristas e agentes desestabilizadores, que roubam diamantes e
fazem buraquinhos nos "pipe-lines" e trazem consigo hábitos nocivos,
costumes pecaminosos e religiões estranhas e fanáticas, que adoram o seu Deus
em língua estrangeira. Desta forma sustenta-se uma imensa multidão de bufos
improdutivos, empregados num ineficiente e dispendioso sistema de segurança
integrada que passa o tempo a inventar cenários, todos de péssima prosa, pobre
de palavras e vazia de sentido, mas eficaz a cobrir interesses de rapina e
obscuras intenções).
A
intervenção do Papa e de outras autoridades religiosas cristãs e islâmicas fez
recuar o bando de comissionistas e lobistas que os monopólios da indústria da
defesa e da segurança (que vêm nas vagas migratórias uma excelente fonte de
receitas, assim como no terrorismo ou nos folhetos jornalísticos que relatam
casos de facadas nas velhinhas) recrutaram nos aparelhos de Estado da Europa e
nas instituições da UE. Perante o alerta dos religiosos e as multidões de seres
humanos desesperados, vindos de "exóticos lugares" (Eritreia, Mali,
Republica Centro-Africana, Libéria, Níger, Camarões, Guiné-Conacri, Gambia,
Sudão do Sul, Somália...) colocar o acento do problema nos traficantes é de uma
leviandade própria dos personagens das telenovelas impróprias para consumo, ou
de um policial barato da serie B, onde o policia bêbado desvenda o crime que
ele próprio cometeu quando estava sóbrio e prendeu o cúmplice.
Mais
que os emigrantes, os seus itinerários e as redes de tráfico de pessoas é a
natureza das economias europeias e africanas e das suas relações que devem ser
equacionadas. No banco dos réus devem comparecer os traficantes, como cúmplices
do crime, mas primeiro deve comparecer os "cabecilhas" do bando, os
autores morais e de facto do crime: o capitalismo e os seus instrumentos de
acumulação e de reprodução: o neocolonialismo e o imperialismo. É a
Fortaleza-Europa e a África-Presidio que devem ser julgados no tribunal dos
Homens, são os monopólios da indústria da segurança, mais os "experts"
que apenas olham para os "conceitos estratégicos e territoriais", para
as "muralhas e fronteiras", os desavergonhados que propõem a
"solução final" dos centros de detenção à maneira fascista,
espezinhando, simultaneamente, o direito internacional, a Declaração Universal
dos Direitos do Homem e a Carta das Nações Unidas. E depois, muito depois das
burocracias corruptoras e ao nível dos polícias e funcionários corruptos que
retêm a documentação dos emigrantes, exigindo o pagamento de
"tributos" e "taxas de entrada e de saída", é que estão os
traficantes. Quanto ao direito básico que enuncia "o direito de toda a
pessoa deixar qualquer país, incluindo o seu" é ignorado, espezinhado e
sistematicamente atirado para o cesto dos papéis...
Os
emigrantes africanos (tal como os seus congéneres latino-americanos e asiáticos)
sofrem na pele as "normas de segurança", a vigilância das fronteiras,
o FRONTEX, os dispositivos eletrónicos de segurança, a presença militar, as
feras, os transportes clandestinos sem quaisquer condições, os itinerários infindáveis,
as doenças e a indiferença dos seus governos e muitos encontram na morte o fim
dos seus tormentos, mas transportam o sonho de uma vida melhor, mais digna, que
ofereça algo que na sua terra foi executado à nascença: o futuro.
III - Os acordos homicidas
Em
2010 a 3° Cimeira Africa-UE realiza-se na Líbia e todos os participantes (cerca
de 80 Estados africanos e europeus) estabelecem acordo em torno de um
"plano de acção" a cumprir entre 2011 e 2013, que englobava a criação
de empregos, investimento, crescimento económico, agricultura e emigração. Os
acordos foram estabelecidos e o que aconteceu de seguida? A Líbia foi
desestabilizada, invadida pela NATO e destruturada, acabando entregue a bandos
armados. Milhares de trabalhadores da Africa subsaariana e do Magreb que
emigraram para a Líbia perdem os seus empregos, juntando-se aos milhares de
desempregados dos seus países de origem, dispostos a emigrarem a qualquer
preço.
A
luta contra a austeridade, pela igualdade, pela justiça económica e social são
consignas dos povos de todo o mundo, porque a austeridade, a precaridade e a
profunda desigualdade são males que atravessam a economia-mundo, o mundo das
fronteiras e dos amos, dos Senhores da Guerra e dos Estados, dos funcionários alfandegários
e dos capatazes, dos policias fardados e dos bufos à civil, com óculos escuros
e fato barato.
Na
Europa gregos e portugueses emigram em massa, em África as emigrações em massa
originadas na Africa subsaariana e no Magreb atingiram uma escala catastrófica,
na América Central e do Sul a caminhada para Norte prossegue, na Asia as vagas
migratórias provindas dos grandes nichos de 4° mundo que prevalecem no
continente asiático abatem-se sobre regiões onde a vida é mais digna e o
trabalho é possível. A grande maioria destas vagas migratórias não existiriam
se as políticas económicas gerassem riqueza para toda a sociedade. Mas essa é
uma realidade que as oligarquias não querem admitir.
Quando
em 2001 a agricultura africana foi lançada na estrutura convencional dos
mercados globais sem qualquer preparação prévia iniciou-se uma catástrofe de
grande amplitude para os camponeses, comunidades rurais e famílias africanas
dependentes da actividade agrícola. O domínio das transnacionais agroindustriais
e o agro-negócio geram milhões de desempregados no campo, sem qualquer hipótese
de serem absorvidos pela indústria ou serviços, mesmo que o crescimento económico
seja de dois dígitos. Para agravar a situação a instabilidade alastra no
continente. Nas regiões em conflito a insegurança impede a actividade económica.
Camponeses, pequenos e médios agricultores pastores, criadores de gado,
pescadores, artesãos e comerciantes ficam impossibilitados de trabalhar. Ora os
emigrantes provêm destes sectores, que são afectados pelos Acordos de
Cooperação Económica (APE) impostos (nuns casos) aos Estados africanos ou
cegamente aceites por estes (em muitos casos) e pelo Tratado Transatlântico de
Livre Comércio (TTIP).
O
derrube das barreiras alfandegárias e o Livre Comercio são bem-vindos a África,
mas as Boas Vindas apenas podem ser dadas por todos os africanos quando existir
uma igualdade de oportunidades e de facto entre os produtores africanos e os
seus congéneres ocidentais. Estes programas para serem benéficos para o
conjunto das debilitadas e dilaceradas economias africanas terão de ser
revistos e a sua execução a longo-prazo, de forma faseada, sob supervisão
cidadã, ou seja, sob a alçada da soberania popular, das instituições e
organizações cidadãs e não apenas sob o olhar dos Estados ou das agências
privadas.
IV - Os filhos de África
A
grande quantidade de homens, mulheres e crianças que se afogam nas águas mediterrânicas
e do Atlântico Sul ou que desaparecem nas areias do deserto é uma imagem pouco
divulgada e uma noticia raramente difundida e sempre de forma fugidia. A morte,
aos milhares, de pais, mães e filhos é uma realidade ocultada, porque
demonstrativa da violência e depredação do capitalismo. Cada emigrante engolido
pelo Mediterrâneo ou pelas areias do deserto é filho de África e o seu grito permanecerá
gravado na memória ancestral do continente-mãe.
A
mamã Africa è, também terra de mães, de viúvas e de órfãos. Mães que vêm os
seus filhos transformados em emigrantes "clandestinos",
narcotraficantes ou em "combatentes islâmicos" ao serviço dos bandos
fascistas islâmicos. São mães que choram a morte dos filhos ou sofrem pelo
destino daqueles que geraram nos seus ventres. Foi um grupo de mães e viúvas de
emigrantes engolidos pelo mar que reuniu-se em Thiaroye, Senegal, encabeçadas
pela indomável Yahy Bayam Diouf. Rumaram para Bamaco, Mali, onde reuniram-se
com mães e viúvas de emigrantes engolidos pelas águas mediterrânicas e em
conjunto regressaram ao Senegal, mães e viúvas africanas, do Mali e do
Senegal que rezaram, numa embarcação, pelos seus entes queridos, mortos nas
águas do mar e pelos sobreviventes deportados, os mortos-vivos que vegetam no
desemprego, já sem sonhos (quem disse que os Homens não perdem os sonhos? E já
viram um Homem sem sonhos, um Homem a quem extraíram os sonhos? Nada mais
horripilante que o olhar vazio de um Homem sem sonhos...).
E
África é como estas mães inquietas e pensantes, cujos filhos foram sacrificados
nos aromatizados altares dos mercados...
V - Da aldeia global ao presidio global
A
quem pertencem os recursos mineiros, energéticos, agrícolas, florestais,
pesqueiros e outros que a economia-mundo necessita? Aos filhos de África que
morrem às portas da Europa. Os pilares do crescimento europeu encontram-se nas
terras de origem dos emigrantes "clandestinos". As terras do Sahel e
do Magreb, onde repousam estas riquezas foram paulatinamente convertidas em
campos de batalha. Por isso todos somos perdedores. O Ocidente pensa mesmo que
defende os seus interesses manipulando e instrumentalizando o Conselho de
Segurança e violando acordos como fez com a Líbia? Pensa mesmo o Ocidente que
defende os interesses das suas empresas, levando a guerra aos pontos onde se
situam os pilares da sua riqueza? Julga o Ocidente defender a liberdade de
circulação quando cada vez existem mais e maiores zonas de risco, para onde não
podem deslocar-se? Somos todos perdedores e somos todos confinados a espaços
concentracionários. A aldeia global já não é mais aldeia...é um presidio.
E
como derrubar os muros do presidio? Através da convergência das lutas em África,
na Europa, na América e na Ásia, de forma a constituir uma rede global de
trincheiras firmes. E porquê? Porque não são apenas as embarcações que
transportam os emigrantes africanos que se afundam...é a dignidade inerente a
todos os homens e mulheres que constituem a humanidade que se afoga nas aguas
revoltas dos "mercados” da economia-mundo...é a sua condição humana que se
afunda nos leitos lamacentos do Capital...e porque é na continuidade da luta
que se adquire a certeza da vitoria!
(continua)