domingo, 1 de setembro de 2013

Angola: FANTASMA DE CABINDA ATERRORIZA O REGIME

 


Orlando Castro – Folha 8 – Edição 1157 – 31 de agosto de 2013
 
Há muitos anos que o Governo garante a pés juntos que em Cabinda nada de anormal se passa. Se assim é, qual serão a razão de, mais uma vez, o comandante da Região Militar de Cabinda, tenente-general Eugénio de Figueiredo, ter sentido necessidade de reiterar “o apoio inabalável” das tropas ao comandante-em-chefe das Forças Armadas Angolanas (FAA), José Eduardo dos Santos, presidente da República?
 
Não deixa, aliás, de ser curioso ver as peculiaridades da democracia, embora imposta, que reina no nosso país. Isto porque Eugénio de Figueiredo falava durante a cerimónia que marcou o início das jornadas alusivas ao 71º aniversário do Chefe de Estado, que se assinala dia 28 de Agosto. Se a moda pega… “Estamos sempre prontos para dar o nosso melhor, com vista a fortalecer a coesão, disciplina, unidade no seio do nosso colectivo militar e igualmente no melhoramento do nosso dia-a-dia”, disse o tenente-general Eugénio de Figueiredo, enaltecendo a satisfação pelo facto de o Ministério da Defesa ter escolhido Cabinda para acolher o acto que marca o início das jornadas comemorativas do aniversário do Comandante-em-Chefe.
 
Não ficaria mal que, doravante, os militares também comemorassem os dias dos seus diferentes casamentos, a começar com o de Tatiana Kukanova, do nascimento dos filhos, da tomada de posse, da formatura, da adesão ao MPLA, do monólogo feito entrevista à SIC, etc. do comandante-em-chefe das FAA.
 
“Esta jornada será não só uma reflexão, mas o momento de um olhar para os grandes momentos e desafios até hoje trilhados pelo nosso grande arquitecto da Paz”, prosseguiu o comandante da Região Militar de Cabinda, citado pelo órgão oficial do regime. O tenente-general Eugénio de Figueiredo não se esqueceu, como mandam as regras de qualquer democracia avançada do tipo Coreia do Norte, de exaltar a figura do Chefe de Estado, citando frases célebres de Eduardo dos Santos que, ao que tudo indica, vão fazer parte do curriculum universitários de muitas outras democracias, a começar pela do seu amigo Robert Mugabe.
 
“Vamos fazer de Angola uma boa terra para viver”, “um canteiro de obras”, “trabalhar juntos para o desenvolvimento” e “todos somos necessários para erguer a nova Angola, moderna, próspera e democrática”, recordou comovido (há quem tenha descortinado uma lágrima no canto do olho) Eugénio de Figueiredo, dizendo que estas frases “catapultam o povo angolano rumo ao progresso”. O Memorando de Entendimento para a Paz e Reconciliação em Cabinda foi assinado no dia 1 de Agosto de 2006, no Salão Nobre da Administração municipal do Namibe, na presença, na altura, do Presidente da República em exercício, Roberto Victor de Almeida.
 
O documento, rubricado pelo ministro da Administração do Território, Virgílio de Fontes Pereira, pelo Governo, e pelo suposto líder do Fórum Cabindês para o Diálogo (FCD), António Bento Bembe, mais tarde ministro do MPLA, previa, entre outras, a atribuição de um estatuto especial para Cabinda, na base do respeito pela Lei Constitucional e demais legislação em vigor na República de Angola, como Nação dita una e indivisível.
 
No seu discurso, Virgílio Fontes Pereira disse que o Governo de Angola sempre assumiu um posicionamento claro em relação ao conflito de Cabinda. Assegurou – à revelia da população local e do Direito Internacional – que Cabinda é parte integrante de Angola, pelo que a sua situação devia passar pelo respeito dos pressupostos legais vigentes no país. Por sua vez, Bento Bembe assegurou que a sua organização jamais iria aceitar qualquer comportamento susceptível de fazer regressar o povo de Cabinda ao clima de inquietação e ausência da paz. Roberto de Almeida, que representou o Chefe de Estado, José Eduardo dos Santos, vincou que, “de facto, desde Abril de 2002que apenas na província de Cabinda continuava a existir um conflito armado, superado pelo patriotismo, bom senso e a capacidade de diálogo de todas as partes envolvidas”. Referiu também, como mandam as regras da democracia do MPLA, ser justo que “neste momento solene se preste a devida homenagem à clarividência do Presidente da República, em primeiro lugar, mas também à todos os que souberam colocar os superiores interesses do país acima de eventuais contingências de natureza geográfica, histórica e cultural”.
 
”Foi, aliás, o reconhecimento, pelo poder central, da sua especificidade que levou à aceitação de um estatuto especial para a província de Cabinda, que permitirá aos seus futuros responsáveis gerir da melhor maneira, no interesse das suas populações e do povo angolano em geral, os seus imensos recursos materiais e humanos”, disse então Roberto de Almeida. No mesmo dia, o Bureau Político do MPLA saudou a assinatura do Memorando de Entendimento para a Paz e Reconciliação e todos os intervenientes desse processo, com destaque (mal fora se o não fizesse) para o Presidente da República, José Eduardo dos Santos.
 
“Conquistada a paz, que tantos sacrifícios custou,é chegado o momento de todos darmos as mãos e sem olhar as diferenças de qualquer tipo rumarmos para o progresso, reconstruindo o país e reforçando os alicerces da sociedade democrática e moderna que almejamos”, referia o comunicado. O Bureau Político reiterou também o seu firme propósito de se manter fiel aos ideais do povo angolano (pelo que se vê hoje só é povo quem for do MPLA) “e tudo fazer para a construção da pátria una e indivisível, onde cada angolano se reveja como parte integrante e imprescindível, independentemente da sua opção política, credo religioso, raça, local de nascimento ou qualquer outra diferença”.
 
No dia 10 de Agosto, a Assembleia Nacional autorizou o Presidente da República, na qualidade de mais alto magistrado da Nação, a fazer a paz em Cabinda, nos termos do respectivo Memorando de Entendimento. Numa resolução aprovada por 129 votos a favor, nenhum contra e sem abstenções, o Parlamento considerou que a autorização decorreu da necessidade premente de obtenção da paz em Cabinda, expressa e sentida diariamente pelas populações de Angola, em geral, e do enclave, em particular. A Assembleia Nacional aprovou igualmente o Memorando de Entendimento para a Paz e Reconciliação em Cabinda, conferindo deste modo dignidade legal ao importante documento, que previa um conjunto de acções a serem executadas, para a efectivação do fim do conflito. No mesmo dia, foi igualmente aprovada a Lei de Amnistia para a paz e reconciliação em Cabinda, no quadro do Memorando de Entendimento. A proposta de Lei, que foi depois promulgada pelo Presidente da República, deveria beneficiar todos os crimes militares cometidos igualmente no quadro do conflito, até esta data. O parlamento aprovou também uma resolução que autorizava a aprovação de um Estatuto Especial para Cabinda, no quadro do Memorando de Entendimento, na sequência do reconhecimento, pelo Governo, de especificidades histórico-geográfica e culturais da província. O documento estabelecia as bases gerais do modo de organização, competências, funcionamento e poder regulamentar da Administração do Estado em Cabinda, no âmbito da sua integração na divisão político-administrativa do país e respeito pela Lei Constitucional e demais legislação.
 
Um ano depois da assinatura, Raul Danda, então porta-voz da Associação Cívica de Cabinda Mpalabanda, entretanto ilegalizada, desmentiu que existisse paz no enclave e alertou para o facto de estar em curso “uma perseguição às forças da FLEC” levada a cabo pelas FAA, ajudadas por elementos da FLEC-Renovada (FLEC-R) de Bento Bembe. Bento Bembe desmentia a continuação do conflito militar, garantindo que “as pessoas circulam por todo o lado na província”. “A situação está calma. Não há guerra em Cabinda”, afirmava. Raul Danda tinha opinião divergente: “O Memorando de Entendimento tem uma adesão fraquíssima por parte da população. Este memorando nunca conseguirá conquistar o coração dos cabindas”. N’Zita Tiago era peremptório: “não só há guerra em Cabinda, como esta vai continuar”, e perguntava: “Qual é o povo que hoje aceita ser escravo?”. E respondia: “A situação está pior do que quando estavam cá os portugueses. Os angolanos continuam a matar os cabindas”.
 
Neste contexto, também “saudando” o aniversário do Presidente de Angola, os cabindas apenas dizem que… “a luta continua.”
 
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UNITA denuncia actos de corrupção política em Cabinda
 
“Fontes bem informadas em Cabinda revelaram que o governo de Aldina Da Lomba envolveu-se em actos de corrupção política no último final de semana, para impedir a participação dos cidadãos de Cabinda em actividades convocadas pela UNITA, por ocasião da visita do Presidente Isaias Samakuva ao enclave rico em petróleo. As fontes fazem saber que o executivo provincial gastou 12 milhões de Kwanzas para compra de cartões de saldo oferecidos às pessoas e outros 60 milhões de kwanzas gastos em aliciamentos de cidadãos que se dirigiam ao comício da UNITA em Cabinda.
 
Os cidadãos que denunciaram a prática indecorosa revelaram ainda que o governo provincial gastou outros avultados valores em aluguer de táxi para o evento do MPLA, bem como na promoção da corrida de motocrosse e outras modalidades desportivas e de entretenimento com fim único de atrair pessoas. Como sempre em eventos que o MPLA promove para reter pessoas principalmente jovens, nunca falta medida alcoólica e desta vez em Cabinda, de acordo com as fontes que vimos citando, custou 20 kwanzas cada. Comentando sobre esses factos relatados por cidadãos de Cabinda a denunciar uso indevido de dinheiros públicos, um observador sugeriu que a UNITA e outras organizações que se têm posicionado contra a corrupção em Angola deviam intentar uma acção judicial contra o Executivo de Albina Da Lomba.”
 

Angola: VIOLÊNCIA CONTRA AS CRIANÇAS LEVA À ABERTURA DE INQUÉRITO

 


Domingos Mucuta, Lubango – Jornal de Angola
 
Conhecer os índices de violência contra a criança na Huíla é o principal objectivo do inquérito do Instituto Nacional da Criança que se realiza a partir da primeira quinzena de Setembro, anunciou o seu responsável.
 
Abel Chico, que falava na cerimónia de felicitações das crianças ao Presidente José Eduardo dos Santos pelo seu 71º aniversário, disse que o inquérito é realizado em parceria com o Fundo das Nações Unidas para Infância e com a direcção provincial da Administração Publica, Trabalho e Segurança Social.

O inquérito, afirmou, vai fornecer dados concretos sobre o grau de violência contra a criança nas famílias e permitir a definição de um plano de intervenção eficaz no combate a todas as práticas de agressões e de exploração do trabalho infantil.

O inquérito é realizado nos bairros, fazendas e mercado informais, empresas e centros comerciais do Lubango, Matala, Caconda e Quilengues, A seca, referiu, provocou o êxodo rural de crianças e adolescentes para as cidades, sobretudo para o Lubango, onde procuram melhores condições de vida.

Abel Chico lamentou que isso seja aproveitado por muitos adultos para que submetem as crianças a trabalhos impróprios para as idades que têm. O director província do INAC disse que no primeiro trimestre deste ano mais de uma dúzia de adultos na Huíla foi presente a tribunal por violência contra crianças.

ANGOLANOS REPATRIADOS PEDEM SOCORRO

 

Isidoro Samutula – Jornal de Angola
 
Angolanos que regressaram em Julho deste ano à Lunda-Norte provenientes da República Democrática de Congo, onde viviam na condição de refugiados, precisam de apoio para melhorarem as condições de vida
 
O coordenador do grupo, Gico-kwa Nzinga, disse que chegaram a Angola em Julho através da fronteira de Txissanda, mas ainda vivem em condições precárias. “Estamos a precisar de apoios, vivemos sem as mínimas condições, falta-nos tudo”, lamentou.

O grupo composto por 26 crianças, 12 homens e nove mulheres, vive numa casa com cinco compartimentos, onde, no passado, funcionou um posto de saúde e apresenta um estado de degradação avançado, o que coloca em risco as suas vidas, sobretudo com o inicio da época da chuva.

“Estávamos todos ansiosos para regressar ao nosso país, mas a situação está difícil”, disse Gicokwa Nzinga, sublinhando que desde que os refugiados chegaram, a 3 de Julho, apenas receberam colchões e panelas da direcção dos Assuntos Sociais.

Gicokwa Nzinga disse, igualmente, que para se alimentarem, os homens trabalham nas lavras dos camponeses em troca de comida. Disse que as crianças já apresentam níveis de desnutrição elevada e precisam de assistência médica.

A Cruz Vermelha de Angola doou ao grupo bens alimentares como fuba de milho, sal, massa alimentar, massa de tomate, óleo alimentar, sabão e roupa usada.

O secretário provincial da Cruz Vermelha de Angola na Lunda-Norte, Ilídio Chissolukombe, disse que o grupo apresenta uma situação de “alta vulnerabilidade”.

Considerou a situação preocupante e pediu às organizações filantrópicas nacionais e internacionais para intervirem, de forma a minimizar as condições de vida do grupo de angolanos.

Ilídio Chissolukombe apelou às Direcções Provinciais de Saúde, Assistência e Reinserção Social, Protecção Civil e Justiça para intervirem de forma a inverter o actual quadro de vulnerabilidade destes cidadãos.

As crianças em idade escolar estão fora do sistema normal de ensino e aprendizagem por falta de identidade angolana.

O chefe do departamento provincial da saúde pública reconheceu que as crianças apresentam níveis de desnutrição preocupantes e garantiu que vai prestar mais atenção à assistência médica e medicamentosa. Omar Katumba alertou para a necessidade de uma intervenção urgente, para melhorar as condições do grupo de angolanos, recentemente regressados ao país.

Leia mais em Jornal de Angola
 

Moçambique: Brigadeiro da Renamo detido por incitamento à violência…

 


… "apenas cumpriu ordens do partido"
 
Emanuel Pereira e Manuel Matola, da agência Lusa
 
Maputo, 01 set (Lusa) - Jerónimo Malagueta, o porta-voz da "declaração de guerra" da Renamo, detido há mais de dois meses por incitamento à violência, diz que foi um "instrumento" do seu partido, sem "capacidade de censurar" o seu superior hierárquico.
 
"Disseram-me: ´Leia esse papel e apresente`. Não tinha forma de negar, tinha que ler o documento", disse, em entrevista exclusiva à agência Lusa, Jerónimo Malagueta, detido na cadeia de máxima segurança da Machava, conhecida por B.O., nos arredores da capital moçambicana.
 
Na sexta-feira, jornalistas da agência Lusa visitaram Jerónimo Malagueta na cadeia, tendo-o entrevistado no gabinete do diretor da B.O., José Machado, na presença deste e sem permissão para recolha de imagens.
 
Em junho, o brigadeiro da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) transformou-se no rosto público das ameaças do maior partido da oposição moçambicana, ao anunciar, numa conferência de imprensa, em Maputo, que a circulação de pessoas e bens seria interditada na região centro de Moçambique.
 
No dia seguinte, 21 de junho, ataques a veículos que circulavam na Estrada Nacional 1, entre o rio Save e Muxúnguè, na província central de Sofala, que provocaram pelo menos dois mortos, viriam a materializar a declaração da Renamo, e, mais tarde, o líder do partido, Afonso Dhlakama, reconheceu a autoria dos atentados.
 
No mesmo dia dos ataques, Jerónimo Malagueta seria detido, em Maputo, pela Polícia de Investigação Criminal (PIC), acusado de homicídio, destruição de bens e incitamento à violência, tendo um tribunal judicial decretado a sua prisão preventiva apenas pela última imputação.
 
"O juiz perguntou-me sobre os pronunciamentos que eu tinha feito, e eu disse que o pronunciamento não era meu: simplesmente, servi de instrumento para dar a posição do partido, porque eu respondia na altura como chefe do Departamento da Informação", disse Malagueta à Lusa.
 
"Fiz o que o meu partido me mandou. Nunca pensei que as consequências recairiam sobre mim", reforçou.
 
Desde então, o influente comandante da antiga guerrilha da Renamo está detido na prisão de alta segurança da Machava, em regime de isolamento no que se refere ao contacto com outros reclusos, mas, garante, com direito a visitas quinzenais, alimentação fornecida pela sua família, "televisão, rádio e jornal".
 
Na sua última edição, um semanário moçambicano noticiou alegadas reuniões entre Malagueta e outros reclusos, que o brigadeiro desmentiu na entrevista à Lusa, tendo José Machado, diretor da penitenciária, confirmado que tal seria impossível, dado o isolamento a que o detido está sujeito.
 
Sem "ter ideia do que vai acontecer", Jerónimo Malagueta mostra-se inconformado com a sua prisão, que considera uma "injustiça", dado que serviu apenas de "altifalante" ao seu partido, que, "até agora", não o "desamparou".
 
Emocionado, disse ainda que o caminho da felicidade e da "esperança é sair da cadeia e ir ao lado dos filhos".
 
MMT // MLL
 

AS FERIDAS ABERTAS PELO PROCESSO DE REEDUCAÇÃO EM MOÇAMBIQUE

 

Deutsche Welle
 
Entre 1974 e o início da década de 1980, milhares de pessoas – entre elas prostitutas, dissidentes políticos e Testemunhas de Jeová – foram forçadas a ir para campos de reeducação. A maior parte não voltou.
 
Os primeiros anos da história de Moçambique independente foram um período conturbado. Ainda antes da independência de Moçambique (1975), o governo marxista da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) sentia a necessidade de eliminar os comportamentos e costumes associados ao colonialismo português e ao sistema capitalista, criar uma nova mentalidade e uma sociedade socialista.

Pelo que ainda em 1974, Armando Guebuza, atual chefe de Estado e na época ministro da Administração Interna do governo de transição, anunciou a criação de campos ou centros de reeducação. Este tipo de programa foi característica de outros regimes totalitários socialistas, como o da antiga União Soviética ou da China, por exemplo.
 
O plano inicial era reeducar, nas zonas rurais, as prostitutas das grandes cidades. Na época, o ministro Guebuza estimou que existiam 75 mil prostitutas só na capital (embora o número contemple, presumivelmente, mulheres que viviam sozinhas e mães solteiras), como reporta um artigo do jornal português "A Capital" de 1974.
 
O alvo das rusgas alargou-se depressa. Além de prostitutas, milhares de outras pessoas como dissidentes políticos, suspeitos de ligação ao poder colonial português, alcoólicos, autoridades tradicionais (como régulos e curandeiros) e Testemunhas de Jeová (um grupo cristão que recusa, entre outros, o serviço militar obrigatório) foram apanhados nas ruas das principais cidades de Moçambique, em particular em Maputo, Beira e Inhambane, segundo relatos em jornais internacionais.

Cerca de 10 mil reeducandos em 1980

Os detidos eram, normalmente, encaminhados para os postos da polícia e, sem qualquer comunicação à família e sem decisão de um tribunal, eram transportados para centros de reeducação, sobretudo no norte do país. Era como um castigo.
 
Através do trabalho forçado na agricultura, ou machamba, como habitualmente se diz em Moçambique, as pessoas deveriam ser reeducadas e, nesse processo, aprender os princípios do marxismo-leninismo.

Apesar de não haver dados oficiais, estima-se que, em 1980, cerca de 10 mil pessoas estariam concentrados em 12 centros de reeducação. O número viria a crescer nos anos seguintes - segundo estudos do historiador e antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, da Universidade Estadual de Campinas, no Brasil.

Em novembro de 1975 foi anunciada a detenção de três mil pessoas em rusgas efetuadas nas cinco principais cidades do país, segundo o jornal tanzaniano Daily News. E em 1982 foi anunciada a suspensão de mais de 500 funcionários públicos e a necessidade de enviá-los para a reeducação.

O mais terrível

Alguns dos centros de reeducação ocuparam as instalações de antigas bases militares. Estavam em locais remotos, distantes das comunidades, de difícil acesso. Conta-se que os fugitivos, quando não eram apanhados pelos guardas, acabavam por ser denunciados pelos camponeses da região ou devorados por feras.

A maior parte dos centros de reeducação localizava-se na província noroeste do Niassa, a maior e menos habitada do país.
 
O centro de M’telela, no Niassa, para onde foram enviados vários inimigos políticos da FRELIMO, é considerado o mais terrível. Segundo o livro “Uria Simango - Um homem, uma causa” de Barnabé Lucas Ncomo, dos 1.800 prisioneiros que lá entraram, desde 1975, menos de 100 saíram com vida, até 1983. Em M’telela ou nas imediações terão morrido, por exemplo, Uria Simango e Joana Simeão, personalidades ligados à fundação da FRELIMO, que viriam a ser acusadas de traição.
 
“Lavar a cabeça” de ideias colonialistas

Natural da Beira, Félix Bingala, hoje com 57 anos, veio para a província por força da reeducação. Conta que foi integrado no programa, em 1975, depois da visita à cidade da Beira do então ministro da Administração Interna, Armando Guebuza. O ministro acusou muitos jovens de serem defensores do colonialismo português.
 
Na altura com 19 anos, Félix Bingala trabalhava numa loja da Beira quando foi apanhado numa rusga: “carregaram-me. Entrei no machimbombo, fui à 5ª esquadra. Dali mandara-me para o Grande Hotel. Logo de manhã, apareceram muitos machimbombos, carros, e carregaram-me para Sakuze, na Gorongosa. Atravessei o rio Sakuze. Fomos para o mato. Disseram-nos: aqui têm de construir cidade, trazer as vossas mulheres para aqui, para tirar as ideias do tempo colonial, para nos ‘lavar a cabeça’. E ficámos. Era muita gente, toda a raça estava acumulada ali: moçambicana, mista, portuguesa, havia uma mistura de pessoas em Sakuze”, recorda.

Desde esse momento, há 38 anos atrás, Félix Bingala rompeu irremediavelmente ligação com o passado: “desde que estou aqui não tenho possibilidade de contactar com a família. A minha família até pode dizer: ele já morreu; e eu ainda estou vivo”, admite.
 
RENAMO recrutou homens da reeducação

O centro de reeducação de Sakuze, para onde Félix foi enviado, em 1975, localizava-se na Serra da Gorongosa, na província central de Sofala. Durante a guerra civil (entre 1976 e 1992), a região foi um bastião da RENAMO, a Resistência Nacional Moçambicana.
 
Foi lá onde a o principal partido da oposição começou a recrutar homens para as suas fileiras, retirando-os do domínio da FRELIMO. “A RENAMO estava a aproveitar estes homens, que já estavam preparados” militarmente, diz Félix Bingala que nunca foi apanhado nas investidas.

Para escapar às rusgas da RENAMO, a FRELIMO transferiu os reeducandos. Depois de Sakuze, Félix Bingala foi para outro centro, em Panda, na província sul de Inhambane, onde, todavia, a RENAMO conseguiu recrutar mais homens. Pelo que em 1978, Félix foi novamente transferido para Majancaze, província de Gaza, onde, conta, também andaram homens da RENAMO.

Um ano mais tarde, em 1979, Félix Bingala foi encaminhado finalmente para o centro de reeducação de Msawize, no mato denso do distrito de Sanga, na província do Niassa.
 
Obedecer para sobreviver na reeducação

Olhando para trás, Félix recorda com amargura os centros de reeducação: “muitos moçambicanos perderam a vida, ao serem comidos por leões, ao fugirem”.
 
Quanto ao quotidiano, o ex-reeducando lembra: “de dia é trabalho, pegar a enxada para a machamba, ir à pesca, fazer cestas (quem soubesse), comida para a gente comer. Mas a comida não chegava para tudo e vinha da província para lá. Houve dificuldades mesmo. Se alguém saísse um pouco, a população iria amarrar. Nós éramos chamados presos, éramos amarrados, bem esticados. Tinha que se cortar cabelo “assim”, usar saco, para se saber quem é fugitivo. Até havia uma cova grande. Se você praticou alguma coisa, você desce com a escada até lá, tira a escada, fica ali, “caga ali, mija”, de manhã tira, comida vem, recebe e come. Essa era a punição”.

André Ernesto Embalato, natural de Gaza, passou também por centros de reeducação. Trabalhava numa pastelaria, em Maputo, quando em 1975 foi apanhado pela polícia sem documentos de identificação. Esteve igualmente em Sakuze antes de ser transferido até ao Niassa.

“A vida é de ser mandado, de ser batido de qualquer maneira. Quem não obedecia à ordem era batido. Quando tocava o apito, devia-se correr, se fosse quando se estivesse a comer devia-se deixar a comida e receber ordem. Se não receber ordem tem porrada, acontecia assim”, diz André Ernesto Embalato.
 
Na reeducação as pessoas regeneravam-se ou perdiam a vida?

O centro de Msawize durou pouco tempo mais desde que Feliz Bingala lá chegou, em 1979. Por ordem do governo, começou a trabalhar na empresa agrícola de Unango, no mesmo distrito de Sanga. A empresa estatal recebeu forte apoio da Alemanha Oriental comunista. Depois entrou em falência e Félix Bingala começou a trabalhar na horta, vendeu os seus produtos até conseguir dinheiro para pagar a viagem para Lichinga, a capital provincial do Niassa. Em 1984 encontrou apoio na organização Caritas, ligada à Igreja Católica, onde trabalha até hoje como guarda.
 
Entretanto, o programa de reeducação tinha terminado. Face à pressão da opinião pública internacional, o Presidente Samora Machel ordenou inquéritos confidenciais sobre as condições de vida nos campos, em finais de 1981, que acabariam por conduzir à suspensão do “processo reeducativo”.

Na época, Joaquim Chissano ocupava a pasta do Ministério dos Negócios Estrangeiros e viria a suceder na Presidência da República, após a morte de Samora Machel, num acidente de avião em 1986.

Chissano elogia ainda o processo reeducativo, como disse numa entrevista, em 2012 , à DW África: “foi pena que nós não [continuássemos] a ter campos de reeducação. Porque não eram campos de tortura, eram realmente de reeducação. A pessoa regenerava-se. Nós criámos campos para pessoas criminosas, pessoas que tinham roubado ou até tinham assassinado. E eram reabilitadas. Era um lugar onde as pessoas faziam a sua agricultura, tinham o seu rendimento, refaziam a sua vida, tinham alfabetização, aprendiam ofícios”.
 
"Ainda bem que terminou"
 
Contudo, opinião diferente tem tanto quem passou pelos centros de reeducação como quem acompanhou o fim do programa do governo.

Uma ativista moçambicana, que pediu o anonimato, viveu de perto, no Niassa, o fim do processo reeducativo assim como do programa que se seguiu, a Operação Produção (de trabalhos forçados).

Segundo a ativista“ falar abertamente nesse assunto é um pouco difícil, porque é considerada uma questão política e também foi um projeto menos sucedido que trouxe a perda de muitos cidadãos. (…) Houve feridas abertas, famílias separadas, pais e filhos, muitos perderam a vida. Não foi bem sucedido esse plano. Ainda bem que terminou, porque hoje em dia não vem ninguém para o Niassa para ser reeducado”.
 
Na foto: "Formar o homem novo" foi o lema do processo de reeducação (mural em Lichinga)
 
Autoria: Glória Sousa – Edição: Johannes Beck
 
 

São Tomé e Príncipe: PAÍSES LUSÓFONOS UNIDOS EM PEÇA DE TEATRO

 

Deutsche Welle
 
13 atores, 6 países da CPLP, uma língua comum. "As Orações de Mansata", uma peça de teatro da associação "Cena Lusófona", tem estreia marcada para 17 de outubro, em Portugal.
 
“As Orações de Mansata”, do guineense Abdulai Sila, foi a peça escolhida pela Cena Lusófona para o espetáculo central do P-STAGE. Com direção de António Augusto Barros, o projeto implementado pela associação Cena Lusófona está a realizar neste momento ensaios em São Tomé e Príncipe com um elenco composto por 13 atores da CPLP.

"Isto é tudo uma novidade", começa por dizer Solange Sá, que interpreta Djuko, uma das personagens de "As Orações de Mansata". "Primeiro, junto-me com imensa gente de vários países com quem eu nunca trabalhei, depois vimos para São Tomé, onde eu nunca tinha estado", afirma.
 
"Tem sido muito bom, tenho aprendido bastante", conta a atriz, portuguesa, que é uma entre os 13 atores de seis países lusófonos escolhidos pela associação portuguesa para intercâmbio cultural Cena Lusófona para dar corpo e voz à primeira peça teatral escrita pelo guineense Abdulai Sila, sob a direção de António Augusto Barros.
 
Da Guiné-Bissau para o mundo

"Nós achamos simbólico, ao ter esta oportunidade de reunir actores dos vários países, debruçarmo-nos sobre uma peça que é a primeira peça guineense", explica António Augusto Barros, adiantanto ainda que a peça "tem o simbolismo de abordar um tema político e social que é a própria situação da Guiné-Bissau, mas, ao abordá-la, fazê-lo de uma forma em que é possível uma interpretação mais vasta, uma vez que a situação é muito simular a outras que acontecem em África e noutras partes do mundo".

O elenco partilha o português como língua oficial. Mas, entre Angola, Moçambique, Brasil, Portugal, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau, o português ganha várias tonalidades.
 
"As pessoas têm sotaques tão variados que isto é uma sinfonia, todos os dias", diz Solange Sá. E, por isso, explica António Augusto Barros, é preciso "encontrar uma base comum, que seja perceptível em todos os outros países. E isso implica um trabalho técnico especializado, para que isto possa ser entendido por todos". "Mas, ao mesmo tempo, não queremos perder toda essa riqueza e diversidade que são as sonoridades várias do português", ressalva.
 
Uma língua comum para vários países

Durante um mês, o elenco estive reunido em São Tomé, onde tentou criar uma linguagem comum para um grupo tão diverso.

"Estivemos a trabalhar não apenas o texto - os seus significados, toda a sua mecânica -, mas também o trabalho físico do actor, que é fundamental", afirma o diretor. "Trabalhámos num regime muito intensivo, de 6 horas por dia, no mínimo, um regime muito profissional", frisa.

O grupo termina a sua primeira fase de ensaios em São Tomé e Segue em direção a Portugal para mais um mês e meio de ensaios antes da estreia prevista para 17 de Outubro, no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra. Depois, “As orações de Mansata” seguirão em digressão por várias cidades portuguesas, Guiné Bissau, Galiza, Salvador e terminando em Angola.
 
Autoria: Edlena Barros (São Tomé) - Edição: Maria João Pinto / António Rocha
 

Alemanha: OUTORGAM PRÊMIO A EDWARD SNOWDEN

 


Berlim, 1 set (Prensa Latina) Organizações alemãs de direitos humanos premiaram ex-analista da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos Edward Snowden, por desvelar uma trama de espionagem dos serviços secretos de seu país.
 
O prêmio, dotado de três mil euros, é patrocinado pela Associação Alemã de Cientistas (VDW), pela seção alemã da Associação Internacional de Advogados contra as Armas Nucleares (Ialana) e a filial nacional de Transparência Internacional.

"Somos extremamente gratos ao senhor Edward Snowden", disse a presidenta da seção alemã de Transparency Internacional, Edda Mueller, que se dedica à luta contra a corrupção.

Com sua valentia e sentido da responsabilidade, Snowden tem provocado um debate necessário sobre a espionagem, agregou Mueller.

No ato solene em Berlim, representantes dos partidos da oposição alemã -social-democratas, verdes e socialistas- expressaram seu respeito pelo ex-contratista da NSA.

Por sua vez, Snowden, que recebeu asilo temporário na Rússia, transmitiu uma nota de agradecimento pela distinção através do ativista e técnico de software Jacob Appelbaum.

O também ex-agente da CIA agradeceu "a todas as pessoas que participam no debate político".

Fundado em 2011, o prêmio honra a pessoas "que têm descoberto situações precárias e graves irregularidades em seu meio de trabalho que põem em perigo o ser humano, a sociedade, o ambiente e a paz".

O informante aceita que a publicação destes dados afeta sua carreira pessoal, sua existência física e a de seus familiares, segundo a descrição do galardão.

Há dois anos, o prêmio foi outorgado ao pesquisador nuclear Rainer Mooremann e à pessoa então desconhecida (Bradley Manning), que fez público o video "Collateral Murder" sobre o ataque aéreo a civis no Iraque em 2007.

Manning foi sentenciado em uma corte militar a 35 anos de prisão pela histórica filtragem de documentos classificados ao site Wikileaks.

O também ex-analista estadunidense de inteligência recompilou e transferiu a esse portal quase meio milhão de registros das guerras de Iraque e Afeganistão, e mais de 250 mil telegramas diplomáticos.

ocs/hcn/cc

ONU RATIFICA PAPEL DO CONSELHO DE SEGURANÇA EM CRISE SÍRIA

 


Nações Unidas, 1 set (Prensa Latina) As Nações Unidas reafirmaram hoje a responsabilidade principal do Conselho de Segurança na manutenção e restauração da paz e da segurança internacional também nos casos de utilização de armas químicas.
 
A declaração foi feita neste domingo pelo porta-voz oficial da ONU, Martin Nesirky, ante perguntas sobre a decisão do presidente de Estados Unidos, Barack Obama, de lançar ataques militares contra a Síria.

Também reiterou que a ONU é a única em capaz de estabelecer os fatos de maneira imparcial e creível, com respeito ao emprego de artefatos químicos no país árabe.

O porta-voz informou que o secretário geral do organismo mundial, Ban Ki-moon, conversou por telefone com o sueco Ake Sellstrom, chefe do grupo da ONU que acaba de realizar pesquisas a respeito na localidade de Guta, nas redondezas de Damasco

Na conversa, o especialista indicou que "os preparativos para a classificação das mostras (recolhidas no lugar dos acontecimentos) correm bem e amanhã começarão a ser transferidas aos laboratórios".

Esse trabalho foi realizado com a presença de dois servidores públicos do governo da Síria, como observadores, e em correspondência com o estabelecido pela organização para a proibição de armas químicas, precisou Nesirky.

O titular da ONU solicitou ao chefe da equipe de experientes que acelere as análises e a informação sobre as evidências coletadas sem afetar os procedimentos científicos requeridos e que o relatório sobre os resultados seja publicado tão cedo quanto possível.

O porta-voz também anunciou que Ban Ki-moon se reunirá na terça-feira próxima com os 10 membros não permanentes do Conselho de Segurança (Argentina, Austrália, Azerbaijão, Guatemala, Luxemburgo, Marrocos, Paquistão, Coreia do Sul, Ruanda e Togo).

Ontem, reuniu-se com os cinco permanentes e com direito de veto (Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e China).

ocs/vc/cc

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SÍRIA, UM FILME REPETIDO

 


Ser contrário a um bombardeio da Otan ou a uma invasão dos EUA não significa defender o regime de Assad
 
Pascual Serrano, no eldiario.es, traduzido por Jair de Souza e publicado no Viomundo – Revista Forum
 
Tudo parece indicar que os EUA bombardearão a Síria nos próximos dias. É o que a mídia e a diplomacia denominam eufemisticamente como “intervenção”.
 
Para começar, devemos esclarecer que temos a humildade de reconhecer que, embora pareça indiscutível que houve um massacre por armas químicas, não sabemos quem foram os responsáveis.
 
É por isso que a ONU enviou inspetores à região.
 
Ignorado isto, podemos apresentar algumas deduções lógicas.
 
A primeira delas é o princípio estabelecido no Direito Romano e utilizado em criminalística de “cui prodest” (quem se beneficia?).
 
Há semanas que na agenda das potências ocidentais e de seus subordinados árabes estão as acusações contra o governo sírio pelo uso de armas proibidas.
 
O mais absurdo que poderia fazer esse governo seria assassinar um milhar de civis, incluindo crianças, num bairro que não faz parte da frente de combate e, assim, pôr na bandeja a justificativa para uma intervenção militar dos EUA ou da OTAN.
 
Ou seja, a resposta de “quem se beneficia” com o massacre por agentes químicos aponta os partidários dessa intervenção militar contra a Síria.
 
O que comprovamos a seguir foi a rápida difusão da notícia assinalando a autoria do governo sírio.
 
Tão rápida que já no dia 21 a mídia internacional estava informando sobre um massacre de 650 pessoas cometido pelo exército sírio utilizando como fonte informativa um tuíte da oposição síria, nada mais!
 
Não me vem à cabeça nenhum agente social que possa conseguir ser manchete mundial com apenas um tuíte.
 
Imediatamente, os governos que vêm externando seu apoio aos rebeldes sírios começaram a exigir a presença dos inspetores na zona para confirmar o ataque e determinar seus responsáveis, e acusaram o governo sírio de não colaborar.
 
No entanto, quatro dias depois, esse governo estava autorizando a presença dos inspetores e dotando-os de escolta para seu deslocamento à zona.
 
Ao se dirigirem ao terreno, estes inspetores sofrem um tiroteio. Novamente, o governo é acusado da responsabilidade dos disparos de franco-atiradores sobre a comitiva.
 
Seria uma coisa curiosa que um dos lados escolte alguns inspetores da ONU e, ao mesmo tempo, dispare contra eles.
 
À continuação, os mesmos que exigiam a presença de inspetores dizem que já é tarde, que não precisam dos inspetores.
 
Sem esperar as conclusões da equipe de investigadores das Nações Unidas, o secretário de Defesa estadunidense, Chuck Hagel, diz que já têm a informação de inteligência que demonstrará que “não foram os rebeldes e que o governo sírio foi o responsável”.
 
Não adianta nada que o governo sírio negue isto, ou que Médicos sem Fronteiras afirmem que “não podem determinar a autoria do ataque”.
 
A informação do governo sírio, difundida pela televisão nacional desse país, assegurando que o exército localizou no dia 24 um depósito dos opositores armados em Jobar, localidade na periferia de Damasco, onde encontrou vários barris de agentes tóxicos com a inscrição “feito na Arábia Saudita”, além de máscaras antigas e pastilhas para neutralizar os efeitos da exposição a tais agentes químicos, só a Prensa Latina difundiu essa notícia.
 
O governo que mais mortes já provocou na história por armas atômicas (Hiroshima e Nagasaki) e por armas químicas (agente laranja no Vietnam) é o que se apresenta como protetor mundial contra os danos dessas armas.
 
O governo que iniciou uma guerra no Iraque, a qual ainda está em andamento, justificada por umas armas de destruição massiva que não existiam, agora propõe fazer o mesmo por umas armas químicas fundadas nas mesmas provas.
 
A sensação de dejá vu com a invasão do Iraque é inevitável. Naquele então, pediram inspetores e, quando estes se encontravam no terreno, obrigaram-nos a sair precipitadamente porque começavam a bombardear.
 
São os mesmos governos que se ampararam numa resolução da ONU para proteger os líbios e acabaram bombardeando a comitiva do presidente para que uma turba de mercenários o linchasse e postasse o vídeo na internet.
 
É a mesma OTAN que bombardeou a Yugoslávia sem autorização do Conselho de Segurança argumentando uma limpeza étnica que os legistas demonstraram ser falsa e que, uma vez mais, voltarão a fazê-lo na Síria sem se importar com a legislação internacional.
 
Os mesmos países que invadiram o Afeganistão para liberar as mulheres dos talibã, as quais hoje continuam sendo lapidadas, e o país aumentando seu recorde de produção de ópio, corrupção e pobreza.
 
A todas essas pessoas bem-intencionadas que dizem que não podemos permanecer impassíveis diante do massacre de centenas de civis na Síria devemos explicar que esses libertadores, que esgrimem o direito de proteger, a defesa dos direitos humanos e a implantação da democracia, carregam antecedentes em excesso para que possamos acreditar em suas boas intenções.
 
Como ressalta Jean Bricmont (Imperialismo humanitário. O uso dos Direitos Humanos para vender a Guerra, El Viejo Topo, 2008), estamos vendo que grande parte do discurso ético da esquerda considera a necessidade de exportar a democracia e os direitos humanos lançando mão das intervenções militares do primeiro mundo, e tacham de relativistas morais e indiferentes ao sofrimento alheio àqueles que criticam essas ingerências.
 
De modo que é precisamente essa esquerda a que inventa e interioriza “a ideologia da guerra humanitária como um mecanismo de legitimação”.
 
É um erro argumentar que existem governos bons – que podem invadir – e maus, que merecem ser invadidos e derrubados.
 
Não nos esqueçamos que, se aceitarmos essa opção, a invasão legítima, no fundo, estaremos autorizando a do forte sobre o fraco.
 
Por acaso o Brasil (tão democrático como os EUA) invadirá o Iraque para instaurar a democracia?
 
Aceitaríamos que o Líbano bombardeasse Israel em caráter preventivo?
 
Recordemos que o Líbano foi atacado algumas vezes por esse país e seu ataque preventivo estaria muito fundamentado.
 
Esquecem-se também que o poder sempre se apresenta como altruísta. Dizer que bombardeia a Yugoslávia para impedir uma limpeza étnica, que invade o Afeganistão para defender os direitos das mulheres, ocupa o Iraque para levar a democracia e libertar o país de um ditador, ou ataca a Síria para derrotar um tirano não difere muito do discurso da Santa Aliança para enfrentar as ideias do Iluminismo que inspiraram a Revolução Francesa, ou do discurso de Hitler que justificou sua invasão dos Sudetos checoslovacos para defender a minoria alemã.
 
Parece que essa esquerda de fervor internacionalista humanitário se esquece que, já nos tempos mais recentes, o intervencionismo estrangeiro ocidental, que vem a ser o mesmo que dizer estadunidense, é o que apoiou Suharto contra Sukarno na Indonésia, aos ditadores guatemaltecos contra Arbenz, a Somoza contra os sandinistas, aos generais brasileiros contra Goulart, a Pinochet contra Allende, ao Xá do Irã contra Mossadegh e aos golpistas venezuelanos contra Chávez.
 
Se se trata de intervir para salvar vidas, bastaria “bombardear” muitos países da África com tetra briks de leite, em lugar de bombas de fragmentação.
 
Não é que estejamos defendendo os talibã, Sadam, Gadafi, nem Al Assad.
 
Estar contra um bombardeio da OTAN ou uma invasão estadunidense não exige um rechaço expresso a esses regimes, como se buscasse protegê-los.
 
A questão que devemos debater é a violação da legislação internacional por parte de uma potência invasora — e as mentiras nas quais se ampara para justificá-la.
 
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Portugal: DE CARMONA A CAVACO E À “SALVAÇÃO NACIONAL”

 

Daniel Vaz de Carvalho
 
Implantando entre nós o sistema de enfeudar os serviços públicos a companhias de especuladores, o cabralismo obedecia ao princípio da sua formação: era uma clientela de ricos. (…) A sua grande falta, a sua fraqueza invencível, eram a ausência de um princípio moral, porque nem a ordem imposta pela força nem a riqueza criada contra a justiça chegam a ser princípios. - Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, vol.II, pág. 130 e 131. Ed. Europa América

O povo emudece; negam-lhe a palavra, não o consultam, nem se conta já com ele. Com quem se conta é com a aristocracia palaciana, com uma nobreza cortesã, que cada vez se separa mais do povo pelos interesses e pelos sentimentos e que de classe tende a transformar-se em casta. (…) Por isso decai também a vida económica: a produção decresce, a agricultura recua, estagna-se o comércio, desaparecem uma por uma as indústrias nacionais; a riqueza é uma riqueza faustosa e estéril, enquanto a miséria se alarga pelo país.
- Antero de Quental, Causas da Decadência dos Povos peninsulares, Ed. Contexto, p.22
 
1 – RECORDAR O PASSADO

É sabido que quem esquece as lições do passado está destinado a repeti-lo. Por isso vale a pena debruçar-nos sobre situações ocorridas aquando da instauração do fascismo salazarista e situações atuais. Trazer à memória aqueles tempos dramáticos não parece irrelevante tanto mais que persiste o seu branqueamento, parecendo que o único problema seria a "censura", apresentada sobretudo nos seus aspetos mais ridículos.

Perante o golpe militar de 28 de maio de 1926, no mesmo dia, um então pequeno partido, o PCP, é o único a caracteriza-lo como um golpe fascista. No golpe participavam o comandante Mendes Cabeçadas, um histórico da instauração da Republica, deseja manter o regime constitucional republicano, mas está conotado com a direita; o general Gomes da Costa, homem da Grande Guerra, assume-se como líder da direita, aspira a uma ditadura presidencialista.

Carmona só adere ao movimento a 2 de junho. É quase um burocrata militar, mas é o homem de confiança da oligarquia. Evidenciara-se como procurador no Tribunal Militar que julgou os responsáveis pelo golpe contra a Republica em 18 de abril de 1925, ao assumir não o papel de acusador mas de defensor: "Por que estão sentados no banco dos réus? Porque a Pátria está doente e manda julgar e acusar os seus melhores filhos". (TCP – 153 ou S FN, vol.1, p.288). Pode dizer-se que traía as suas funções, o Estado e a Constituição que tinha a obrigação de defender. Num julgamento similar, os sediciosos do "19 de julho" são também ilibados, ante os protestos da esquerda.

Mendes Cabeçadas assume de início a presidência e a chefia do governo, um golpe de Gomes da Costa demite-o e prende-o a 17 de junho; Carmona é nomeado chefe do governo. Gomes da Costa em 9 de julho é também demitido e exilado para os Açores. Carmona torna-se assim o chefe da ditadura fazendo-se eleger Presidente da Republica, como candidato único, em 1928. A então "Ditadura Militar" passa a "Ditadura Nacional". Estava escancarada a porta à instauração do fascismo.

O "paternal" Carmona intensifica a repressão, a máscara de tolerância que pusera para os golpistas absolvidos não se aplica aos democratas: milhares de adversários são presos, muitos deles deportados para Angola e Timor: políticos, militares republicanos, sindicalistas, comunistas.

Como se chegou aqui? Em 1924, o governo de direita de Álvaro de Castro para equilibrar as contas públicas aplica medidas de "austeridade", muito semelhantes às atuais: despedimento de funcionários públicos, fecho de tribunais, redução de efetivos e despesas militares, extinção ou redução de pessoal em consulados, cortes nas diversas despesas do Estado.
 
Perante a contestação, o governo cai numa moção de confiança. A 22 de novembro de 1924 toma posse José Domingues dos Santos [1] , um homem da esquerda republicana. A sua noção de equilíbrio das contas públicas é diferente. Promove a remodelação e intervenção no sistema bancário para "o desviar das operações especulativas" e "repatriar fortunas evadidas"; legisla a expropriação de terras declaradamente deixadas incultas; apresenta um projeto de reforma agrária; pretende canalizar os recursos do país para aplicações produtivas, tem um programa de justiça social, assistência e previdência. (TCP p.149 e S FN, vol1, 262) Revoga a "lei das associações", que proibia as federações sindicais e impunha autorização policial para reuniões sindicais. (HP vol.6 p. 230) Anuncia o reconhecimento da URSS. (idem p. 627)

PCP, Sindicatos, Cooperativas Operárias, o Socorro Vermelho, apoiam o governo em grandes manifestações em Lisboa. Numa delas, na praça do Município, Domingues dos Santos declara: "O governo da Republica colocou-se abertamente ao lado dos explorados contra os exploradores" "O povo tem sido explorado pelo alto comércio e pela alta finança". (TCP p.150)

A União dos Interesses Económicos (UIE) desencadeia intensa campanha de insídia contra o governo, Domingos dos Santos reage, a Associação Comercial de Lisboa é encerrada por rebelião. A UIE faz campanha contra os "políticos", "os exagerados impostos", protesta porque "o povo que vive mal" e proclama que "é preciso impormo-nos aos políticos". O populismo atual ao serviço da oligarquia não se exprime de maneira diferente.

Domingues dos Santos, procura construir um bloco baseado no antifascismo, porém a 11 de fevereiro o governo cai. A direita do seu partido, o Partido Democrático (PD), com o objetivo prioritário de "combater a Legião Vermelha" retira-lhe a confiança. (HP p.631e 628). O novo governo "moderado", também do PD, tenta conciliar medidas do anterior com os desejos da UIE. (TCP p.149) Nas eleições seguintes ainda em 1925 o PD tem maioria absoluta; monárquicos e católicos perdem lugares.

A direita "liberal" e a UIE apostam decididamente no golpe. Temem a ascensão da esquerda e a mobilização popular bem viva com Domingos dos Santos. Querem a passagem urgente do liberalismo oligárquico praticado pela maioria dos governos republicanos, anti-populares e instáveis, para a ditadura oligárquica, dominada pelos interesses dos monopólios e latifúndios. O seu lema era a "Salvação da Pátria", isto é, dos seus exclusivos interesses como se viu. Hoje, o lema é a "Salvação Nacional", os objetivos não são muito diferentes.

2 – O PAPEL DE CARMONA E OS OBJETIVOS DA OLIGARQUIA

Carmona foi PR de julho de 1926 a abril de 1951, data do seu falecimento. A propaganda fascista fazia dele uma personagem bondosa, um simpático e inofensivo "corta fitas" fazendo festinhas às crianças. Esta imagem é falsa. Carmona tornou-se de facto um adorno do salazarismo, depois de ter colocado Salazar no poder absoluto e ser instaurado o fascismo.

O papel político de Carmona foi o de um exemplar intriguista, eliminando a contestação republicana e simples vestígios de democracia até a ditadura ser implantada com o apoio da oligarquia financeira, monopolista e latifundiária e da hierarquia católica. Salazar contestado pelos sectores civis e militares republicanos deve a sua ascensão a Carmona: tinha sido o homem escolhido pela UIE e pela alta hierarquia católica, mesmo a nível do Vaticano.

Um padre encarregado de informar confidencialmente o Papa sobre a situação da Igreja e sobre as personalidades que pudessem ajudar a sua causa estava em Portugal. É este padre que diz a Salazar: "A mim não me enganas. Por detrás dessa frieza, há uma ambição insaciável". Perante as hesitações de Salazar em aceitar o cargo de ministro das Finanças em 1928, insta-o a "que não pode furtar-se ao cumprimento do seu dever" (S FN, vol 1, p.330 e 337)

A Republica deixara as contas públicas equilibradas, a ditadura entre 1926 e 1928 leva-as ao descalabro. Salazar, é promovido a "mago das finanças" com poderes absolutos, a democracia "suspensa" e a repressão assumida como forma de gestão pública.

Sob a mão de Carmona lugares chave nas forças armadas, no aparelho de Estado, nas forças de segurança, são entregues a apoiantes do fascismo. A nível político tratava-se de estabelecer um consenso anti-operário como a UIE pretendia, liquidando o sindicalismo e o PCP que alargava a sua influência.

De 1927 a 1933, portanto sete anos sob o domínio direto de Carmona, há registos de 1.972 presos e 1.511 deportados, um total de 3.483 pessoas; além de 200 mortos em combates e 990 feridos. Porém, pelo menos os quantitativos de presos e deportados estão grandemente subavaliados. Assim, por exemplo, em anos de intensa repressão, os registos são claramente insuficientes: em 1926 não há quaisquer registos de presos ou deportados; em 1930 20 presos e 20 deportados, que se referem unicamente a uma nota de 3 de dezembro; em 1932 ano de grande repressão, apenas quatro presos. Em 1928 contam-se 150 presos para o ano inteiro, porém ente número refere-se a uma única data: a revolta do 4 de julho!

Só com a criação da PVDE em 1933 (antecessora da PIDE) há registos mais ou menos sistemáticos das prisões. Assim, entre o golpe de 1926 e 1939, registam-se por motivos políticos mais de 13 mil presos e deportados, cálculo muito subavaliado que não tem em conta as prisões, espancamentos, brutalidade policial e outras vítimas extra judiciais no período. Há ainda registos de 1.500 deportados para as colónias ou para os Açores, 210 mortes em combates e 24 nas prisões. (HP vol 7, p. 208)

Era esta a "salvação nacional" e a "ordem nas ruas e nos espíritos" que o regime estabelecia. Carmona, concretizava assim um programa fascista, protagonizado por Salazar. A sua ação vai desenvolver-se em três frentes:

a) Repressão e perseguição aos democratas, destruir o movimento sindical organizado e o PCP "a grande heresia dos tempos modernos", no dizer de Salazar, justificando assim a instauração de uma nova, mas não menos cruel, inquisição.

b) Unir as direitas em torno de um projeto comum.

c) Neutralizar os militares republicanos mesmo de direita (SP p.70 e seguintes).

Ao contrário do que propaganda fascista veiculava, bem como o branqueamento atual, de 1926 a 1932-33, viveu-se um período de intensa contestação e luta contra o fascismo pelas correntes militares republicanas, pelo movimento operário, pela intelectualidade progressista. A sua derrota deve-se sobretudo a conceções de "golpismo" alheado das massas e voluntarismo anarquista.

Devido à intensa luta contra a ditadura, além das dissidências no seu interior, apenas em 1932 Salazar é chefe do governo. Carmona apoia-o sempre, até ao ponto de rutura com seus apoiantes da primeira hora. Em 1933, é plebiscitada nova Constituição, num ambiente de censura, perseguições, exílios. O "corporativismo" fascista é formalmente instaurado, com a designação de "Estado Novo".

3 - O QUE SE OBTEVE?

A teoria política de Salazar está bem expressa no seguinte: A "adulação das massas" pela criação do "povo soberano", não deu ao povo nem influência na marcha dos negócios públicos, nem aquilo que o povo – soberano ou não – mais precisa, que é ser bem governado". (HP vol 7, p. 198) Sabemos o que foi ser "bem governado", mas estas mesmas ideias estão presentes nas objurgatórias de certos "comentadores".

O "Estado Novo" exprimia confessadamente o ódio classista à iniciativa popular que a revolução republicana permitira. O país mergulha na repressão, atraso, miséria: foi o resultado da entrega do país aos "interesses económicos".

O lema do clerical fascismo salazarista era: Deus, assente na superstição e ignorância popular; Pátria, entregue à oligarquia nacional e estrangeira com o povo submetido a cruel repressão; Família, vegetando na pobreza, miséria, tuberculose e alcoolismo.

Eis a "ordem" oligárquica: A propaganda fascista chamava a isto: "Caminhando para uma vida melhor". Salazar falava na "restauração e desenvolvimento dos valores espirituais". Mas que valores espirituais? A propaganda esclarece: pretende-se "contra as ambições doentias do homem das cidades" a "simplicidade da vida nas aldeias" "onde a miséria total é mais rara, não há dinheiro, falta por vezes a roupa necessária, mas há sempre uma côdea de pão e um caldo" (António Ferro). (P 30, p. 157)

O que se obteve foi uma "onda lamacenta de miséria", como constatava a "Indústria Portuguesa" (P 30, p 123), e repressão policial. Eis o êxito do "mago das finanças".

Relatórios confidenciais das autoridades distritais dão conta "do enriquecimento de alguns, da grande falta de trabalho, da miséria cada vez maior" ou "da extrema situação de miséria da classe operária no Alentejo (PPG, p 169). Um relatório da DG Indústria falava da existência miserável dos operários, escaveirados e maltrapilhos vivendo sem quaisquer condições de salubridade (PPG, p. 208). Ao mesmo tempo diplomatas franceses falam da fome e da "população miserável" portuguesa, o embaixador britânico menciona a corrupção e as condições caóticas do mercado interno. (PPG, p. 276, 277)

"Centenas de milhares de indivíduos (os mendigos) fervilham por toda a parte, bandos de pedintes infantis, legiões de prostitutas, crianças a fazer a ronda dos caixotes do lixo" (PPG, p.343). Marcelo Caetano referia-se no início dos anos 40 a: "analfabetismo, alcoolismo, doenças contagiosas". (PPG, p. 368)

Em Braga o governador Civil relatava que a situação económica apenas se tinha agravado para os pobres "desencadeando calamidades quanto a habitação, mendicidade, jogo, prostituição, hospitalização". (PPG, p. 344, 345)

A "obra grandiosa do Estado Novo" refletia-se na carência de cuidados de saúde e hospitais, mortalidade infantil e maternal, esperança média de vida ao nível do "terceiro mundo". Eis o resultado do "equilíbrio das contas públicas" hoje aplaudido pela direita. A filosofia era que só eram pobres porque não queriam trabalhar; hoje porque lhes falta "empreendedorismo".

O ensino público regride para três anos. Salazar explica: "Considero até mais urgente a constituição de vastas elites do que ensinar toda a gente a ler. É que os grandes problemas nacionais têm de ser resolvidos, não pelo povo, mas pelas elites enquadrando as massas" (SP, p.180) Vemos em todos estes aspetos, seja no ensino seja na questão da pobreza e do desemprego, esteios do atual pensamento da direita.

Em "Rumo à Vitória", de 1965, Álvaro Cunhal, traça exemplarmente o quadro da situação de atraso, repressão e miséria em que o país permanecia apontando causas e soluções. Centenas de milhares de portugueses emigram, em grande parte de forma clandestina, fugindo à miséria, à repressão, à guerra colonial, ao desemprego nos campos. O analfabetismo campeia. Em 1970, 15 % do PIB eram remessas de emigrantes.

O país sob o regime do "maior estadista" torna-se alvo de troça e desprezo na Europa. Mesmo nos finais dos anos 60 a escassos quilómetros de Lisboa, o ambiente era como se dizia "terceiro mundista". Um francês manifestava então ao autor a sua opinião sobre Portugal: "com este governo, vocês tornam-se o museu dos povos primitivos na Europa".

Hoje propagandistas da direita exibem na TV gráficos elogiando o "equilíbrio" das contas públicas nesse período…

4 – ONTEM E HOJE

As semelhanças entre a política de direita e a do fascismo são gritantes. Salazar definia então como princípio fundamental para o trabalhador consciente "trabalhar mais e consumir menos". (PPG, p.362) Eis em toda a linha expressas as políticas de austeridade.

O objetivo da direita de "Reestruturar o Estado", não anda longe do "Estado Novo", que se definia com "não parasitário nem social, no sentido de ter como finalidade distribuir a riqueza nacional", pois "o social não pode sobrepor-se aos "interesses nacionais". (PPG 367) Argumentos muito semelhantes aos de hoje para destruírem as funções sociais do Estado, sempre colocadas em termos de "não há dinheiro", exceto para satisfazer a especulação e a fraude e sem tributar o grande capital.

A filosofia era que "a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora é sobretudo um problema de aumento da produção e de organização dos mercados e não um problema de redistribuição de riqueza". Aos trabalhadores havia simplesmente que proporcionar "um salário humanamente suficiente" (!) "criando no operariado a função de colaborador consciente do seu chefe" (PPG 362) Formulações que em nada se distinguem das que atualmente a direita difunde.

Com o movimento sindical perseguido, os trabalhadores sujeitos a privações, o argumento dos "custos no trabalho" servia para os trabalhadores serem levados a aceitar o que quer que fosse para manterem o emprego.

O mesmo argumento encontramos hoje nas confederações patronais para manterem a precariedade sem limites legais e liquidarem a contratação coletiva já que, ontem como hoje, a direita considera ser melhor ter emprego precário e mal pago que não ter nenhum.

Como se vê, o objetivo ideológico da direita é sempre procurar nivelar pelo mais baixo possível e que os explorados assumam como estratégia de sobrevivência os critérios dos exploradores.

O "diálogo corporativo" com "sindicatos nacionais" de obediência ao governo e a prepotência patronal com o poder do seu lado, foi uma ficção: desrespeito pelos horários de trabalho, baixa de salários, despedimentos arbitrários, condições de saúde e segurança desprezados.

A atual concertação social do governo da direita já pouco ou nada se distingue da conciliação de classes que o corporativismo pretendia. A negociação é inexistente ou mera cosmética para o governo impor os ditames da oligarquia, agora escudada na troika.

Os ordenados mínimos fixados em 1935, serviram (ontem como hoje) para o patronato baixar salários. Em 1947 e em 1949, um homem do regime, Daniel Barbosa, evidenciava que os salários tinham descido abaixo do mínimo de sobrevivência. (PPG 356 e 357)

Numa "Mensagem ao sr. Presidente do Conselho" os Sindicatos Nacionais nos anos 40 exprimiam "a miséria de muitos em contraste com poderio financeiro e o enriquecimento desenfreado de um reduzido escol" e "o crescimento da riqueza de alguns à custa de todos". Pediam então para o governo "mudar de políticas". (PPG 364) Faz-nos lembrar a UGT, nos seus apelos ao governo no mesmo sentido. Mas a UGT, com linguagem muito mais suave…

Apesar da repressão fascista, as greves e reivindicações sucedem-se, os grevistas são acusados de "minar a ordem económica e social estabelecida". As gentes da "situação" procuravam demonstrar a "sem razão" das reivindicações operárias, "ainda por cima por parte de sectores dos mais bem pagos". (PPG 377)

Eis o que nos traz aos dias de hoje, com a propaganda contra as greves e lutas de "privilegiados" que têm contratos coletivos de trabalho e salários acima da média, prejudicando os desempregados. A hipocrisia política da direita parece não ter limites…

A crise que a oligarquia originou não é um acidente, é uma consequência direta das suas políticas neoliberais tornando-se uma oportunidade para combater a democracia, as iniciativas e ações populares.

Ontem como hoje temos o "elogio da pobreza virtuosa", que o desenvolvimentista Ferreira Dias contestava (PPG 424), com o governo a elogiar "os sacrifícios dos portugueses", escamoteando, que esses sacrifícios não são apenas inúteis mas contraproducentes.

Apesar das duras condições em que eram realizadas, as lutas dos trabalhadores conseguem melhores condições e melhores salários, obrigam o regime a recuar. O temor pelo seu recrudescimento e pela crescente influência do PCP, obriga o governo a cedências.

Certos sectores industriais compreendem que o aumento da produtividade e da produção de mais-valia, não era compatível com as condições de semi-escravatura dos trabalhadores e vão aceitando reivindicações de melhores condições de trabalho e salários. Compare-se com a atual situação na "concertação social" acerca do aumento do salário mínimo: apesar do acordo das confederações patronais não é aceite pelo governo.

5 - HOJE E ONTEM

Cavaco e a sua "salvação nacional" foi uma tentativa de comprometer o PS num mesmo programa político dominado pela direita, instituindo o partido único neoliberal. Declara então: "os portugueses tirarão as suas ilações sobre os agentes políticos se não houver acordo". A direita diz que "foram lançadas sementes"…De quê?

Cavaco tentava assim criar um sucedâneo da União Nacional salazarista ou da ANP marcelista, com políticas à partida definidas pela agenda de total submissão à troika e aos "mercados" da especulação e usura, sempre em nome do "superior interesse nacional".

Passos Coelho, a quem o PS dispondo-se ao "consenso" ofereceu credibilidade e uma renascida segurança, tirando o governo e o próprio PR do atoleiro para onde as suas políticas os tinham levado, fala sem pudor em "união nacional". Não é uma maneira de falar, é muito pior: é uma maneira de pensar, associando-se ao branqueamento e à difusão de expressões conotadas com o salazarismo.

Situação que conduziria, tal como no salazarismo, a eleições sem permitirem alternativas políticas, à Constituição alterada de acordo com os desejos da oligarquia, podendo ainda ser subvertida por leis avulsas.

O PS não entende que a UE é uma entidade reacionária, que já se encaminhou para o domínio neocolonial-neofascista da potência hegemónica, a Alemanha. Os tratados da UE estabeleceram uma "contra revolução preventiva" "uma construção visando contrariar preventivamente os reveses que a ordem capitalista poderia ter da parte dos movimentos sociais e políticos da classe trabalhadora" " A UE é "uma entidade política de soberania fragmentada, que não vê a sua unidade política senão garantida pela burocracia de Bruxelas submetida à finança internacional" (EFFE p.27 e 90)

A Revolução de ABRIL trouxe para Portugal respeito, admiração, progresso. Hoje, a política de direita faz-nos regressar a situações da ditadura. O desprezo pelo nosso país exprime-se no qualificativo de PIGS, preguiçosos e gastadores, que a direita europeia pôs a circular para os povos mais vulneráveis submetidos às suas iníquas políticas.

P. Coelho, assume-se como defensor dos interesses dos especuladores internacionais: "O país não precisa de gente que acalente a perpétua vontade do Norte da Europa passar a pagar as nossas dívidas" – declarou em julho perante o CN do PSD, a que a comunicação social assistiu. Sublinhe-se a expressão de conteúdo fascista: "o país não precisa de gente". Eis como um governo sem legitimidade real trata os que se opõem às suas políticas de submissão aos interesses estrangeiros.

O governo neoliberal de Cavaco criou nos anos 80 as condições para a destruição da indústria e da agricultura e o desmantelamento das pescas, a troco das transferências de verbas da CE (UE). A condecoração de ex-pides e a recusa de subvenção a Salgueiro Maia, mostraram ser o homem com que a oligarquia mais podia contar.

Neste contexto, não surpreende que António Borges (ex-assessor do governo e ex-quadro superior da megafraudulenta Goldman Sachs), que afirmara "não ser possível fazer reformas com a gritaria da oposição", tenha merecido elogio fúnebre como "um dos maiores economistas da sua geração". No entanto, a morte de Urbano Tavares Rodrigues, um dos maiores escritores da sua geração, internacionalmente prestigiado, tenha sido ignorada em Belém.

Hoje, um governo com o apoio de Cavaco, assume-se perante a atual "UIE" como o garante do projeto anticonstitucional, formalizando a destruição do projeto económico e social da revolução portuguesa. Um governo que encaminha o país para o subdesenvolvimento económico, político, social e cultural, numa via semelhante à do fascismo: um país sem cidadãos, ou antes, cidadãos marginalizados, potencial ou realmente perseguidos.

Pelo espírito de sacrifício e dedicação sem limites à causa da liberdade e do progresso do nosso povo e do nosso país, o PCP tornou-se "na longa noite fascista" o Partido da esperança. Esperança que hoje se expressa na defesa dos valores de ABRIL.
 
[1] Domingues dos Santos participa em 1927 num golpe contra a ditadura, reprimido num banho de sangue. Na sequência desta derrota vai para Paris. Só regressa a Portugal em 1954, morrendo em 1958 com 73 anos. Até ao fim da vida lutou contra o fascismo.
FFE –
En finir avec l'Europe , Cédric Durant , Ed. La Fabrique, 2013
HP – História de Portugal, coord. José Matoso, Ed. Circulo de Leitores 1994
P 30 – O Estado Novo Anos 30, Fernando Rosas, Ed. Estampa, 1986
S FN - Salazar, Franco Nogueira, Atlântida Editora, 1977
SP – Salazar e o Poder, Fernando Rosas, Ed. Tinta da China, 2012
PPG – Portugal entre a Paz e a Guerra, Fernando Rosas, Ed. Estampa, 1990
TCP – Tesouros da Caricatura Portuguesa (1856 - 1928), Paulo Madeira Rodrigues, Ed. Circulo de Leitores 1977

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