Outono
em Madrid
Rui
Peralta, Luanda
I
- A vida mudou muito depois do Grande Colapso. Não que três quartos da
população de Madrid tivessem uma vida pacata, um bom emprego e essas coisas,
antes do Grande Colapso. Muitos nunca tiveram um emprego na vida e sempre
viveram de subsídios, enquanto os houve. Depois de 2016 os subsídios acabaram e
passaram a viver de serviços prestados, ou dos contratos diários, fazendo
pequenos trabalhos não qualificados e mal remunerados, onde e quando apareciam,
até ao Grande Colapso.
Após
o Grande Colapso, os monopólios tomaram conta da vida pública. Consórcios
formados para o efeito geriam cidades, regiões, nações…O aparelho estatal
continuava a existir, em termos de administração central e local, mas tinham o
funcionamento de Conselhos de Administração. Os partidos políticos na U.E.
foram reduzidos a dois: O Partido Europeu Democrático e o Partido da Europa
Livre, ambos compostos por gestores assalariados dos monopólios que assumiam,
em função dos interesses dos seus patrões, os cargos relacionados com a vida
pública. Havia eleições e diversos actos eleitorais, mas apenas para eleger os
órgãos locais regionais e autárquicos, votando somente os que pagavam impostos,
ou tinham caderneta fiscal. Em Madrid não passavam de duzentos e cinquenta mil,
mais ou menos, o resto, porque não tinha emprego ou não tinham rendimentos
fixos mínimos, estava impedido de votar (curioso principio: quem não trabalha,
não vota).
Havia,
é claro, outros partidos e organizações, mas eram clandestinos ou, em raras
excepções, semilegais, podendo realizar meetings, marchas pacíficas, protestos,
campanhas, mas impedidos de concorrer no processo eleitoral. As confederações
sindicais e outras organizações de assalariados foram empurradas para esta
situação. Não era proibido ser membro de sindicatos, mas era proibido fazer
greve.
Nas
empresas, os trabalhadores são constantemente avaliados, não apenas pelo seu
desempenho e nível de produtividade, como também pelo grau de satisfação no
trabalho e na sociedade. Os técnicos de Recursos Humanos (conhecidos por RH)
detêm o completo controlo da vida dos trabalhadores e deles, dos RH, depende a
permanência no posto de trabalho.
II
- Tipos letrados, bem formados e profundamente canalhas, não vivem do ar nem do
bom comportamento e este é o perfil dos que compõem os núcleos dedicados á
prática de pirataria. Assaltam lojas, bancos, armazéns e laboratórios, pilham
os transportes de mercadorias, são hackers, roubam viaturas e são raptores.
Mantêm contactos estreitos com grupos de nómadas, o que permite-lhes uma maior
mobilidade e uma melhor informação do que se passa no mundo.
Nos
abrigos, além do colchão para descansar, só existe um portátil miniatura, uma
pequena biblioteca e um imenso arsenal, com todo o tipo de armas e respectivas
munições. E quando digo todo o tipo de armas é porque assim o é: desde o
simples taser até pequenos drones, adquiridos pelos nómadas, no Médio Oriente e
no Cazaquistão, passando por metralhadoras, armas automáticas, explosivos,
lança-mísseis portáteis, etc. Basta haver uma cave ou antiga adega nas
imediações do abrigo.
Já
agora aproveito para exemplificar melhor este conceito de abrigo. Quando as
primeiras vagas de desemprego começaram a prolongar-se, foram muitos os que ficaram
sem casa. Surgiram movimentos diversos, alguns dos quais ocupavam residências
em construção ou desabitadas. Este movimento foi crescendo através dos decénios
e após o Grande Colapso, os monopólios passaram a gerir apenas partes das
cidades, as áreas que podiam ser utilizadas no mercado da habitação. As cidades
tornaram-se demasiado amplas, para o número real de habitantes (segundo o
conceito dos monopólios, habitantes eram os que votavam e pagavam impostos,
logo podiam pagar renda, ou comprar casa, pagando os empréstimos, sendo os
restantes uns meros indigentes).
No
caso de Madrid, dois terços da cidade caiu em mãos dos “indigentes”. As áreas
residenciais desabitadas tornaram-se abrigos. De início esta ocupação era
organizada, mas aos poucos os gangues, os senhores da guerra e outros bandos,
começaram a controlar imensas áreas. Como resultado, grande parte das
populações urbanas caíram em mão dos bandos armados, exceptuando nómadas e
piratas. Os nómadas porque nunca paravam muito num sítio e os piratas porque
estabeleciam comunidades autogeridas e possuidoras de grandes meios defensivos.
Os
bandos, com o tempo, aprenderam a afastar-se das áreas piratas e a evitar os
nómadas que, por sua vez, aproveitaram a sua superioridade militar e
tecnológica e implantaram, no terreno, Zonas Autónomas. Os territórios
administrados pelos monopólios, demasiado enfraquecidos para ingerirem-se nos
assuntos das Zonas Autónomas, ignoram-nas e os bandos armados, evitam-nas a
todo o custo, pois naqueles territórios foram dizimados bandos inteiros e
desmantelados enormes consórcios de gangues como os russos e brasileiros da
Kremlin Karioka, os chineses da Casa Amarela, os sul-africanos da Black Klan, e
os hindus da Hindu World (Gangues BRICS, que negoceiam directamente com os monopólios
generalizados e com o actual poder europeu), ou o consórcio colombiano da Casa
de Narquino, que apoderou-se de grande parte do território português a sul do
Tejo e de vastas áreas da Andaluzia.
Aqui
em Madrid, as Zonas Autónomas são formadas por quatro Republicas e seis núcleos
piratas (os núcleos piratas dominam bairros, enquanto as Republicas dominam
distritos. Por sua vez os núcleos podem ser Ilhas, Sovietes, núcleos ou apenas
pontos logísticos). A maior é a Republica Verde de Fuencarral-El Pardo, um
enclave verde e socialista libertário. Depois tem a Republica de Vicálvaro,
anarco-comunista, a Republica Livre de Hortaleza, zona de trabalho-zero, ponto
de encontro dos nómadas que a transformam num grande mercado alternativo e por
fim a Republica Sindical-Comunista de Vilaverde, um enclave
anarco-sindicalista. Existem, ainda o Soviete de Numancia, no Distrito de
Puente de Vallecas, o núcleo pirata de Goya, no distrito de Salamanca, o núcleo
pirata de Jerónimos, no distrito de Retiro, o Soviete de Legazpi, em
Arganzuela, o núcleo pirata de Ciudad Jardin e o Soviete Hispanoamérica, ambos
em Chamartin.
A
vida nas Republicas é melhor, uma vez que estão bem protegidas e não sofrem a
constante pressão dos monopólios, como acontece nos núcleos. Daí os núcleos não
serem habitados por crianças, velhos, doentes e mulheres grávidas. Estes são
grupos que residem nas zonas autónomas. O limite de idade mínima nos núcleos é
de dezassete anos e a idade máxima de sessenta anos. Os que atingem esta idade
são transferidos para uma das Republicas.
Os
monopólios dominam o Centro, Arganzuela (excepto Legazpi, um Soviete), Retiro
(excepto Jerónimos, uma ilha pirata), Salamanca (excepto Goya, uma ilha
pirata), Chamartin (excepto Ciudad Jardin um núcleo pirata e Hispanoamérica, um
Soviete), Tetuan, Moncloa-Aravaca, Latina, Carabanchel, Usera, Puente de
Vallecas (menos Numancia, um Soviete), Moratalaz, Ciudad Lineal, parte de Villa
Vallecas (território reclamado pelos bandos BRICS), San Blas e parte de Barajas
(apenas a área do aeroporto e do Casco Histórico, sendo o resto dominado pelos
colombianos da Casa de Narquino e pelos senegaleses de Omar Kaita, um capo do
ramo nigeriano da Black Klan, sul-africana).
III
- Em algumas zonas do mundo a situação não é tão pacífica como em Madrid. Na Península
Ibérica, a Andaluzia e o Algarve vivem momentos de extrema conflitualidade. Os
monopólios tentam dominar as áreas dos bandos e as Zonas Autónomas vivem numa
situação de guerra permanente entre uns e outros. Nestas situações surgem
sempre alianças provisórias, realizadas em função de objectivos imediatos. No
resto da União Europeia a situação é idêntica á de Madrid, uma situação
caracterizada pela erradicação e perda de influência dos gangues, por
debilidades estruturais dos monopólios e dificuldades económicas nas áreas por
eles controladas, militarmente debilitados, embora possuidores de uma grande
tecnologia bélica. As Zonas Autónomas aproveitam o enfraquecimento dos seus
dois arqui-inimigos e reforçam-se.
Na
Confederação das Comunidades Independentes as coisas não variam muito, embora
as áreas de conflitualidade intensiva sejam de maiores proporções. O núcleo
central desta comunidade, os BRICS, vive diferentes situações e nas periferias
da comunidade, países como a Colômbia e o Sri-Lanka vivem grandes conflitos
abertos. No Brasil a situação é controlada pelos monopólios, que avançam sobre
as áreas urbanas dominadas pelos imensos gangues. Nas áreas rurais, as zonas
autónomas fazem enormes progressos, através dos Sem Terra, que constituíram
mais de dez Republicas e centenas de núcleos.
Na
Rússia a situação é totalmente controlada pelos monopólios, que aniquilam as
bolsas dos fortes gangues russos, (por isso estes passaram a actuar em força
fora do país) e que amordaçaram, até agora, todas as tentativas de criação de
Zonas Autónomas, que resumem-se a alguns núcleos resistentes. Na China a
situação é idêntica á da Rússia. Já na Índia o panorama é muito diferente.
Existe uma aliança entre os monopólios e os gangues, numa tentativa de eliminar
as grandes zonas autónomas surgidas na cintura florestal, vivendo-se uma guerra
aberta, embora centrada apenas na larga cintura florestal, o que a torna
facilmente encoberta pelos monopólios hindus.
Por
fim a África do Sul, centro da SADC. Aqui o nível de conflitualidade entre os
monopólios e as zonas autónomas é enorme e embora não exista uma situação de
guerra aberta, existem confrontos militares diários. Nas grandes cidades,
controladas pelos monopólios, os gangues tentam fortalecer-se, mas o nível de
confrontação entre os monopólios e as zonas autónomas, criou uma situação
desfavorável á sua implementação, pois o estado de emergência em vigor nas
principais cidades sul-africanas dificulta os seus movimentos. Nas zonas
autónomas os gangues sofreram grandes dissabores pelo que as suas acções são
extremamente cautelosas, preferindo actuar fora das fronteiras, em grandes
consórcios com os senegaleses e nigerianos.
Nos
USA, a situação é confusa, uma vez que as duas facções rivais dos monopólios
(as mineiras e as petrolíferas) reorganizaram-se em dois novos partidos. Os
monopólios saídos dos sectores mineiros que controlavam os Democratas
transformaram a sua estrutura política em Partido Nacional-Liberal ,
os Naclibs. Os que do sector petrolífero, cujo aparelho político eram os
Republicanos, transformaram a sua estrutura em Repcon, Partido
Republicano-Conservador, onde aglutinaram todas as dissidências de direita (os
fundamentalistas cristãos, os old conservative e o Tea Party, para além dos
separatistas texanos e do Alasca).
O
problema desta reorganização surge quando uma das facções dos Naclib, os
obamistas, partidários do black capitalism e que ostentavam orgulhosamente as
suas raízes afro, decidem romper o old agreement, levando á radicalização dos
fundamentalistas cristãos e da extrema-direita dos Repcon. Criaram-se bandos
armados, o que reduziu imenso o poder dos monopólios, pois ficaram reduzidos ao
controlo de apenas cinco estados (três Repcon moderados e dois Naclib, da Irish
Line, também conhecidos por Clintonites ou Hillaristas). Os restantes estados
radicalizaram as suas posições e deixaram de ser fiéis ao governo federal e às
elites dos seus partidos. A situação é de guerra civil, entre os obamistas e a
extrema-direita, o que levou a que os bandos armados dos gangues latinos
assumissem o controlo da Florida e da região fronteiriça com o México (o que
inclui mais de metade do Texas, que é partilhado com os moderados do Repcon, ou
seja com o governo federal, que a custo controla parte deste estado, enquanto
os gangues da Coligação Ariana controlam toda a região fronteiriça com o
Canadá.
Mas
se nos USA a situação é confusa e catastrófica (embora a catástrofe yankee
tenha começado em 2014, com o Colapso Fiscal, imediatamente anterior ao Grande
Colapso) não é menos confusa na Comunidade do Pacifico, criada sob a égide dos
USA no período obamista e deixada órfã cedo demais. Todos estes estados caíram
em mãos dos gangues locais e hoje esta comunidade não passa de uma coligação de
interesses entre todos os gangues locais e um foco de perpétuas guerras
internas e curtos períodos de cessar-fogo. O mesmo pode-se dizer do México, em
que três quartos do território são disputados por bandos rivais. Os
neo-zapatistas formaram uma grande zona autónoma em Chiapas e arredores, embora
a conflitualidade com os bandos seja intensa.
Quanto
ao Médio Oriente e a Eurásia são terra de ninguém (e de todos), onde os
interesses afluem, convergem e divergem, numa intensa guerra aberta, que levou
ao extermínio de grande parte das populações desde a península arábica até ao
Iraque, passando por Israel (que desapareceu num monte de cinzas e nuvens
químico-nucleares), Líbano (um imenso cemitério, onde não resta nenhum edifício
em pé), Síria (região inabitada, depois de toda a população ter morrido em
consequência das armas bacteriológicas lançadas pelo exército turco) e Irão,
ocupado pelos bandos armados do gangue de Xerxes, um gangue dedicado ao tráfico
de droga, que domina todo o país, transformado num imenso bordel. Este bando
administra os seus territórios a partir de Cabul, no Afeganistão, região que
partilha com os talibãs, o mesmo sucedendo com o Paquistão. No que respeita á
Eurásia, não passa, actualmente, de um imenso território partilhado entre a CCI
e os gangues locais, sendo a sua geografia política irreconhecível. Os
territórios mudam de mãos todos os dias e as populações são vítimas de
genocídios, estimando-se que já desapareceram mais de três quartos dos seus
habitantes.
Continua
Imagem: Pablo Picasso