Rui Peralta, Luanda
I - No
ano 2000 os relatórios dos monopólios da segurança e da defesa (públicos e
privados) não mencionavam qualquer ameaça de "grupos islâmicos
transnacionais" ou de "terrorismo fundamentalista islâmico", no
continente africano, excepto na Somália (na época a designação era "milícias"
ou "senhores da guerra") e algumas movimentações a nível do
Estado-maior de grupos fundamentalistas no Sudão, para além de "alguma
actividade de baixa e media intensidade "no Egipto, Tunísia, Argélia,
Marrocos e Mauritânia. A Líbia era um "santuário" mas não do
"terrorismo fundamentalista". Kadhafi naquele ano de 2000 era
acusado, nuns relatórios de dar guarida ao "terrorismo residual
esquerdista", a "grupos separatistas", enquanto outros relatórios
o descreviam como uma espécie de polícia de giro que fazia as suas negociatas
no bairro, mas que mantinha os "fundamentalistas" na
"ordem" (ou seja nas cadeias, excepto os casos de alguns lideres
xiitas libaneses que visitaram Trípoli a convite de Kadhafi que desapareceram
da face da Terra).
Após
o 11 de Setembro, em 2001, os relatórios mudam de cenário e os USA iniciam as
primeiras acções de formação em contrainsurgência e contra-terrorismo em
território africano. Os problemas acumulam-se e surgem por todo o lado.
Insurgência islâmica, milícias religiosas de cariz duvidoso ou simplesmente
bandos armados aproveitaram a fragilidade dos Estados africanos, as vastas
fronteiras, a corrupção generalizada. Em 2008 os USA criam o AFRICOM, cujo
comando inicial instala-se em
Camp Lemonnier , no Djibuti. Os discursos oficiais
norte-americanos e dos parceiros africanos foram triunfalistas. Em pouco tempo
mudariam de tom. Hoje são, no mínimo, decepcionantes. O comandante do AFRICOM,
general David Rodriguez descreveu recentemente um cenário sombrio à Comissão de
Actividades Militares do Senado norte-americano. E foi num tom amargurado que
admitiu a possibilidade de intervenções militares directas e unilaterais dos
USA em Africa, perante a expressão assombrada dos senadores...
II - A
situação degrada-se no terreno. Os bandos fascistas islâmicos estendem a sua
presença e adquirem um elevado nível de operacionalidade. O Estado Islâmico
aumenta a sua actividade no Norte de África efectuando atentados com
sofisticados sistemas de explosivos e coordenando operações, acções de
recrutamento, financiamento e treino, com a al-Qaeda do Magreb, o Ansar-al-Dine
do Mali, a al-Shabab da Somália (que amplia o campo de operações para o Quénia,
Uganda, Djibuti e Etiópia), a al-Murabituri e o Boko-Haram. O número de
atentados bombistas no continente aumentou 40% em 2014 e as atenções centram-se
agora na Líbia (onde bandos armados controlam vastas áreas do território e o
Estado Islâmico aumenta a sua influencia em Trípoli, Derna, Bengasi e Sebha) e
na Nigéria (o Boko-Haram - que jurou, no mês passado, fidelidade ao Estado Islâmico
- expande-se para o Chade, Níger e Camarões e ameaça o funcionamento do
governo federal nigeriano no Norte do país, afectando a estabilidade e
paralisando os serviços públicos básicos).
Também
a Republica Centro Africana sofre na pele esta ameaça e o Congo-Brazzaville
corre o risco do seu território tornar-se uma plataforma dos grupos armados que
instalam-se nas suas fronteiras. Quanto à RDC as tensões nos Grandes Lagos
ameaçam a sua estabilidade interna podendo arrastar o país para um violento
turbilhão destruidor, que alterará o mapa da região.
Este
cenário revelador das encruzilhadas em que se encontra o continente merece a
qualificação de "catastrófico" e "apocalíptico" por parte
do responsável do AFRICOM no Grupo de Apoio Europa-Africa do SOCOM (Comando de
Operações Especiais dos USA), Matt Pascual. O problema é que as lágrimas de
crocodilo do senhor Pascual caem sobre as mulheres, mães, viúvas, crianças órfãs,
idosos, refugiados, que viram a eterna precariedade das suas vidas serem
transformadas num inferno avassalador...
III - Em
2014 o AFRICOM efectuou 674 actividades militares (ataques com drones, operações
diversas, exercícios, formação, instrução e acções de informação), das quais
595 em actividades de cooperação em matéria de segurança (instrução militar e
formação técnica, táctica e estratégica, a cargo da Guarda Nacional e da ACOTA
- Assistência e Cooperação para Operações de Contingência em África - tudo financiado
pelo Departamento de Estado dos USA, além da oferta de equipamento), 11 exercícios
conjuntos com os parceiros africanos (os exercícios mais importantes e com
maior envolvência de meios e equipamentos foram o African Lion, em Marrocos; o
Western Accord, no Senegal; o Central Accord, nos Camarões e o Southern Accord,
no Malawi. Quanto às operações realizadas em solo africano somam 68, sendo as
mais importantes a Juniper Micron e a Echo Casemate, ambas de apoio às missões
francesas no Mali e RCA, respectivamente; Observant Compass, na Africa Central
contra as bolsas residuais do Lord Resistance Army, do fundamentalista cristão
ugandês Joseph Kony e a United Assistance, na Àfrica Ocidental, missão de apoio
e suporte de segurança às equipas médicas durante a epidemia de Ébola. A estas
674 actividades deve-se adicionar os exercícios conjuntos com a NATO e forças
navais africanas, no âmbito da segurança marítima (o Obangame Express, no Golfo
da Guiné; o Saharan Express nas águas senegalesas e as 3 semanas do Phoenix
Express).
Estes
números indicam uma actividade crescente do AFRICOM (um crescimento de 300%
desde 2008, o ano da sua fundação). Em 2013 registaram-se 546 actividades
militares diversas (contra 172 em 2008), entre as quais 481 em matéria de segurança,
10 exercícios conjuntos e 55 operações.
Esta
intensa actividade e os resultados quase nulos registados no palco das
operações levaram a um acordo de aplicação entre os USA e o Djibuti, assinado
em Maio de 2014, que garante a permanência de forças militares norte-americanas
em solo africano até 2040. Este acordo permite ao AFRICOM construir uma
rede de vigilância que cobre todo o Norte de Africa e amplia as zonas
permanentes de actuação, bases e aeródromos ao Senegal, Mali, Burkina Faso, Níger,
Chade, RCA, Sudão do Sul, Uganda, Quénia e Etiópia. O objectivo é uma guerra
prolongada, assente em forças coligadas e centrada nas operações especiais,
conforme refere o Guia de Planificação de 2015, cujo mentor é o general de
divisão e um dos comandantes do AFRICOM, James Linder.
IV - Em
Damasak, uma cidade no Norte da Nigéria foram encontrados cerca de 400 corpos,
na sua maioria de mulheres e crianças. As autoridades governamentais acusam o
Boko Haram de ser responsável por este genocídio, mas esta não é uma opinião
unanime na população. Muitas activistas dos direitos das mulheres têm
denunciado os crimes perpetrados pelo Boko Haram e alertam para o aumento
exponencial das vítimas das forças policiais e governamentais, para além de,
nas áreas rurais do Norte do país surgirem "milícias anti-islâmicas"
que aterrorizam comunidades rurais, camponeses e pequenos-proprietários de
terras.
O
Norte da Nigéria é uma região economicamente atrasada, cuja população - maioritariamente
islâmica, com elevado analfabetismo (apenas 10% da população feminina sabe ler)
e muito pobre - vive aterrorizada pelo Boko Haram. Esta organização fascista islâmica
(camuflada no rótulo de "fundamentalismo islâmico") leva a efeito uma
campanha terrorista contra "os valores e a educação do Ocidente" (um discurso
que hoje está em voga e que não é exclusivo do mundo islâmico).
A
maioria dos nigerianos vive na pobreza, apesar do crescimento intenso das
"classes médias" (um crescimento artificial e sem sustentabilidade,
uma vez que a classe média nasceu endividada à banca) e de uma elevada
taxa crescimento do PIB. Sem duvida que um dos vários factores que
impedem a Nigéria de "arrancar" é o facto de despender 30% do
PIB com a defesa. As Forças Armadas Nigerianas custam cerca de 2,2 mil milhões
de USD, sem que existam programas de industrialização da defesa, ou de
investimento interno e externo no sector da defesa e da segurança.
Este
panorama da Nigéria é um exemplo das consequências de fazerem-se leituras
erradas de determinados fenómenos socioculturais e especificidades históricas
das sociedades (o Norte da Nigéria e as particularidades da sua oligarquia islâmica
são uma consequência da colonização britânica), ou de adiar problemas "ad
eternum". Os discursos superficiais acerca do “fundamentalismo islâmico”,
a própria leviandade do conceito, iludem a realidade. O Boko Haram, a al-Qaeda
e outros bandos, grupos e organizações são efectivamente fascistas, idênticas
aos bandos, grupos e organizações congéneres cristãs no Ocidente (sejam os
grupos racistas norte-americanos, ou os bandos oligárquicos latino-americanos,
ou a FN francesa, a extrema-direita parlamentar europeia e os bandos nazis e xenófobos
europeus), na Rússia e Eurásia, em Africa (o "cristão" LRA do Uganda
ou os fascistas zulus do Inkhata e os fascistas boers, na Africa do Sul - para
não falar nos tiques totalitários que surgem no ANC - ou o fascismo banto que
atravessa os conceitos decadentes e neocoloniais da negritude, autenticidade e
Africa Negra, ou a social-fascista Frente Patriótica do bando de Mugabe no
Zimbabwe) e na Ásia.
V - O
combate contra a pobreza, a luta pelo desenvolvimento, o aprofundamento da
democracia, a luta contra o fascismo e a integração africana apenas serão possíveis
de levar a bom termo com a construção de projectos soberanos, portadores de uma
Nova Cultura Politica que concretize os caminhos traçados pela luta de
libertação, removendo os desvios e as "picadas" concebidas pelas
oligarquias pós-coloniais para aprisionarem o continente africano aos seus interesses.
A
cidadania africana vê na consolidação do Estado Democrático de Direito um
instrumento decisivo para estas batalhas de longa duração que retirarão as suas
nações da situação ultraperiférica e que reposicionarão o continente na
Economia-mundo. Não é o AFRICOM ou outras estruturas similares que permitirão
resolver os problemas de defesa e segurança do continente, nem qualquer lógica
subordinada aos interesses dos monopólios globalizados público-privados, sejam
nacionalistas, socializantes ou pura e simplesmente submissas à nova ordem
neocolonial. É no reforço das instituições democráticas, da participação
cidadã, dos direitos, liberdades e garantias, na criação de mecanismos
equitativos no comércio livre, na livre circulação de pessoas, bens,
mercadorias e capitais, na criação de mercado africano livre e integrado, que o
ambiente necessário ao progresso e desenvolvimento se encontrará criado. É numa
ordem de Liberdade e de Justiça que o Futuro torna-se de todos e não no medo,
na paranoia e na angústia. É na tolerância, no governo da lei e na aceitação da
diferença, nas contradições e conflitos que representam as dinâmicas da
pluridimensionalidade africana que a segurança é assumida de forma eficaz.
É
pois, meus caros amigos e amigas, companheiros e companheiras, irmãos e irmãs,
camaradas, nosso dever de cidadãos africanos estarmos firmes na linha da frente
deste prolongado combate. Ou não é, África, a Mãe?
Tunes,
Dacar, Dar-es-Salam, Lusaca e Pretória, Junho de 2015
Bibliografia
Turse, N. Tomorrow's battlefield: US proxy wars and secret OPS in Africa Haymarket Books, 2015
Turse, N. Tomorrow's battlefield: US proxy wars and secret OPS in Africa Haymarket Books, 2015
New
York Times - 2014/12/31; 2015/04/07
Washington
Post - 2014/11/27
Artigos
de Nick Turse publicados em http://www.tomdispatch.com:
-
American proxy wars in Africa;
-
Neithor a base nor a camp;
-
AFRICOM: a gigantic small footprint;
-
Non stop OPS in Africa;
-
AFRICOM becomes a war fighting combatant command;
-
American success and the rise of West Africam piracy;
AFRICOM
commander wants full counterinsurgency plan - http://www.defenseone.com/threats/2015/01
American's secret: In Libia war US spent 1 billion on covert OPS helping NATO – http://www.thedailybeast.com 2011/08/30
American's secret: In Libia war US spent 1 billion on covert OPS helping NATO – http://www.thedailybeast.com 2011/08/30
The
war is boring: the Lord's Resistance Army is collapsing - https://medium.com
AFRICOM
annual exercise schedule continues with "Saharan Express" - https://www.codebook.wordpress.com;
2014/03/08
Jihadist
insurgency on Nigeria turning regional conflict - http://www.economist.com
Entrevista a Hakima Abbas, activista nigeriana dos direitos das mulheres e directora de programas de assistencia da Association for Women's Rights in Development (AWRD). Ver: Nigerian massacre evidence grows - http://www.democracynow.org 2015/01/16
Entrevista a Hakima Abbas, activista nigeriana dos direitos das mulheres e directora de programas de assistencia da Association for Women's Rights in Development (AWRD). Ver: Nigerian massacre evidence grows - http://www.democracynow.org 2015/01/16
http://www.reuters.com -
2015/04/02; 2015/02/09
http://www.rebelion.org
http://www.africom.mil
http://www.army.mil
http://www.navy.mil
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http://www.strategicstudiesinstitute.army.mil
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