sábado, 29 de novembro de 2014

GUARDA PRESIDENCIAL DE ANGOLA ESCONDE ASSASSINO DE HILBERT GANGA



Folha 8 Digital, 29 novembro 2014

O alegado assassino de Hilbert Ganga é um militar que faz parte, não das For­ças Armadas Angolanas, enquanto órgão governa­mental, mas do exército privado de José Eduardo dos Santos, actual Pre­sidente da República de Angola.

Este soldado da UGP–Uni­dade da Guarda Presiden­cial-, cuja cultura de pro­tecção assenta no “mata primeiro e discute depois”, andou muito tempo escon­dido, quer dizer, os seus superiores hierárquicos, que se julgam e sempre es­tiveram acima da lei, refu­taram-se a denunciá-lo as autoridades judiciais.

“Não sabemos quem foi o soldado, que disparou”!

“Se calhar é um infiltrado”!

Respostas atentatórias aos neurónios de qualquer ci­dadão normal. Diante des­ta aberração o advogado decidiu formular a quei­xa contra o comandante da unidade; um general, garbosamente pago pelo Presidente da República e com mordomias, que muitas vezes, segundo uma fonte, chegam aos 50 mil dólares semanais.

Aí chegados, o generalíssi­mo abandonou a clandes­tinidade, e para não ver a pele aquecer nos qua­dradinhos das fedorentas masmorras do regime, re­cuperou a memória e, no meio dos 19 mil homens que compõe o exército privado de Eduardo dos Santos, des­cobriu, qual agulha no pa­lheiro, o alegado assassino de Hilbert Ganga, jovem engenheiro e militante da CASA-CE, barbaramen­te assassinado no 23 de Novembro de 2013, cujo crime foi a de colar carta­zes à mais de 800 metros do Palácio Presidencial, exigindo justiça pelos as­sassinatos de Cassule e Kamulingue.

E, com base nisso, emer­giu, Desidério Patrício de Barros, solteiro, maior, angolano, filho de Augus­to Manuel e de Faustina Filipe de Oliveira Barros, que já está devidamente identificado nos autos, pois chegou a ser ouvido, na fase de instrução preparatória, mas continuam as posições dila­tórias.

O processo foi remetido ao tribunal e distribuído para a 8.ª secção, com o n.º 884/14, estando na letra do juiz José Pereira Lourenço.

Antes da pronúncia foram emitidos dois “manda­dos de captura”, sendo o último, através do oficio 218/14 de 30 de Outubro e recebido na DPIC (Direc­ção Provincial de Investi­gação Criminal), no dia 04 de Novembro 2014, mas a verdade é que este órgão e o departamento de Buscas e Capturas, mesmo saben­do do domícilio do alega­do assassino, estes não cumprem com a decisão judicial.

O próprio advogado da causa, Dr Miguel Fran­cisco, já se deslocou por várias vezes a DPIC, mas estes continuam a fazer ouvidos de mercador, por se tratar de alguém, pro­tegido da Presidência da República.

“Eu não entendo qual é a dificuldade desta direc­ção de Buscas e Captu­ras cumprir uma ordem judicial, principalmente, quando o infractor está localizado?”, interroga-se o advogado.

A dificuldade é uma. Fosse um outro infractor, ligado, por exemplo, a CASA – CE, UNITA ou PDP-ANA e à muito o homem estaria atrás das grades ou mes­mo preso na barriga de um qualquer jacaré, do­mesticado nos rios da Se­gurança de Estado e DPIC.

É a consagração do princí­pio da desigualdade...

A Constituição de Angola, feita a medida do fato de Eduardo dos Santos de­monstrou mais uma vez ter sido feita por gente no exterior e aprovada por gente que não a leu, ao ponto de, quando o cida­dão pretende, recorrer aos seus articulados, como o art.º 47.º (Liberdade de reunião e de manifesta­ção), o regime reage com violência, como foi no caso, de Hilbert Ganga.

Quanto a proximidade a lei diz, não poderem os manifestantes, chegar a 100 metros dos órgãos de soberania, ele estava a 800 mts.

Se ainda assim tivesse de haver violência ela, não poderia, violar o art.º 57.º da constituição que diz no n.º 1: “a lei só pode res­tringir os direitos, liberda­des e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário, proporcional e razoável numa sociedade livre e democrática, para salvaguardar outros direi­tos ou interesses constitu­cionalmente protegidos”.

Ora isso não diz nada aos brutamontes assassinos, tão pouco aos seus mento­res e chefes, daí a morte ser a medida de razoabilidade.

“O processo está acusado e o digno agente do Mi­nistério Público já exarou um Despacho de captura. Penso até que um dos in­divíduos ligados ao sector de captura está aqui pre­sente (na manifestação recordando um ano de passamento de Ganga), e já o abordei mesmo na entrada do cemitério”, de­sabafou Miguel Francisco.

O autor do homicídio, ain­da beneficia da presunção de inocência, até condena­ção em julgado, mas deve aguardar, pela dimensão da imputação criminal: homicídio voluntário, jul­gamento em prisão pre­ventiva.

“É tudo muito fácil, ele é da UGP, está identificado, nem é preciso lá ir, é só mandarem uma ordem e de lá o militar é encami­nhado para a DPIC e con­sequente, esta coloca-o na prisão, para aguardar o julgamento. Mas, até lá, ele goza da presunção de ino­cência e caberá ao Tribu­nal julgá-lo, se for o culpa­do, e aí pagará pelo crime cometido”, concluiu.

Na foto: Hilbert Ganga, depois de gratuita e barbaramente assassinado pela guarda presidencial.

Angola: A IMPUNIDADE ABSOLUTA DA UGP



Unidade da Guarda Presidencial (UGP), pode cometer crimes à vontade, a sua impunidade é absoluta. É um exército paralelo ao serviço de um homem, vinte mil homens pagos não se sabe bem como, pois os seus emolumentos nem sequer figuram no Orçamento Geral do Estado

Arlindo Santana – Folha 8 Digital, 29 novembro 2014

IMPUNIDADE E MISTÉRIO DA FONTE DOS SALÁRIOS

Quanto ao terceiro dia a que aludimos na introdução deste artigo, foi em Setem­bro, dia 24. Aconteceu já noite feita, quando o nosso director, William Tonet, foi vítima de um atentado atri­buído a soldados da UPG no momento em que ele saía da Universidade onde dá aulas no bairro Morro Ben­to. “Uma viatura com ho­mens fortemente armados vinha em sentido contrário e provocaram de propósito um choque com a minha viatura, desceram da camio­neta em que se faziam trans­portar, apontaram armas e deram empurrões de forma ameaçadora”, explicou o nosso director, acrescentan­do que os supostos soldados da UGP puseram-se em re­tirada quando pessoas se aproximaram do local.

Bom, tirando os danos so­fridos pela viatura de WT, nada de grave se passou, mas o mais penoso é que fi­cou patente, uma vez mais, a impossibilidade de protestar contra a selvajaria dos sol­dados da UGP e isso numa altura em que temos vindo a verificar um endurecimento da já de si ríspida e tradicio­nal repressão policial (da Polícia Nacional em geral), efectuada sobretudo sobre quem não manifeste adesão ao regime político instaura­do desde há quase 40 anos no nosso país. Pelo mesmo andar do andor tem-se verificado um desaparecimento progressivo e constante do respeito pelas leis de Ango­la, a começar pela própria Constituição, que é positiva­mente massacrada, pisotea­da ou ignorada pelas mais importantes e ufanas insti­tuições encarregadas de a defender e de velar pela sua obediência.

No caso vertente, UGP/WT, o valor da versão da vítima é in­significante, uma vez que a UGP está acima da lei, a pontos de muitas das suas viaturas nem sequer terem placa de matriculação quando saem à rua e os seus soldados se­rem anónimos, sem nome, sem rosto e, em casos como este, sem rasto possível de seguir. O caso do atentado a WT nem sequer existe para esses senhores do Poder!

UM VERDADEIRO EXÉRCITO PRIVADO 

Por outro lado, a impuni­dade dessas pessoas que manejam os monstros mo­torizados que são as “carri­nhas” da UGP, estende-se à impotência da Polícia Na­cional, interdita de agir a propósito de seja que caso for atinente às suas exac­ções, abalroamentos, eventualmente crimes e assas­sinatos. Toda essa gente goza de uma impunidade tacitamente institucionali­zada!

Esta agressividade é “nor­mal”!, está no sangue dos nossos governantes ex­-guerrilheiros e já não es­panta ninguém. Mais cla­moroso, um verdadeiro escândalo, é que essa tropa ao serviço de JES, à parte fruir de impunidade total, é um autêntico exército paralelo independente das FAA.

São cerca de 20 mil homens pagos ao preço da miséria, numa saga em que o di­nheiro se evapora ao sair dos cofres do Estado por vias quase tão misteriosas como as do Padre Eterno – no Orçamento Geral do Estado nem sombra há do colossal preço (centenas de milhões…) que o Estado tem de pagar a essa guarda de um só homem -, pois a maioria daqueles que de­vem ser pagos cem mil, re­cebem uns trinta e se pro­testarem… “Ai é!?! .. Jacarés em cima deles, pois então!

A ÉTICA A DEONTOLOGIA E A PERSEGUIÇÃO DA MÍDIA EM ANGOLA



William Tonet – Folha 8 Digital, 29 novembro 2014

O monopólio da imprensa em Angola, a perseguição dos órgãos in­dependentes tornam actual uma revista ao pensamen­to de Claude Bertrand, para percebermos os riscos, que a incipiente democracia sofrerá com a concentração de todos os órgãos de comunicação social, exclusivamente, na esfera de empresários do regime.

Mais a concentração torna mudo muitos actos ilícitos de perseguição, assassinatos e destruição de bens, como ocorreu no 28 de Novembro, em Cabinda com a residência do deputado da UNITA, Raúl Danda, uma semana depois dele ter criticado o fraco desempenho governamental, na implantação dos projectos no enclave.

A maioria da imprensa não co­mentou. É mera coincidência?

Não!

É fruto dos monopólios e da manipulação da liberdade de imprensa e de expressão.

Não é surpreendente que as pesquisas indiquem uma desconfiança á mídia e uma tendência a restringir a sua li­berdade. Nos Estados Unidos, três quartos dos usuários têm confiança limitada na mídia, somente um terço dos françe­ses crêem na independência dos jornalistas. E, por outro lado, os diversos públicos ex­primem o seu profundo descontentamento com o entrete­nimento que a mídia oferece.

Paradoxo: acusa-se a mídia de todos os males embora ela nunca tenha sido melhor do que hoje. Para convencer-se disso, basta folhear os jornais do século passado, ver alguns programas de televisão dos anos 50 ou ler as vituperações dos críticos de antigamente. Melhor hoje portanto, mas mediocre. Ora, se antigamen­te a maioria das pessoas podia passar sem meios de comu­nicação, hoje em dia, mesmo nas nações rurais, sente-se necessidade, não só de mídia, mas de mídia de qualidade. E a sua melhoria não é simples­mente uma mudança desejá­vel: o destino da humanidade depende disso. Efectivamente, só a democracia pode asse­gurar a sobrevivência da civi­lização, e não pode haver de­mocracia sem cidadãos bem informados, e não pode haver tais cidadãos sem mídia de qualidade.

Essa afirmação é excessiva? A resposta vem da ex-URSS onde, entre 1917 e os anos 80, centenas de milhares de livros antigos e obras de arte foram destruídos, espaços imensos foram irremediavelmente po­luídos, dezenas de milhões de pessoas foram mortas-sem que a mídia soviética tenha querido revelar e protestar.

Se a mídia não cumpre bem as suas funções, um proble­ma crucial em toda sociedade cabe numa pergunta: como melhorá-la?

A mídia-diz-se que ela cons­titui ao mesmo tempo uma indústria, um serviço público e uma instituição política. Na verdade, nem todos os meios de comunicação fazem parte desta natureza tríplice: primei­ro, a nova tecnologia permite o renascer de um artesanato. Por outro lado, uma parte da produção da mídia não consis­te absolutamente num serviço público (por exemplo, a im­prensa sensacionalista). Enfim, numerosos veículos (como os milhares de revistas profissio­nais) não desempenham ne­nhum papel na vidas política.

Apesar disso, os órgãos com os quais se preocupam os ci­dadãos esclarecidos são os meios de informação geral, que não podem desfazer-se de nenhum dos três caracteres.

Conflito de liberdades-conse­quentemente, encontramo­-nos frente a um conflito fundamenta lentre liberdade de empresa e liberdade de ex­pressão. Para os empresários da mídia (e os anunciantes), a informação e o entretenimen­to são um material com o qual exploram um recurso natural, o consumidor, e tentam man­ter uma ordem estabelecida que lhes é lucrativa. Para os cidadãos, pelo contrário, infor­mação e entretenimento são uma arma na sua luta pela fe­licidade, que não podem alcan­çar sem mudanças na ordem estabelecida.

Para tal antagonismo não há uma solução simples. Durante decênios, duas foram praticadas em mais da metade das nações do globo. Consistem em eliminar um dos dois antogonistas: as ditaduras de tipo fascista suprimem a liberdade de expressão sem tocar habi­tualmente na propriedade dos meios de comunicação. Os re­gimes comunistas suprimem a liberdade de empresa, pre­tendendo manter a liberdade de expressão. O resultado é o mesmo nos dois casos: a im­prensa mutilada torna-se um instrumento de estupidez e de doutrinação.

Uma opção seria conceder á indústria da mídia liberdade (política) total. Com efeito, o fim do monopolio estatal e do controlo governamen­tal do rádio e da televisão na Europa, nos anos 70 e 80, fez muito pela democracia e pelo desenvolvimento da mídia. Mas a sua comercialização crescente no século XX e a concentração da propriedade não combinam mal com o plu­ralismo. A “conglomerização” combina bem com a neces­sária independência da mídia. Se houvesse total liberdade, poder-se-ia esperar a prostitui­ção da mídia, tanto no sector de informação quanto no de entretenimento. Tem-se uma ligeira ideia disso nos Estados Unidos onde quase toda a mí­dia é comercial e a regulamentação mínima. Segundo Euge­ne Roberts, célebre director de quotidiano, “os jornais, salvo exepções, concentram-se no aumento de seus lucros a fim de agradar aos accionários”. Com o resultado que, naquele país, um grupo de imprensa pode chegar a perto de 25% de lucro (Ganet)-enquanto uma emissora de televisão pode al­cançar 50%.

A finalidade da mídia não pode ser unicamente ganhar dinhei­ro. Nem ser livre: liberdade é uma condição necessária mas não suficiente. A finalidade a atingir é ter uma mídia que atenda bem a todos os cida­dãos. Em todo o ocidente in­dustrializado, a mídia privada desfruta há muito tempo de liberdade política e muito fre­quentemente forneceu servi­ços deploráveis.

É preciso então, ao contrário, pôr toda a mídia sob o contro­lo do Estado? A experiência feita no século XX pelo comu­nismo e pelo fascismo não rea­lizou nada para dissipar uma desconfiança secular em rela­ção ao Estado. Teme-se e com razão que aconteça uma mani­pulação absoluta das informa­ções e do entretenimento.


AS MENTIRAS TEÓRICAS DO BANCO MUNDIAL




As acções do Banco Mundial não se resumem a uma sucessão de erros ou de maus actos., Fazem, pelo contrário, parte de uma visão coerente, teórica e conceptual, que se ensina doutamente na maioria das universidades, sustentada por centenas de livros de economia do desenvolvimento. O Banco produz uma verdadeira ideologia do desenvolvimento. Quando os factos desmentem a teoria, o Banco não questiona a teoria. Ao invés, tenta deformar a realidade para continuar a proteger o dogma.

O Banco Mundial considera que os países em desenvolvimento PED |1| devem recorrer ao endividamento externo e atrair investimento estrangeiro para progredirem. Esse endividamento serve principalmente para comprar equipamento e bens de consumo aos países mais industrializados. Os factos demonstram, dia após dia, há décadas, que isso não funciona. Os modelos que influenciaram o Banco Mundial implicam logicamente uma forte dependência dos PED das entradas de capital externo, principalmente sob a forma de empréstimos, na ilusão de atingirem um nível de desenvolvimento auto-sustentado. Os empréstimos são considerados pelos fornecedores de fundos públicos (governos dos países mais industrializados e BM em particular) como um poderoso meio de influenciar os países endividados. Portanto, as acções do Banco não se resumem a uma sucessão de erros ou de maus actos. Pelo contrário, fazem parte de uma visão coerente, teórica e conceptual, que se ensina doutamente na maioria das universidades, sustentada por centenas de livros de economia do desenvolvimento. O Banco produz uma verdadeira ideologia do desenvolvimento. Quando os factos desmentem a teoria, o Banco não questiona a teoria. Pelo contrário, tenta deformar a realidade para continuar a proteger o dogma. 

Ao longo dos dez primeiros anos de existência, o BM produziu muito pouca reflexão sobre o tipo de política económica a apoiar nos países em desenvolvimento. Diversas razões explicam isso: 1) o assunto não faz parte das prioridades do BM. Em 1957, a maioria dos empréstimos do BM (52,7%) ainda é concedida aos países industrializados; |2| 2) a matriz teórica dos economistas e dirigentes do BM é de inspiração neoclássica. Ora, a teoria neoclássica não concede um lugar específico aos PED; |3| 3) o BM só desenvolveu um instrumento específico para conceder empréstimos com baixas taxas de juro aos países em desenvolvimento em 1960 (criação da Associação Internacional de Desenvolvimento (AID) – ver cap. 3).

O BM faz pouco, mas isso não o impede de criticar os outros. Foi assim que, em 1949, o Banco criticou um relatório da Comissão das Nações Unidas para o emprego e a economia, que defendia o investimento público na indústria pesada dos PED. O BM declarou que os poderes públicos dos PED têm muito a fazer no que diz respeito à construção de boas infra-estruturas e que devem deixar a responsabilidade da indústria pesada para a iniciativa privada local e estrangeira. |4|

Segundo os historiadores do BM, Mason e Asher, a orientação do Banco parte do princípio que os sectores público e privado devem exercer funções diferentes. O sector público deve assegurar o desenvolvimento planificado de infra-estruturas adequadas: ferrovias, estradas, centrais eléctricas, instalações portuárias e meios de comunicação em geral. Ao sector privado compete a agricultura, a indústria, o comércio e os serviços pessoais e financeiros, porque em todos esses domínios pressupõe-se que a iniciativa privada tem melhor desempenho do que o sector público. |5| Na verdade, deve ser concedido ao sector privado tudo o que é susceptível de produzir lucro. Em contrapartida, as infra-estruturas ficam a cargo do sector público, porque se trata de socializar os custos com o objectivo de ajudar a iniciativa privada. Em suma, o Banco Mundial recomenda a privatização dos benefícios e também a socialização dos custos daquilo que não é directamente rentável. (continua em O Diário)


Depois de Gaza: Europa se mexe para por fim a cumplicidade com ocupação israelense



Omar Barghouti - Middle East Eye – Opera Mundi, opinião

Onda internacional de condenação da actuação de Israel na Palestina, e em particular em Gaza, põe em evidência o crescente impacto do boicote mundial

Embora ainda profundamente cúmplice em perpetuar a ocupação israelense e em permitir que a sua comissão cometa graves violações do direito internacional, a União Europeia tomou recentemente uma série de medidas que podem indicar um tendência crescente para sanções contra Israel pelo seu fracasso em iniciar  um acordo pacífico com a Autoridade Palestina.

O diário israelense Haaretz publicou na semana passada um documento da UE que debate possíveis sanções contra Israel e contra empresas europeias envolvidas na construção e na infraestrutura de colônias israelenses ilegais no território ocupado da Palestina, incluindo Jerusalém Oriental.

O documento também apela a proibir contatos com os colonos israelenses e figuras públicas que rejeitam a “solução dos dois Estados”, uma medida que “pode levar ao boicote de velhos ministros governamentais como Naftali Bennett e Uri Ariel do Habayit Hayehudi, muitos deputados do Likud e até, em casos extremos, o presidente Reuven Rivlin”.

Diplomatas europeus explicaram o contexto desta discussão sobre sanções dizendo: “Isto é um sinal de que existe um grave problema de raiva e frustração nos Estados membros. Nos últimos meses houve encontros de ministros dos Negócios Estrangeiros europeus durante os quais ministros considerados muito próximos de Israel falaram de maneira crítica contra as políticas do governo de Netanyahu.”

último ataque de Israel a Gaza, condenado como um “massacre” pela presidente brasileira e até pelo ministro francês dos Negócios Estrangeiros, exacerbou essa raiva e desgastou ainda mais o apoio cada vez mais fraco a Israel na opinião pública europeia. Um antigo deputado e vice primeiro-ministro britânico e um antigo primeiro-ministro francês apelaram a sanções. O vice-presidente do segundo maior partido da Alemanha, Ralf Stegner, do Partido Social-Democrata de centro-esquerda, apelou a um boicote de armas a Israel, à Arábia Saudita e ao Qatar. No dia 7 de Novembro, a UE votou em bloco apoiar várias resoluções da ONU respeitando os direitos dos refugiados palestinos tal como estão estipulados na resolução 194 da ONU e condenando, entre outras violações, os colonos israelitas como uma violação da 4ª Convenção de Genebra. Uma série de resoluções de parlamentos europeus reconhecendo o “Estado da Palestina” é vista por Israel como um indicador claro da frustração oficial da Europa para com Israel e do vasto descontentamento com as suas políticas, apesar de que esse reconhecimento está bem longe de corresponder à obrigação dos Estados europeus em fazer respeitar os direitos inalienáveis do povo palestino.

Ao vermos, no entanto, a rapidez com que a UE adoptou sanções contra a Rússia por alegadas violações na Ucrânia, que fazem fraca figura em comparação com os crimes de guerra em Gaza e Jerusalém, não se pode senão acusar a Europa de pura hipocrisia por ainda estar a debater sanções contra Israel após décadas de ocupação, limpeza étnica e outras graves violações dos direitos humanos.

Longe de refletir uma abordagem de princípios que consistentemente faça respeitar os direitos humanos e o direito internacional, a série de medidas europeias contra Israel reflete sobretudo o desgaste do apoio a Israel entre os públicos europeus e o crescente impacto do movimento global, dirigido pelos palestinianos, de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) a nível da população e da sociedade civil.

Uma olhada para a rápida deterioração da situação dos países europeus pode explicar o debate dentro da UE sobre possíveis sanções contra Israel. Um apelo, este mês, à UE para que suspenda o seu Acordo de Cooperação com Israel, o principal mecanismo de colaboração entre as duas partes, foi subscrito por mais de 300 partidos políticos, importantes sindicatos, proeminentes ONGs e outros grupos europeus que se manifestavam pela primeira vez.

Mesmo antes de Gaza, uma sondagem da BBC de 2014 colocou Israel em terceiro – ou quarto – lugar, a competir com a Coreia do Norte, enquanto país pior considerado no mundo, na opinião de dois terços dos europeus.

Grande parte do estatuto de quase-pária de Israel para muitos europeus pode ser atribuído à tomada de consciência dos crimes de Israel contra os palestinos, a sua tendência política para o fanatismo e a eficaz campanha de BDS.

Iniciada em 2005 pela maior coligação de partidos políticos, federações de sindicatos e organizações de massa da sociedade palestiniana, a BDS apela ao fim da ocupação israelita de 1967, ao fim da sua discriminação racial institucionalizada, que corresponde à definição da ONU de apartheid, e ao respeito pelo direito dos refugiados palestinianos regressarem às suas casas e terras das quais foram desenraizados e expropriados em 1948.

A BDS já foi percebida por Israel como uma “ameaça estratégica” bem antes da recente devastação de Gaza. Como resultado do alto preço humano do ataque de Israel a Gaza e da sua colonização sem precedentes da Cisjordânia ocupada, sobretudo dentro de à volta de Jerusalém oriental, a BDS testemunhou uma onda excepcional de êxitos qualitativos.

O isolamento internacional de Israel, que um funcionário da Casa Branca prevê poder tornar-se um “tsunami” se Israel não puser fim às suas “ocupações”, está predestinado a agravar-se. Com os esforços de mediação do secretário de Estado John Kerry a falhar espectacularmente perante a intransigência israelita, um recente quase-consenso palestiniano emergiu na procura de conseguir alcançar os direitos elementares palestinianos por fora do quadro sem fim das negociações iniciadas em Oslo há duas décadas.

Efectivamente, os palestinianos estão a encontrar um vasto apoio internacional, inclusive ao nível da população nos EUA e na Europa, para pressionar Israel economicamente, academicamente e por outros meios a respeitar o direito internacional e por fim à sua subjugação dos palestinianos.

O Kuwait foi o primeiro membro da Organization of Islamic Cooperation a cumprir com a decisão da organização, tomada no pico do ataque israelita a Gaza em Agosto, de “impor sanções políticas e econômicas a Israel, e boicotar as empresas que actuam nos colonatos construídos em território palestiniano ocupado.

O ministério do Comércio e da Indústria do Kuwait anunciou que não continuará a negociar com 50 empresas e instituições internacionais que atuam nas colônias, uma medida que vai ter provavelmente repercussões consideráveis na viabilidade do envolvimento empresarial nas colônias.

Cinco governos latino-americanos impuseram várias formas de sanções diplomáticas e comerciais, enquanto o presidente boliviano, Evo Morales, juntou dezenas de importantes intelectuais e figuras públicas da região para aderir ao boicote a Israel. A Alliance of South Africa, dirigida  pelo Congresso Nacional Africano no poder também adoptou explicitamente a BDS.

Os crimes de guerra em Gaza e o fato de a ofensiva ter juntado o apoio de 95% dos israelenses judeus enfraqueceu ainda mais o seu apoio no seio das comunidades judaicas pelo mundo fora. Uma recente sondagem de J Street, um grupo de lobby israelita nos EUA, revelou que 15% dos judeus norte-americanos apoiam a BDS contra Israel. Também se tornou consideravelmente mais tolerável para antigos intelectuais sionistas distinguir Israel do judaísmo ou descrever o sionismo como uma ideologia “xenófoba e de exclusão” baseada numa “mentira, num mito, de que a Palestina era um país sem povo”.

Um jornalista judeu norte-americano esclarecido foi ao ponto de criar a hastag #JSIL, defendendo um Estado Judeu no Levante.

327 sobreviventes judeus do Holocausto e descendentes publicaram um anúncio de meia página no New York Times com o slogan, “Never Again for Anyone!” [nunca mais para ninguém], condenando o “genocídio” permanente contra os palestinianos e apelando ao “total boicote econômico, cultural e acadêmico de Israel”.

O apelo a um embargo militar sobre Israel lançado por seis prêmios Nobel e dezenas de celebridades foi subscrito por dezenas de milhares de pessoas. Amnesty International desenvolveu o seu apelo a um embargo militar a Israel exortando o governo dos EUA a bloquear um fornecimento de combustível destinado ao exército israelense. Oxfam International também emitiu um apelo para o fim da venda de armas a Israel.

Apoiantes de Israel em Hollywood reagiram furiosamente quando os premiados dos Óscar Penelope Cruz, Javier Bardem e Pedro Almodóvar se juntaram a quase 100 outros artistas em Espanha acusando Israel de “genocídio”, com alguns produtores colocando Cruz e Bardem na “lista negra” e mostrando a subida de um novo McCarthismo que utiliza o apoio incondicional a Israel como o melhor teste de lealdade.

Mais recentemente, Viggo Mortensen condenou o “terrorismo de Estado de Israel”.

Tomando em conta apelos do movimento BDS para bloquear operações de navios israelitas nos portos, estivadores e activistas de Oakland, na Califórnia, conseguiram impedir que um navio israelita descarregasse durante vários dias consecutivos.

Particularmente alarmante para Israel é o fato de o boicote ter ido desta vez bem para além da Europa, atingindo a Índia, Turquia, África do Sul e até a economia cercada do território ocupado da Palestina. Pela primeira vez em décadas, os consumidores, empresários e várias municipalidades palestinas juntaram-se a um fluxo de boicotes populares efetivos contra as mercadorias israelenses, apesar das dificuldades práticas colocadas pela ocupação.

O rápido e ininterrupto crescimento da BDS em círculos tradicionais nos últimos dois anos causou um sentido agudo de urgência em Israel para aumentar a sua aposta em esmagar o movimento não-violento pelos direitos humanos.

Este crescimento do movimento BDS começa a mudar as coisas contra o regime de ocupação, colonização e apartheid de Israel entre os tomadores de decisões.

Israel pode vir, em breve, a enfrentar o seu momento sul-africano.

*Omar Barghouti é um activista dos direitos humanos palestiniano e co-fundador do movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) pelos direitos dos palestinianos.

Na foto: Operação Margem Protetora deixou 2 mil civis mortos e milhares de casas demolidas - EFE

Texto publicado originalmente no site Middle East Eye

Tradução: CSP


Colômbia: FARC LIBERTA GENERAL E OUTROS DOIS DETIDOS ESTE FINAL DE SEMANA




Governo escolheu dialogar em meio à guerra, mas chama resposta da guerrilha de atentado à paz, dizem FARC

Vanessa Martina Silva, São Paulo – Opera Mundi

“Não há um dia sem que o governo, o presidente não façam convocatórias à guerra e às forças militares para exterminar os guerrilheiros", diz Calarcá

Desde que a Frente 34 das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) capturou o general Rubén Darío Alzate Mora, com a imediata suspensão unilateral dos diálogos de paz por parte do governo colombiano, a insurgência voltou a insistir na necessidade de um cessar-fogo bilateral, com o qual discorda o presidente Juan Manuel Santos. Em entrevista exclusiva por Skype a Opera Mundi, a partir de Havana, o porta-voz das FARC Marco León Calarcá destaca a importância de, a partir da libertação do militar e de outros dois detidos, prevista para este final de semana, redefinir alguns detalhes nas conversas para que não volte a ocorrer uma ruptura nas negociações desenvolvidas há dois anos em Havana.

Na avaliação de Calarcá, toda a discussão em torno da captura de Alzate é complexa porque, ao não aceitar firmar um cessar-fogo bilateral, “o governo colombiano impôs que dialogássemos em meio ao confronto”, o que significa que, mesmo que em Havana estejamos discutindo os passos para a implantação da paz, os embates entre a guerrilha e o Exército colombiano seguem no país. “Não há um dia sem que o governo, o presidente ou o ministro da Defesa não façam convocatórias à guerra e às forças militares para exterminar os guerrilheiros e as guerrilheiras das FARC”, diz.


Após a detenção de Alzate Mora, o presidente questionou “o compromisso das FARC com a paz”. O guerrilheiro, no entanto, defende que foi uma “ação válida”. "A questão é que o tratamento dado à problemática não é o mesmo. Matar ou aprisionar um guerrilheiro ou prender líderes de movimentos sociais não é problema [para o governo]. Mas, por outro lado, as respostas da guerrilha são consideradas atentados contra a paz”. “Quando nossos camaradas morrem em combate, são dados como baixa e quando morrem militares ou policiais, eles são assassinados”, lamenta o porta-voz das FARC.

As condições nas quais o general responsável pelas operações do Exército em Chocó foi capturado ainda precisam ser esclarecidas. Até mesmo o presidente do país pediu, via Twitter, explicações ao ministro da Defesa a respeito do ocorrido.

A notícia, difundida no domingo (16/10), pegou a todos de surpresa, inclusive a mesa de diálogos em Havana. “Foi a primeira vez que capturamos um general, mas a resposta das motivações para as ações dele é incompreensível”, diz o guerrilheiro.

Alzate, vestido de civil e desarmado, rompeu todos os protocolos de segurança adotados em meio a uma guerra e entrou em área de ação guerrilheira, onde foi capturado. A libertação dele, bem como de uma advogada e um cabo que o acompanhavam, foi a condição utilizada pelo presidente Santos para reativar os diálogos de paz. Os insurgentes, no entanto, consideram que a confiança entre as partes foi rompida nesse caso e, para que as negociações sejam retomadas, é preciso “recompor a confiança entre as partes e gerar mecanismos para que ações como esta não voltem a acontecer”.

A guerrilha tem sustentado que, uma vez que o cessar-fogo bilateral não foi acordado, a mesa em Havana tem que funcionar independentemente dos acontecimentos na Colômbia. “O governo não pode pretender se retirar da mesa e depois voltar para dialogar com as FARC como se não tivesse acontecido nada. É preciso recompor essa confiança, gerar mecanismos e ver o que acontece quando se viola o acordo geral”, ressaltou Calarcá.

Para ele, a decisão de Santos de suspender os diálogos foi “precipitada, arbitrária e violadora dos acordos que tratamos”. A vontade de seguir adiante com o processo de negociação para a paz ficou clara durante a entrevista a Opera Mundi. “Vamos recompor a situação para podermos avançar no processo”, concluiu Calarcá. Essa é também a sinalização dada pelo governo.

Em declarações dadas na semana passada, Santos reconheceu que os Diálogos de Havana avançaram “como nunca antes” para a solução do conflito e afirmou que quer “continuar com as negociações para terminar este absurdo conflito que tem sangrado a Colômbia”. 

Na foto: Calarcá durante viodeochamada com Opera Mundi

*Título PG

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EUA: ONTEM OHIO, HOJE MISSOURI




O incidente de Ferguson teve um papel catalisador para o crescimento das manifestações e tornou-se símbolo da violência contra negros nos Estados Unidos.

Tomaz Paoliello* - Carta Maior

Em junho de 1970 foi lançada nos Estados Unidos a faixa Ohio, de Crosby, Stills, Nash & Young. O grupo entrou em estúdio para gravar a música de Neil Young escrita menos de um mês antes. A pressa era justificada, a canção havia sido concebida como reação ao horror do assassinato de quatro jovens estudantes da Universidade de Kent pelas forças da Guarda Nacional de Ohio, no dia 4 de maio. As cenas de soldados armados com baionetas marchando contra estudantes desarmados, e as imagens dos corpos mortos estendidos no campus se tornaram inspiração para o compositor e símbolos dos movimentos contra a Guerra do Vietnã. 

Ao longo dos últimos meses, uma série de protestos se espalharam pelos Estados Unidos após o assassinato de um jovem negro, Michael Brown, por Darren Wilson, um policial branco. O assassinato é parte de um fenômeno maior de crescente repressão policial violenta voltada a pobres e minorias. De acordo com estatísticas recentes, na cidade de Nova York, onde a população de negros e hispânicos é de aproximadamente 50%, os casos de mortes por violência policial são de aproximadamente 90% para os mesmos grupos. O incidente de Ferguson teve um papel catalisador para o crescimento das manifestações e tornou-se símbolo da continuada violência contra negros no país. O julgamento que inocentou o policial, mais cedo essa semana, reacendeu a onda de protestos que se iniciaram em agosto. As imagens que tomaram os noticiários em todo o mundo são assustadoras: ainda com a lembrança do corpo de Brown estendido na rua, vemos manifestantes defrontados com soldados armados para combate em zonas de guerra. Young nunca pareceu tão atual.

A letra da música do grupo Crosby, Stills, Nash & Young convoca não apenas universitários para as manifestações contra a Guerra no Vietnã. Os músicos acreditavam que seu sucesso poderia ajudar a amplificar a voz dos estudantes  que pediam o final da guerra, movimento que crescia com os que se juntaram para gritar também por liberdade de manifestação e fim da repressão policial armada. De fato, a repercussão do massacre de Kent levou a uma greve de estudantes por todo o país, e enormes protestos tomaram as ruas de grandes cidades como Nova York e Washington. A canção foi banida das grandes rádios norte-americanas por sua menção explícita ao presidente Richard Nixon, mas ganhou grande repercussão nas pequenas rádios universitárias. O chamado a lutar por todos e não apenas por si mesmo foi ouvido, e isso precisa ser feito novamente.

A dupla face da Guarda Nacional

A Guarda Nacional é um corpo particular dentro do aparelho repressivo americano. Organizadas em cada um dos 50 estados, elas servem dupla função – são utilizadas como forças de reserva do exército americano, sob o Departamento de Defesa, e são utilizadas como contingente adicional e emergencial para funções de segurança pública. Apesar das polícias norte-americanas serem, em grande medida, responsabilidade das municipalidades e condados, em eventos de maior magnitude a Guarda Nacional é chamada para apoio às forças locais.

As Guardas são formadas principalmente por voluntários, geralmente trabalhadores em outros empregos, e que servem apenas durante alguns períodos do ano. Apesar de serem utilizadas como forças de segurança pública, o treinamento e organização das guardas é majoritariamente militar. Seus uniformes, equipamento, táticas e procedimento são militarizados. Notícias recentes dão conta de que os homens da Guarda Nacional foram e são treinados pelos militares ou por empresas militares de segurança privada, e atuam nas guerras ao lado das forças regulares.

Durante a guerra do Vietnã a repressão proveniente das Guardas Nacionais aparecia com uma face adicional de controvérsia – no período, alistar-se na Guarda foi uma maneira de driblar o alistamento em unidades que se envolveriam em missões de combate. A maioria dos membros da Guarda Nacional nem sairia do território americano, e os que de fato foram enviados ao Vietnã ou ao Camboja raramente estiveram no front. As chamadas “unidades champanhe” foram formadas por filhos das famílias ricas e pessoas com conexões no governo.  A Guarda que havia se tornado símbolo da desigualdade de classe na sociedade americana tornou-se também a linha de frente da repressão aos movimentos sociais anti-guerra nos Estados Unidos.

Se a Guarda Nacional teve papel menor no palco da Guerra do Vietnã, tornou-se uma das principais fornecedoras de homens nos conflitos recentes no Afeganistão e no Iraque. Com o fim da conscrição, em 1973, uma das vitórias dos manifestantes anti-Vietnã, os Estados Unidos passaram a depender exclusivamente de voluntários e contratados privados. Dessa forma, a Guarda Nacional se tornou um dos maiores contingentes de soldados dos EUA na Guerra ao Terror, compondo quase metade do total de forças combatentes no Iraque e no Afeganistão. Esses homens, treinados para operações de contraterrorismo e contra-insurgência, são os mesmos que operam como “defensores da ordem” em protestos nos Estados Unidos. A ambiguidade de sua natureza se revela como um fenômeno mais generalizado de adoção de procedimentos militares para as forças de segurança pública. O massacre de Kent nos mostra que o fenômeno não é novo, mas a repressão às manifestações em Ferguson chama atenção ao importante crescimento desse tipo de solução para a segurança pública.

Circunstâncias diferentes, remédios iguais

O renovado vigor das manifestações em Ferguson, Missouri, como consequência do julgamento do policial responsável pela morte de Michael Brown, levou o atual governador do estado de Missouri, Jay Nixon, a convocar a Guarda Nacional para auxiliar o controle dos protestos. Essa velha conhecida dos movimentos sociais norte-americanos veio juntar-se a um contingente policial já amplamente militarizado, treinado por de empresas militares de segurança privada, e com equipamento excedente comprado das forças armadas. Em agosto, uma série de reportagens demonstrou espanto com transformação pela qual havia passado a polícia, cada vez mais parecida com tropas militares. Com a convocação da Guarda Nacional, a repressão policial militarizada se amplia em escala e em contingente.

Numa
sinistra coincidência histórica, um novo Nixon repete textualmente a denúncia de Neil Young. As imagens que chegam de Ferguson são dos “soldados de chumbo de Nixon” marchando contra manifestantes desarmados. As baionetas das imagens dos protestos em Kent deram lugar a moderno equipamento de combate, incluindo rifles e carros blindados, que lembram mais os cenários dos conflitos no Afeganistão e no Iraque. Ademais, o amplo processo de crescimento da repressão social por forças de segurança pública se dá dentro de um perigoso processo de despolitização, no qual pesam a eficiência e a capacidade de controle, e pouco importam direitos e liberdades. As palavras do governador sobre a necessidade de proteger “as pessoas e a propriedade” são de um cinismo avassalador ao constatarmos que as pessoas que devem ser protegidas evidentemente não são os manifestantes. É importante lembrar que  das quatro mortes em Kent pelas mãos da Guarda Nacional, duas foram de jovens que não faziam parte dos protestos.

A emoção do choro de David Crosby ao final da gravação de Ohio parece não ter se diluído com o tempo. Seu grito de “quantos mais?” parece ainda ecoar em cada episódio de violência policial. Os processos de militarização das polícias e da gestão urbana nos lembrarão por muito tempo dos tristes versos de Neil Young. Seja nos Estados Unidos, seja no Brasil, a luta é para que as vítimas, principalmente negros e pobres, não se tornem invisíveis. Nas palavras do próprio Young “como é que você pode fugir sabendo disso”?

*Professor de Relações Internacionais da PUC-SP


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O FUTURO DO PLANETA E A RESPONSABILIDADE DOS GOVERNOS



Roberto Savio* - Envolverde/IPS

Roma, Itália, novembro/2014 – Depois de alguns dias durante os quais todos celebraram o acordo histórico entre Estados Unidos e China sobre a redução das emissões de CO2, assinado no dia 12 deste mês, uma ducha muito fria chegou da Índia.

O ministro indiano de Energia, Piyush Goyal, declarou: “Os imperativos de desenvolvimento da Índia não podem ser sacrificados no altar de uma potencial mudança climática futura que demorará muitos anos. O Ocidente terá que reconhecer que nós enfrentamos as necessidades da pobreza”.

Trata-se de um duro golpe para o presidente norte-americano, Barack Obama, que após a assinatura de Pequim no acordo sobre redução de emissões de CO2 (dióxido de carbono) voltou para casa alardeando seu sucesso em estabelecer a política na região asiática.

Porém, mais importante ainda é que a posição de Nova Délhi fornece abundante munição ao Congresso norte-americano, controlado pela oposição republicana, que argumenta que os Estados Unidos não podem participar do controle climático, a menos que outros grandes contaminadores assumam compromissos semelhantes.

Este argumento se referia principalmente à China, que se recusava a qualquer tipo de compromisso até que seu presidente, Xi Jinping, para surpresa de todos, assinou o acordo com Obama.

A Índia é um país contaminador importante. Não chega aos níveis da China, que soma 9.900 toneladas métricas de CO2, contra 6.826 dos Estados Unidos, mas aumenta suas emissões rapidamente.

Goyal anunciou que o uso de carvão nacional na Índia passará dos 565 milhões de toneladas registrados no ano passado para mais de um bilhão de toneladas em 2019, e está entregando concessões para extração de carvão em grande velocidade.

Entretanto, o novo primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, proclamou que realizará um amplo programa de desenvolvimento de fontes renováveis de energia.

Há um aparente paradoxo no fato de muitos cientistas que integram o Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre a Mudança Climática (IPCC) serem indianos, como seu diretor, Rajendra K. Pachauri, que também é diretor-executivo do Instituto de Recursos Energéticos da Índia.

O último informe do IPCC é muito mais dramático do que os anteriores: afirma de maneira concludente que a mudança climática se deve à ação do homem, e expõe uma extensa revisão sobre os danos que afetarão o setor agrícola, sobretudo em países pobres como a Índia. O documento prevê que ao menos 37 milhões de pessoas serão deslocadas pela elevação do nível dos mares.

Metade dos agricultores indianos depende da água das geleiras do Himalaia, que estão derretendo pelo aquecimento global. As cidades da Índia são as mais contaminadas do mundo, e várias vezes ao ano se supera o pior dia de contaminação na China.

Porém, o mais preocupante é que os governos estão reagindo com extrema lentidão. Seria necessário um grande esforço, que não figura na agenda climática, para impedir que a temperatura global aumente mais do que dois graus centígrados, para depois começar a diminuir as emissões até 2020.

Estima-se que em 2014 as emissões serão as mais altas da história e chegarão a 40 bilhões toneladas, contra 32 bilhões de toneladas em 2010.

Existe consenso de que, para limitar o aquecimento do planeta a não mais do que dois graus centígrados acima do nível pré-industrial, os governos deveriam limitar as emissões adicionais procedentes de combustíveis fósseis a não mais de um trilhão de toneladas de dióxido de carbono.

Mas, segundo a investigação do IPCC, as companhias de energia já programaram reservas de carbono e petróleo que igualam várias vezes essa quantidade e estão investindo cerca de US$ 600 bilhões por ano em novas explorações.

Em contraste, gasta-se menos de US$ 400 bilhões por ano para reduzir as emissões. Essa quantidade é menor do que a renda de uma única corporação petroleira norte-americana, a ExxonMobil.

A última reunião do Grupo dos 20 (G20) países ricos e emergentes, realizada na cidade australiana de Brisbane, nos dias 15 e 16 deste mês, deu ao clima uma atenção inesperada.

Mas as nações do G20 gastam US$ 88 bilhões anuais em subsídios para a exploração de hidrocarbonos, que é o dobro do que investem para esse fim as 20 empresas privadas mais importantes do planeta.

Outro bom exemplo da falta de coerência dos governos ocidentais é que prometeram US$ 10 bilhões para o Fundo Verde para o Clima, cuja tarefa é apoiar os países do Sul em desenvolvimento na mitigação e adaptação à mudança climática.

Essa quantia é apenas dois terços do previsto para a criação do Fundo em 1999, que ainda está longe de ser operacional.

E agora a discussão passa para a 20ª Conferência das Partes (COP 20) da Convenção Marco das Nações Unidas sobre a Mudança Climática, que acontecerá nos 12 primeiros dias de dezembro em Lima, onde é previsível que, novamente, os governos serão incapazes de conseguir um acordo satisfatório sobre os problemas climáticos.

Se isso acontecer, diminuirá ainda mais o tempo disponível para a salvação do planeta.

Além da anunciada resistência por parte do Congresso norte-americano, se prevê a oposição de várias nações dependentes dos combustíveis fósseis, como Rússia, Austrália, Índia, Venezuela, Irã, Arábia Saudita e os países do Golfo.

Essas atitudes demonstram a ausência de coerência e de responsabilidade por parte dos governos.

E, quanto à opinião pública, se for feito um referendo perguntando à sociedade se prefere pagar US$ 800 bilhões a menos de impostos, retirando os subsídios contra a contaminação, há pouquíssimas dúvidas de que sairia ganhadora a redução tributária.

O mesmo resultado se obteria se lhe fosse perguntado se prefere gastar esses US$ 800 bilhões em energia limpa ou deixar as coisas como estão.

Uma agravante é que as corporações energéticas e os governos têm uma relação incestuosa, que está fora da vista do público.

Tudo isso prova que, quando estão em jogo a sobrevivência das ilhas, das costas, da agricultura e dos pobres, os governos não são capazes, ou não desejam, ver além de sua existência imediata.

A conclusão é que nossa geração precisa urgente e desesperadamente de uma governança global que seja capaz de enfrentar esse catastrófico tipo de globalização. Envolverde/IPS

* Roberto Savio é fundador e presidente emérito da agência de notícias Inter Press Service (IPS) e editor do boletim Other News.

(IPS) 

Portugal - Costa PS: Nem endividamento nem empobrecimento, o combate é na Europa



Congresso do Partido Socialista

O secretário-geral do PS, António Costa, afirmou hoje que, se os socialistas chegarem ao Governo, não haverá «nem endividamento nem empobrecimento», num discurso em que defendeu que a Europa é agora o novo espaço do combate democrático.

António Costa falava no XX Congresso Nacional do PS, numa parte da sua longa intervenção em que abordou a questão da «asfixia» do peso da dívida em Portugal e, em relação à qual, transferiu parte significativa das soluções para o terreno da União Europeia.

«A Europa é o novo espaço do combate político democrático. Tal como nos batemos em cada freguesia, em cada município, ou a nível nacional, temos também de nos bater na Europa por uma nova política e, para isso, é necessário um novo Governo em Portugal», declarou o líder socialista, que no início da sua intervenção se referiu cordialmente ao seu antecessor, António José Seguro.

No ponto dedicado à resolução do peso da dívida de Portugal, o secretário-geral do PS reiterou a defesa de um modelo que equilibre o respeito pelos compromissos europeus, o respeito pelos compromissos nacionais em termos de Estado social e, como terceiro pilar, a necessidade de investimento.

«Isto implica um novo equilíbrio, que passa por uma nova leitura do Tratado [Orçamental da União Europeia], passa por uma discussão europeia sobre a questão da dívida e, finalmente, passa também por um novo programa de investimento que tem de existir na Europa», disse, já depois de ter elogiado a ação do presidente da Comissão Europeia, Jean Claude Juncker.

Apesar de ter qualificado como «insuficiente» e «incerto» o chamado «plano Juncker», Costa referiu que mesmo assim vai no bom sentido, destacando particularmente a possibilidade de investimentos em áreas económicas do futuro (como o digital) deixarem de contar para a contabilização do défice em cada Estado-membro.

«Há um reconhecimento que não vencemos a crise sem investimento», sustentou o secretário-geral do PS, numa alusão à alegada nova política europeia pós Durão Barroso.

No seu discurso, António Costa referiu que há um consenso geral de que o principal problema de Portugal reside na falta de competitividade da sua economia.

Mas, nesta questão da competitividade, Costa traçou uma diferença de fundo entre os socialistas e maioria PSD/CDS.

De acordo com a lógica do secretário-geral do PS, as forças do Governo entendem que a competitividade se alcança por medidas de «redução dos salários», através de «um modelo de empobrecimento», enquanto, segundo Costa, os socialistas querem um modelo alternativo «assente nas qualificações, na modernização do Estado e na coesão social».

«A questão de fundo sobre o debate de como vencer a crise é: Ou empobrecer ou qualificar-nos», advogou.

Depois de estabelecer essa diferença com a maioria PSD/CDS, o líder do PS também se demarcou de outros modelos económicos expansionistas e estatais defendidos por setores à esquerda do seu partido, deixando o aviso «com o PS, nem empobrecimento nem endividamento».

«Queremos ir à raiz dos problemas e ter uma visão de futuro. Uma sociedade decente assenta na dignidade da pessoa humana», declarou, numa nota humanista cristã, onde até citou o papa Francisco.

Tal como em anteriores ocasiões, António Costa, a par das críticas ao Governo, afirmou que, se os socialistas vencerem as próximas eleições, mesmo com maioria absoluta, não dispensarão os consensos.

«O país precisa de uma concertação estratégica que envolva todos os parceiros sociais e de um acordo político de fundo aberto a todos os partidos», salientou.

TSF - foto Lusa / Mário Cruz

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