Rui Peralta, Luanda
I - O Chipre é,
neste momento exacto em que estou a escrever, um país vítima da violência do
“Resgate Interno” esse instrumento da Santa-Inquisição financeira, aplicado aos
países que sofrem do pecado da gula. Todo o sistema de pagamentos foi afectado,
nesse pequeno país com cerca de um milhão de habitantes, as pequenas empresas
são empurradas para becos sem saída, salários e pensões deixaram-se de pagar, o
poder de compra é zero e a população foi vítima de um empobrecimento brusco e
sem aviso.
Este mecanismo
inquisitório, que foi aplicado ao Banco do Chipre, o “Resgate Interno”, não
fosse a tragédia humana que comporta e seria um bom tema para um thriller,
baseado numa oculta instituição (misto de Maçonaria, Rosa-Cruz e Illuminatti)
que se prepararia para dar um golpe de estado, em simultâneo, nas principais
capitais da U.E e dos USA. A coisa seria iniciada através da confiscação dos
depósitos bancários. Uma bela manhã de Primavera, os cidadãos da U.E. e dos USA
quando fossem aos bancos, ficavam a saber que os seus depósitos tinham sido
confiscados.
Esta figura do
confisco de depósitos bancários já foi contemplada em vários países, antes do
genocídio financeiro cipriota, convém esclarecer e também é bom não esquecer
que os actores (para usar aqui uma linguagem “sociológica”, daqueles sociólogos
que ficaram especados de deslumbre, com a teoria dos papeis sociais e dos
actores sociais) responsáveis pela crise bancária no Chipre, são os mesmos que
costuraram as medidas de austeridade impostas na U.E.
Assim sendo, os
cidadãos da Zona Euro (a Eurolândia) viveriam com um cenário cipriota, no fundo
do palco, para o resto da vida. Seria o modelo cipriota a prevalecer ad
eternum, algures no azul imenso da bandeira europeia. E os miúdos nas escolas
(só privadas, porque as publicas serão transformadas em ruinas para os animais
domésticos abandonados estabelecerem os seus habitats) aprenderiam a lição
cipriota.
Mas não se
preocupem os cidadãos, Essa coisa dos depósitos não é para todos. Haverá um
grupo de “depositantes atingidos” que constituirão os novíssimos
“cristãos-novos” da nova fé inquisitorial do “Resgate Interno” que nunca os
deixará de ter debaixo do seu omnipresente olho. Os senhores do IIF explicam
melhor: "os investidores deverão ter em consideração o que se passa no
Chipre (…) como um reflexo de como serão tratadas as futuras tensões".
II - Assistimos e
assistiremos, afinal, a um intenso processo de “limpeza financeira” em que
alguns dos bancos, demasiado grandes para encolherem ou para falirem, ocupam
todo o espaço bancário, eliminando do cenário as instituições financeiras mais
pequenas. É a centralização e a concentração de poder, o Leviatã da Banca.
Os resgastes
internos não são fenómenos recentes. Em 1997, na Nova Zelândia, foi considerado
um “haircut” (um plano de cortes) e tanto no Reino Unido, como nos USA, existem
disposições relativas ao confisco de depósitos bancários e procedimentos
explícitos que transformam os depósitos de um banco falido em capital (ver http://www.fdic.gov/about/srac/2012/gsifi.pdf).
Por outras palavras, o dinheiro confiscado das contas bancárias seria usado
para cumprir com obrigações financeiras do banco falido e os detentores desses
depósitos, seriam transformados em accionistas de uma instituição financeira
falida, a título de compensação.
O confisco das
poupanças é, assim, executado como se fosse uma compensação em termos de
capital. Pura ilusão! O que existe é a aplicação de um processo de confisco de
depósitos bancários, selectivamente processado, com o objectivo de cobrar a
divida, enquanto a instituição morre isenta de pecados. O Federal Deposit
Insurance Corporation (FDIC), financiado por prémios pagos pela banca privada,
emitiu uma directiva, que mais não é do que um “processo de solução” (ver http://www.ey.com/Publication/vwLUAssets/Recovery_and_resolution_planning/$FILE/Recovery_and_resolution_planning.pdf
/),
O curioso é que não
existe excepção para os chamados depósitos garantidos, nos USA, aqueles
depósitos inferiores a duzentos e cinquenta mil USD. Aliás esta questão dos
depósitos garantidos, neste documento, surge apenas relacionado com a
legislação do Reino Unido, que a directiva considera desadequada. A lógica da
FDIC é simples: como os depositantes recebem uma compensação (falsa, como já
vimos), não tem direito ao seguro de depósito.
III - Um
interessante documento do governo canadiano, deste ano, intitulado " Empregos,
crescimento e prosperidade a longo prazo: Plano de acção económica 2013 "
(ver http://www.budget.gc.ca/2013/doc/plan/budget2013-eng.pdf),
apresentado pelo ministro das Finanças Jim Flaherty, no passado mês de Março,
inicialmente englobado numa proposta pré-orçamento, declara, de forma aberta e
franca, o confisco de depósitos bancários, como meio de salvação para os
bancos. Numa curta secção do relatório, com o sugestivo título "Quadro de
Gestão de Riscos para Bancos Internos Sistemicamente Importantes" o
governo canadiano propõe a implementação de um resgaste interno dos bancos que
considera importantes.
Este documento
propõe que na improvável eventualidade de um banco importante esgotar o seu
capital, possa ser recapitalizado e viabilizado através da rápida conversão de
determinados passivos bancários em capital regulamentar. Ora, os “determinados
passivos bancários” pertencem ao dinheiro que devem aos seus clientes, ou seja
aos seus depositantes, vítimas de uma instituição bancária em falência. Desta
forma o governo limpa as mãos e não fornecerá qualquer financiamento para
compensação dos depositantes.
Os depositantes
ficam obrigados a abdicar das suas poupanças e o dinheiro confiscado será
utilizado para o banco satisfazer as suas obrigações contraídas para com as
instituições financeiras de créditos mais “gordas”. Cria-se, assim, um
mecanismo que possibilita aos grandes bancos, enquanto credores, sobreporem-se
a bancos menores, acelerando o colapso destes últimos.
Esta iniciativa, se
for aprovada na Camara dos Comuns (o que é o mais certo, por dois motivos:1. O
documento faz parte do pacote orçamental; 2. O governo conservador tem uma
confortável maioria parlamentar) possibilita a aplicação dos procedimentos do
Resgaste Interno. Assim, o cenário será que os cinco grandes bancos do Canadá
(Royal Bank, TD Canada Trust, Scotiabank, o Banco de Montreal e o CIBC, todos
eles operando, também, nos USA) consolidarão a sua posição á custa dos bancos
mais pequenos e das instituições financeiras regionais ou provinciais. Ou seja,
assistiremos, a medio prazo, a uma maior concentração do capital bancário
canadiano e ao Canadá a entrar no Leviatã financeiro.
A importante rede
canadiana, formada por mais de trezentas cooperativas de crédito e instituições
cooperativas e mutualistas, a nível provincial (sendo as principais a rede
Desjardins, do Quebeque, a VANCITY e Coastal Capital Savings, na Columbia
Britânica, a SERVUS, de Alberta, a Meridian, do Ontário, mais as caixas
populares de Ontário, afiliadas da Desjardins) serão passiveis de serem objecto
de operações de Resgaste Interno. Neste contexto, a União Central de Credito do
Canadá, formada por mais de trezentas caixas populares e uniões de crédito e
que com as instituições acima mencionadas, são alternativas aos cinco bancos
maiores, ficarão irremediavelmente enfraquecidas e o seu futuro, provavelmente,
comprometido e de curtos horizontes.
IV - Os quadros em
que se desenvolvem os Resgates Internos são globais, consistentes com as
reformas em curso na economia global e assentes em padrões internacionais. O
plano proposto para o Canadá, por exemplo, é consistente com o modelo em curso
nos USA e com o modelo aplicado na U.E. Isto porque a padronização é discutida
e elaborada nas reuniões internacionais entre os governadores dos bancos
centrais e os ministros das finanças.
O organismo
regulador destes mecanismos traçados nos meetings internacionais entre os
principais responsáveis das finanças mundiais é o Financial Stability Board
(FSB), permanentemente envolvido nestas consultas multilaterais e que coordena
os procedimentos de resgate interno, em ligação com as autoridades financeiras
nacionais e os órgãos internacionais (FMI, Banco Mundial, BIS, etc.). A sede do
FSB é em Basileia e o seu actual presidente é o governador do Banco do Canadá,
Mark Carney, que durante o próximo mês, transitará para o Banco de Inglaterra,
por nomeação do governo de Sua Majestade.
Carney, enquanto
governador do Banco do Canadá, desempenhou um papel fundamental no projecto,
disfarçado e encoberto, de Resgate Interno dos bancos canadianos. Antes da sua
carreira no Banco do Canadá, foi funcionário da Goldman Sachs, onde desempenhou
funções na implementação dos resgates externos nos USA (os resgates externos,
ou bail-out, são uma injecção de liquidez aplicada num banco falido ou em
processo de falência. A injecção é fornecida, geralmente, pelo governo que
assume o controlo do banco e tem como objectivo a liquidação dos compromissos
de curto prazo, ou seja, o governo atribui, através de pacotes destinado a
salvar as instituições financeiras em situação critica, uma parte das receitas
publicas, canalizando o dinheiro dos cofres públicos para o sector privado).
Os USA, por exemplo
(para voltarmos ás actividades do nosso amigo Carney, quando era funcionário da
Goldman Sachs), canalizaram, entre 2008 e 2009, cerca de mil e quarenta e cinco
milhões de milhões de USD, para instituições financeiras de Wall Street. Estes
resgates esternos são, geralmente,
considerados uma categoria de despesas governamentais e exigem que medidas de
austeridade, sejam implementadas, ou no mínimo, medidas de contenção nas
despesas publicas.
Em paralelo com os
enormes aumentos das despesas militares, os resgates externos foram financiados
através de cortes em programas sociais como o Medicare (um programa nacional de
seguro social, administrado pelo governo federal desde 1965, que garante o
acesso ao seguro de saúde aos norte-americanos maiores de 65 anos e pessoas
mais novas com incapacidade, assim como os que sofrem de determinadas doenças),
o Medicaid (programa de saúde para pessoas e famílias com rendimentos e
recursos baixos) e a Segurança Social.
Como vimos, o
resgate interno, contrariamente ao externo (financiado pelo erário publico),
exige o confisco dos depósitos bancários e é implementado sem a utilização dos
fundos públicos, sendo o mecanismo regulador instituído pelo banco central.
Ora, no início do
primeiro mandato de Obama, em Janeiro de 2009, a administração
norte-americana anunciou um resgate interno de 750 mil milhões de USD (que se
for somada aos 700 mil milhões de USD do resgate externo, efectuado pela ultima
administração Bush, ao abrigo do Troubled Assets Relief Program, o TARP,
totaliza a quantia de mil e quarenta e cinco milhões de milhões de USD,
financiados pelo Tesouro dos USA). Sendo as verbas da defesa, no ano
fiscal de 2010, na ordem dos 739 mil milhões de USD, se adicionarmos estas
verbas ao conjunto dos resgates externos aos bancos, atingiremos a belíssima
quantia de dois mil, cento e oitenta e nove mil milhões de USD, devorando,
prácticamente, o total das receitas federais que nesse ano fiscal de 2010
ascenderam aos dois mil trezentos e oitenta e um mil milhões de USD. Eis o
trabalho no qual o nosso amigo Carney afincadamente participou.
V - O problema é
que os resgates externos já não funcionam.
Obama iniciou o segundo mandato com os cofres vazios e as medidas de
austeridade chegaram a um beco fechado. Agora, o que está a dar são os resgates
internos.
Nestas primeiras
fases há que acenar com a banana ao macaco, pelo que os rendimentos médios e
baixos, invariavelmente endividados, não serão o alvo principal. A apropriação
dos depósitos bancários visará os rendimentos acima da média e os mais altos,
que geralmente (se não forem uns estroinas incorrigiveis) costumam representar
depósitos bancários bem recheados. Por aí não haverá grande problema, pois só
perde quem tem. Mas o segundo alvo será constituído pelos depósitos das
pequenas e médias empresas e aí já a coisa começa a mexer no bolso roto, se
considerarmos o peso que as PME têm na economia mundial e as dificuldades que
passam nos tempos que correm.
Esta transição de
resgates é consequência da deslocação, em curso, do centro financeiro e dos
períodos de impasse criados pelo rumo, ainda incerto, da deslocação. Este é um
período em que os mecanismos de circulação das elites funcionam de forma
imprevista e aleatória, pelo que as elites que adquirem controlo financeiro,
tentam, desesperadamente, corrigir esses mecanismos, eliminando os
competidores, consolidando o seu controlo sobre a banca, centralizando-a e
assim exercerem um controlo mais efectivo sobre a economia e o Estado (em particular
instituições pilares do Estado, como as forças armadas e serviços de segurança
e inteligência).
É evidente que esta
fase crítica de transição (que gera um cenário catastrófico de crise sistémica
global, mas que não passa disso mesmo, de um cenário) é de alto risco. Mesmo
com a regulamentação e aplicação seletiva dos resgates internos a um número
limitado de instituições financeiras falidas, o simples facto de anunciar este
procedimento pode provocar uma corrida, desenfreada e generalizada, aos bancos
e nesse contexto nenhum banco será seguro. Poderá, inclusive, interromper o
processo de pagamentos, dificultará o pagamento de salários e o poder de compra
será reduzido (e sequencialmente revisto em queda permanente). As empresas
sentirão sérias dificuldades na renovação de equipamentos e as PME serão
arrastadas para uma espiral de falências, muito mais rodopiante do que o
panorama actual.
A aplicação de um
resgate financeiro na U.E. ou nos USA representa uma nova fase do processo de
deslocação, mas não é um processo decisivo para a localização (o assentamento)
do centro financeiro ou para o redimensionamento e reconfiguração das
periferias. Estas serão beneficiadas por um período de ilusão de crescimento,
necessário ao financiamento do centro, efectuado através das exportações de
capitais e ao refinanciamento necessário para a sua reconfiguração. O
deslocamento do centro financeiro acarreta custos, sendo esses custos
absorvidos e compensados pelas periferias, que em bicos de pés anseiam por se
aproximarem do centro e determinarem decisões.
Algumas regiões
periféricas chegam ao ponto de se consideraram futuros centros, ilusão criada
pelo facto de serem essas as zonas periféricas que mais custeiam os custos da
deslocação, comprometendo irremediavelmente o seu futuro. Nesse aspecto o
resgate interno nos USA e na U.E. vai ter repercussões imprevistas, pois as
contas bancárias de cidadãos de determinadas regiões periféricas em bancos
europeus e norte-americanos são elevadas, o que provavelmente representará um
financiamento extra, retirando aos países periféricos poupanças de particulares
que poderiam constituir importantes reservas para o seu desenvolvimento, se
devidamente aplicadas.
Portanto cidadãos resgatados, não vos preocupais. Afinal vocês são o Homem Novo
(em folha! Espoliados, desapossados, desempregados e ultrajados, mas sempre com
alguma utilidade). E o Homem Novo está sempre presente nos velhos amanhãs que
assobiam (com a vantagem de, a breve trecho, sermos todos cipriotas).
Fontes