domingo, 18 de agosto de 2013

SUICÍDIOS, A FACE RADICAL DA “AUSTERIDADE”

 


Na Europa e EUA, série de estatísticas aponta nítida relação entre ataque aos direitos sociais e aumento do número de pessoas que preferem morrer
 
Juan Gelman*, Carta Maior – Outras Palavras
 
Sócrates, Platão, Plotino e muitos outros filósofos analisaram o tema do suicídio ao longo dos séculos. A maioria o condena, como o judaísmo e o cristianismo.
 
Para Santo Augustinho “o que mata a si mesmo é um homicida”. Os epicúreos opinaram que a falta de sofrimento é o bem supremo e justificaram o ato quando a existência, em vez de alegrar, se converte em uma causa de aflição.
 
Os estoicos pensavam que era um tema grave a tratar com circunspecção e, em efeito, é muito difícil desentranhar as razões pelas quais alguém se tira a vida. Nunca é uma só. Cabe dizer que as circunstâncias exteriores exercem um papel maior ou menor, algumas vezes decisivo.
 
No dia 1° de outubro se comemora o dia europeu contra a depressão. Entre os habitantes do Velho Continente, “imersos nesta situação de crise econômica e a prevalência do estresse por trabalho, os problemas da depressão e os suicídios estão experimentando um notável aumento”, afirmou a Associação Europeia sobre a Depressão. Por sua vez, a Organização Mundial da Saúde (OMS) “alertou que o suicídio… constitui uma das três principais causas de morte entre as pessoas de 15 a 44 de idade” (www.infocop.es, 11012). O suicídio de pessoas despejadas de suas casas porque não podem pagar a hipoteca é um fato notório na Espanha.
 
O fenômeno não se limita a Europa. Os centros de controle e prevenção de enfermidades dos EUA (CDC, na sigla em inglês), organismos oficiais, informaram recentemente que as mortes por suicido superaram em número as causadas por acidentes de trânsito. “As taxas de suicídio entre os estadunidenses se elevaram desde 1999” (www.cdc.gov/2513). Os CDC levaram a cabo uma investigação entre adultos de 35 a 64 de idade e comprovaram que essas taxas haviam aumentado em 28%, especialmente entre brancos não hispanos e sobretudo em 39 dos 50 estados do país. O maior incremento foi observado nas pessoas de 50 a 54 (48%) e de 55 a 59 (49%), idades nas quais aqueles que perderam o trabalho pela crise econômica praticamente não encontrarão outro.
 
Não se trata apenas dos adultos. David Stuckler, investigador de mais alto escalão em Oxford, e o epidemiólogo Sanjai Basu, da Universidade de Standford, descobriram que 750 mil jovens (em sua maioria sem trabalho) haviam se voltado ao álcool e que mais de cinco milhões de estadunidenses perderam o acesso à saúde pública no período mais duro da recessão porque passaram a integrar as filas dos desempregados. A taxa de suicídios se elevou abruptamente no lapso 2007/2010, destacaram em um estudo publicado em maio (www.nytimes, 13-5-13). Um caso particular é o estado da Virginia, onde foram registradas as taxas de suicídios mais altas dos últimos 13 anos: é três vezes mais provável que os virginianos morram por suicídio que por homicídio (capitalnews.reu.edu, 8-5-13).
 
Stuckler e Basu encerram seu relatório com a seguinte conclusão: “O que aprendemos é que o perigo real para a saúde pública não é a recessão per se, mas a austeridade”, ou seja, as medidas impostas pela chamada Troika – o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu – para enfrentar a crise. Se presenciam reuniões dos chefes de Estado europeus com representantes da Troika nas quais estes últimos ditam as políticas econômicas que devem seguir os países da União Europeia. Nunca foi tão descarada a inversão dos termos “a política dirige a economia”, hoje substituídos por “a economia dirige a política”.
 
A correlação suicídios/austeridade é clara não apenas no Velho Continente e nos EUA. Investigadores australianos determinaram que a taxa de suicídios aumenta em seu país sob os governos conservadores (news.bbc.co.uk, 18-9-12). Quando as políticas de austeridade começaram a devastar a Grécia, dita taxa cresceu 18%: apenas em Atenas se elevou 25%. Antes deste flagelo, a Grécia tinha a taxa de suicídios mais baixa da União Europeia (www.euronews.com, 5-4-12).
 
A Islândia é o exemplo contrário. Em 2008 padeceu a crise bancária mais grave de sua história: três dos bancos mais importantes se declararam em bancarrota, o desemprego subiu para as nuvens e se desvalorizou a moeda nacional. Apesar disso, Reijawick não cortou o orçamento de seus programas sociais nem se dobrou à austeridade e, mediante acordos diversos, saiu da crise. Não se registrou um aumento significativo da taxa de suicídios durante o colapso financeiro (www.altenet.org, 3-8-13).
 
Como disse o Nobel de Economia Paul Krugmam: “A crise que estamos atravessando é fundamentalmente gratuita: não é necessário sofrer tanto nem destruir a vida de tanta gente”.
 
*Poeta, escritor e jornalista argentino. Chefe de Redação da IPS entre 1974 e 1976. Desde 1976 reside no México, onde chegou exilado pela ditadura militar que lhe arrancou seu filho e sua nora grávida. Entre sua vasta obra se destacam seus livros: Os poemas de Sidney West (1969), Fábulas (1971), Hechos y relaciones (1980), Citas y comentarios (1982), La junta luz (1985), Composiciones (1986), Interrupciones I e II (1988) e Salarios del impío (1993).
 

RETRATOS DE UMA EUROPA ESVAZIADA

 


Queda absoluta da população alemã e seu envelhecimento rápido expõem desmonte do estado de bem-estar social e rejeição a estrangeiros
 
Gabriela Leite – Outras Palavras, em Blog da Redação
 
E se o Velho Continente estiver envelhecendo ainda mais? Ao que parece, isso está acontecendo. Pesquisas recentes apontam que a população da Alemanha, país mais populoso do continente, diminui progressivamente. Em 50 anos, deve chegar a 66 milhões — 19% menor do que a atual, de 81 milhões. O país, que é um dos mais ricos, além de líder político da União Europeia, não é o único. A Letônia e a Bulgária, por exemplo, estão em situação até pior. Mas, em meio à crise, estes não têm como fazer nada para reverter o processo — ao contrário dos prósperos alemães, que gastam 264 bilhões de euros por ano em subsídios às famílias.
 
Porém, estas medidas não têm sido tão eficientes quanto deveriam. O processo de diminuição da população, segundo artigo do New York Times, começou nos anos 1970, no lado capitalista do país, quando a taxa de natalidade caiu para 1,4 — número que se mantém. Demógrafos calculam que para uma população manter-se estável, esta taxa tem que ser de 2,1 filhos por casal. Subsidiar as famílias parece não estar sendo suficiente por questões mais complicadas: os valores e costumes alemães, como sua histórica falta de hospitalidade com estrangeiros.
 
Além de estar diminuindo, como já se sabe, a população do continente também fica mais velha. Hoje, na União Europeia, há cerca de quatro trabalhadores para cada aposentado — e em 2060, calcula-se, a proporção será de dois para cada um. Este fator, combinado com a redução do número de filhos por famílias, gera um grande problema para o mercado de trabalho alemão.
 
Algumas das medidas que certos “especialistas” sugerem vão em sentido contrário às políticas de bem estar social, mas já estão começando a ser implementadas. No momento, o governo alemão aumenta a idade de aposentadoria de 65 para 67 anos. Outra solução muito malvista na sociedade alemã, mas que os partidários das políticas atuais insistem em adotar, é a tentativa de fazer com que as mulheres que têm filhos continuem trabalhando. Para tentar reduzir o afastamento do trabalho, o governo aprovou lei que garante creche para todas as crianças acima de 12 meses de idade. Não se trata propriamente, no caso alemão, de uma vantagem. Há décadas, os salários dignos pagos às trabalhadoras, permitiam longos anos de dedicação às crianças.
 
Outra solução que seria de grande ajuda para resolver os problemas de falta de trabalhadores é uma maior abertura para estrangeiros. Apesar de ter uma história de difícil integração de populações vindas de fora, como os turcos, empresas e autoridades já estão estudando como fazer o país tornar-se mais hospitaleiro para os “melhores” vizinhos. A ideia principal é trazer trabalhadores de países europeus que sofrem com o desemprego, mas pesquisas já mostram que mais da metade dos espanhóis e gregos que vão morar na Alemanha, voltam em menos de um ano. Ao que parece, a solução que deveria funcionar a longo prazo — e não tiraria os direitos já conquistados dos alemães — é pensar em abrir ainda mais as fronteiras europeias, para o mundo.
 

Portugal: O IMPRESSIONANTE CONTORCIONISMO ECONÓMICO

 

Ricardo Araújo Pereira – Visão, opinião
 
No que diz respeito à economia, quando fazemos a travessia do deserto não vemos miragens, vemos viragens

A 6 de Janeiro de 2012, Passos Coelho disse: "2012 será um ano de viragem económica para o País". Depois, a 14 de Agosto, Passos Coelho disse: "2013 será um ano de inversão da actividade económica em Portugal". Mais tarde, a 21 de Dezembro, Passos Coelho disse: "2013 será um ano de estabilização e de viragem que preparará o regresso do crescimento em 2014." Ainda em 2012, a 25 de Junho, Paulo Portas tinha dito: "Queria que soubessem que, sendo 2012 um ano difícil, esperamos uma viragem de crescimento económico em 2013". Entretanto, a 23 de Janeiro deste ano, Fernando Ulrich disse: "a emissão de dívida marca um momento de viragem na economia portuguesa". No entanto, a 14 de Novembro de 2011, Álvaro Santos Pereira disse: "2012 certamente irá marcar o fim da crise e será o ano da retoma para o crescimento de 2013 e 2014". Por outro lado, a 24 de Outubro de 2006, José Sócrates disse: "a economia portuguesa está num momento de mudança e viragem".

Mas a 12 de Março de 2006, José Sócrates já havia dito que o seu primeiro ano de Governo tinha sido "o ano da viragem para Portugal, marcado pelo regresso da confiança".
 
A 17 de Junho de 2009, José Sócrates disse: "Estou muito convencido de que a crise se inverterá já em 2010". Dois meses depois, José Sócrates anunciou "um momento de viragem na economia portuguesa" que não era "o fim da crise, mas sim o princípio do fim da crise". A 1 de Junho de 2010, Sócrates registou "sinais positivos da inversão da tendência do desemprego". Dois anos depois, a 4 de Maio de 2012, Cavaco disse esperar, apoiado em indicadores positivos do nosso tecido empresarial, "uma inversão da taxa de desemprego no segundo semestre" desse ano. Três meses antes, a 25 de Fevereiro, Cavaco tinha dito: "Em termos de ambição, seria muito importante que na parte final de 2012 já ocorresse uma inversão da tendência " recessiva. Há cinco meses, a 6 de Março, Cavaco disse que a espiral recessiva se mantinha e acrescentou: "o ano 2013 tem de ser o ano de inversão desta tendência".
 
E há duas semanas, a 12 de Julho, Passos Coelho disse que já havia "sinais de viragem " na economia portuguesa. Em menos de 10 anos, e tendo em conta apenas a opinião deste punhado de especialistas, a economia portuguesa já passou por oito viragens e cinco inversões. Aparentemente, no que diz respeito à economia, quando fazemos a travessia do deserto não vemos miragens, vemos viragens. Fazendo a conta, creio que são safanões económicos a mais, e o problema é sem dúvida agravado pelo facto de haver um número ímpar de inversões e um número par de viragens Para um país como Portugal que, à data do início das viragens e inversões, se encontrava em recessão, passar por um número par de viragens é prejudicial, na medida em que, terminada a última viragem, o país continua a dar por si voltado na direcção do empobrecimento.
 
No âmbito das inversões, aí sim, é possível dizer que a economia se encontra virada para o progresso. Uma vez que a economia vira um pouco mais vezes do que inverte, é possível que, não estando tudo na mesma, esteja ligeiramente pior.
 

Portugal: RAPAR O TACHO

 

We Have Kaos in the Garden
 
Deve ser complicada a vida deste governo, não pela governação porque o seu trabalho é mais de roubo e saque em nome dos mercados e dos grandes especuladores numa altura em que já não há vergonha, respeito ou qualquer tipo de escrúpulos, mas a pouco mais de mês e meio mostrar como o país vai bem e a recuperação já não é uma pequena luz ao fundo do túnel mas sim um enorme viaduto enquanto por outro lado tem de apresentar um orçamento com mais cortes, mais austeridade e mais impostos. É que os números da execução orçamental e das contas e da dívida pública não param de piorar e os buracos aparecem por todos os lados. O próximo orçamento vai ser complicado de fazer dizem num dia depois de no anterior terem cantado vitórias. E vai, porque depois de partirem a bilha e se empanturrarem com o conteudo do tacho já pouco ou nada resta. Ou melhor, resta um governo que já o não é, resta um bando de implicados em tramoias e esquemas financeiros bem escuros à procura de um "salazar" para rapar a massa no fundo ao tacho.
 

ATÉ ONDE RESISTE PORTUGAL?

 


Carvalho da Silva – Jornal de Notícias, opinião
 
O Portugal Democrático, mesmo com uma democracia esfarrapada e empobrecida, sobreviverá às políticas neoliberais e retrógradas que estão a ser impostas, como e por quanto tempo? Nos últimos dias, a partir de uma estimativa rápida (a ser revista) do Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre a evolução do Produto Interno Bruto (PIB), desencadeou-se, pela enésima vez desde 2008, a ideia de que a recessão económica está a ser ultrapassada e que agora é que é: "estamos a sair da crise".
 
Até hoje todos os anúncios deste tipo, feitos a partir de indicadores conjunturais lidos parcelarmente e distanciados de uma abordagem sólida de tudo o que marca a situação da economia e das pessoas, apenas serviram para limitar os protestos populares, para secundarizar reflexões e propostas estruturadas, para o prosseguimento de políticas desastrosas que têm conduzido o país a uma situação cada vez pior. Desta vez, a ladainha de que vale a pena os sacrifícios e de que é preciso continuá-los e aprofundá-los foi de imediato retomada e está a servir a ofensiva contra os direitos dos trabalhadores e dos reformados, desde logo na Administração Pública, os ataques ao ensino público, ao sistema de segurança social e ao setor da saúde.
 
As previsões do INE mostram-nos que a ocasional interrupção da recessão, no último trimestre, foi talvez resultado de três causas: estarmos a ter um bom ano de turismo provocado por fatores externos e instabilidades em destinos alternativos; aumento pontual das exportações, designadamente, em resultado da entrada em funcionamento de uma unidade da Galp em Sines; impacto positivo das decisões do Tribunal Constitucional que evitaram algumas medidas de austeridade.
 
Quando olhamos com rigor o que vai marcar os tempos próximos constatamos que não se prevê um aumento sustentado das exportações. Por outro lado, as doses de maior austeridade, de mais desemprego no setor público central e local, os cortes nas pensões e nas funções sociais do Estado e o surgimento de emprego pouco qualificado e miseravelmente remunerado agravarão os problemas.
 
Entretanto, vai sendo colocado atentismo sobre "mudanças positivas" nas políticas da União Europeia que carece de fundamento. O que continua a imperar são políticas neoliberais e os interesses financeiros de alguns. Por causa das eleições alemãs há muito lixo a ser empurrado para debaixo do tapete. Os problemas da Grécia, como os de Portugal e de outros países em dificuldades, assim como a grave situação do sistema financeiro europeu no seu conjunto, mantêm-se e acentuam-se. As grandes mudanças de que a União Europeia carece nem por sombras se perspetivam.
 
Algum dia se encontrará saída para os problemas e passaremos a ter crescimento económico. Mas, quando se conseguir construir esse momento, como estará em Portugal a distribuição da riqueza? O que terá sido feito do nosso sistema nacional de saúde, do sistema da segurança social, da escola pública, do sistema de transportes, de milhares e milhares de pequenas e médias empresas privadas que estabilizam o funcionamento da sociedade? O que terá sido feito do papel do Estado e ao serviço de quem ele terá sido colocado?
 
É urgente travar o plafonamento e outras loucuras na segurança social, travar o "cheque-ensino" que significa destruição do direito universal ao ensino, travar as manipulações estatísticas no setor da saúde que visam esconder o seu debilitamento e o favorecimento à privatização. A discussão em torno do próximo Orçamento do Estado é primordial. A ela se tem de associar um forte debate sobre estas políticas que estão a ser impostas a toda a velocidade.
 
Temos um presidente da República que só por milagre, ou fortíssima pressão da sociedade, não dará cobertura ao subversivo programa do Governo/troika até 2016, o que torna o processo ainda mais complexo. É preciso aumentar a sua responsabilização.
 
Portugal Democrático pode não resistir por muito mais tempo. A sociedade portuguesa tem recursos e capacidades para o defender, mas o tempo escasseia para as forças de Esquerda e os democratas encetarem caminhos alternativos e propostas de governação.
 

GOVERNO DO EGITO DIZ QUE NÃO VAI CEDER AOS APELOS INTERNACIONAIS

 

Deutsche Welle
 
Cairo afirma que irá manter postura rígida em relação à Irmandade Muçulmana. União Europeia pretende reavaliar relações com o Egito. Segundo dados oficiais, desde quarta-feira, mais de 750 pessoas morreram em confrontos.
 
Apesar das críticas do exterior, o governo egípcio não pretende mudar sua postura rígida em relação à Irmandade Muçulmana. Foi o que afirmou o ministro do Exterior do país, Nabil Fahmi, neste domingo (18/08), durante uma entrevista coletiva no Cairo. Fahmi disse que seu governo tem como tarefa "zelar pela lei e a ordem" e acrescentou que o atual regime não se deixará convencer por cortes no financiamento de projetos de ajuda ao desenvolvimento no país. "Rejeitamos todas as ameaças de retirada da ajuda", sublinhou.
 
Vários países da União Europeia (UE), incluindo a Alemanha, já suspenderam a assistência financeira para projetos de desenvolvimento no Egito. A UE quer nos próximos dias reavaliar suas relações com o país. Os embaixadores dos 28 Estados-membros da UE se reúnem nesta segunda-feira em Bruxelas, para discutir uma reação europeia ao derramamento de sangue no Egito. Desde quarta-feira, mais de 750 pessoas foram mortas em confrontos em todo o país, de acordo com dados do governo egípcio.
 
"A violência e matança dos últimos dias não podem ser justificadas nem toleradas em silêncio", afirma um comunicado conjunto assinado pelos presidentes do Conselho da UE, Herman Van Rompuy, e da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso. O documento faz um apelo a todas as partes do conflito para que usem de moderação. Em particular, o Exército e o governo de transição devem, segundo o texto, colaborar para o fim da violência. A UE exortou os novos governantes egípcios a também libertarem todos os presos políticos. Entretanto, o presidente deposto, Mohamed Morsi, não tem seu nome mencionado.
 
Novos protestos
 
O governo interino nomeado pelos militares ameaçou no sábado prosseguir com mão de ferro contra os terroristas. O presidente do governo de transição, Hazem al-Biblawi, propôs uma nova proibição da Irmandade Muçulmana.
 
Os ativistas muçulmanos, partidários do governo deposto pelos militares no início de julho, não pretendem desistir de suas reivindicações, apesar das ameaças, prisões e da violência.
 
A Irmandade Muçulmana apelou aos seus partidários para que promovam novos protestos neste domingo em dois subúrbios do Cairo. Uma manifestação foi agendada para ocorrer diante do Tribunal Constitucional.
 
Após os ataques a delegacias de polícia e prédios governamentais nos últimos dias, o governo deu ordens às forças de segurança para atirar em qualquer pessoa que participe de atos de vandalismo contra edifícios públicos.
 
Prisões
 
A polícia prendeu numerosos adeptos da Irmandade Muçulmana na madrugada de sábado para domingo, de acordo com fontes oficiais, incluindo o conhecido pregador Safuat al Hegazi. Vários governos ocidentais advertiram os novos governantes de que não tentem isolar a Irmandade Muçulmana.
 
O governo egípcio informou que o ministro do Exterior do país, Nabil Fahmi, telefonou no sábado tanto para o ministro do Exterior alemão, Guido Westerwelle, como para a chefe da política externa da UE, Catherine Ashton, e para os ministros do Exterior de Bahrain e do Reino Unido. Segundo Berlim, Westerwelle teve uma conversa "séria" com Fahmi e apelou ao governo para que não obstrua o caminho para uma solução política. Em entrevista ao jornal Bild am Sonntag Westerwelle classificou os distúrbios no Egito como "uma tragédia".
 
A organização de direitos humanos Anistia Internacional tachou o comportamento das forças de segurança egípcias de "completamente impróprio": "É patente que eles não fazem diferença alguma entre manifestantes violentos e não violentos", conclui a entidade.
 
Após intenso tiroteio, as forças de segurança esvaziaram no sábado a mesquita de al-Fatah, no centro do Cairo, prendendo 385 pessoas, segundo o Ministério do Interior egípcio. O templo havia sido ocupado por centenas de ativistas islâmicos, após uma manifestação de ativistas pró-Morsi numa praça próxima.
 
MD/dpa/afp – Edição: Carlos Albuquerque
 

O “WILD WEST” ESTÁ DE VOLTA À PALESTINA

 


O "renovado processo de paz palestino-israelense" já parece um sucesso para o empreendimento ilegal dos assentamentos de Israel e o imperialismo dos Estados Unidos. Entre os palestinos, a confiança e a esperança em negociações mediadas pelos EUA há muito tempo evaporaram. Enquanto a rua está dividida entre a raiva, o cinismo e a indiferença frente às negociações, a OLP adotou a proposta de Abu Mazen de renunciar à demanda de um congelamento dos assentamentos como pré-condição de negociações. O artigo é de Jamal Juma e Maren Mantovani.
 
Jamal Juma e Maren Mantovani (*) - Carta Maior
 
Qualquer atividade coletiva em que todos os envolvidos estão cientes de que as metas estabelecidas não serão alcançadas é uma falência planejada. Exceto no caso em que os verdadeiros objetivos são diferentes daqueles abertamente declarados. Neste sentido, o "renovado processo de paz palestino-israelense" já parece um sucesso para o empreendimento ilegal dos assentamentos de Israel e o imperialismo dos Estados Unidos.

O processo de negociações, que começou em 1991 com a Conferência de Madrid e levou aos Acordos de Oslo, deveria ter assegurado a criação de Estado palestino dentro das fronteiras de 1967 e um acordo sobre outras "questões de status final", incluindo o direito de retorno dos refugiados palestinos, antes do ano 2000. As negociações tinham início sob a liderança dos EUA num momento que a sua posição diplomática com respeito ao Oriente Médio tinha chegado a vertiginosas alturas, impulsionado, entre outros, pela vitória militar geralmente aplaudida sobre Saddam Hussein no Iraque.

Washington tinha conquistado apoio multilateral para o seu papel de liderança nas negociações palestino-israelenses e o regime de Bush pai tinha sequer encontrado a coragem de bloquear dez bilhões de dólares em garantias de empréstimo para Israel devido as preocupações de que as garantias anteriores haviam sido usadas para financiar a expansão de assentamentos ilegais no território palestino ocupado.

Vinte anos depois da assinatura dos Acordos de Oslo, o processo é considerado pelos palestinos e observadores internacionais como um fracasso. O Estado palestino e a autodeterminação do povo Palestino tem sido desmoronada pela construção israelense do Muro e dos assentamentos ilegais e a implementação de suas políticas de apartheid. Oslo não conseguiu impedir massacres israelenses, como o que destruiu Gaza em 2008-09, e muito menos ajudar a alcançar a justiça para os palestinos.

A Casa Branca começou esta rodada de negociações sob condições completamente diferentes. Por décadas, os EUA não foram tão fracos no Oriente Médio. As guerras perdidas no Iraque e no Afeganistão e a crise econômica moldam um imagem de sintomas de super-extensão imperial dos EUA. A instabilidade em todo o mundo árabe complica o cenário. Ainda assim, o Secretário de Estado John Kerry queria atuar sozinho e a sua própria maneira: manteve a ONU, seus estados membros e mesmo a União Europeia fora do novo processo de negociações. Os países árabes são apenas marginalmente consultados. Pior ainda, a administração Obama nomeou como intermediário nas negociações Martin Indyk, um agente de longa data do poderoso lobby pró-Israel AIPAC e um homem que havia sido acusado pelo FBI de envolvimento no roubo de segredos de negócios nos EUA para Israel, fato que alguns estimam ter causado danos no valor de até cem bilhões de dólares.

Outra grande diferença desta vez é que o primeiro-ministro israelense Netanyahu parece muito mais preocupado em manter sua coalizão de governo feliz do que com a pressão dos EUA ou do mundo árabe.

Entre os palestinos, a confiança e a esperança em negociações mediadas pelos EUA há muito tempo evaporaram. Enquanto a rua está dividida entre a raiva, o cinismo e a indiferença frente às negociações, a OLP adotou a proposta de Abu Mazen de renunciar à demanda de um congelamento dos assentamentos como pré-condição de negociações, embora ela tenha apoio de apenas uma minoria.

Muito poucos dentro da OLP parecem dispostos a falar abertamente em apoio das negociações. Mesmo al Fatah está dividido. Jornalistas reclamam que as autoridades palestinas respondem às suas perguntas sobre o porquê da decisão de voltar às negociações de forma evasiva ou agressiva.

Então não surpreende que seja improvável que a nova rodada de negociações consiga alcançar uma solução duradoura, e muito menos uma paz justa na qual possam ser obtidos os direitos de todos os palestinos, incluindo os refugiados. Parece quase impossível acreditar com seriedade que Washington realmente espera criar uma solução de status final no prazo de nove meses. Então, quais são os objetivos reais dos EUA e Israel?

A retomada das negociações já alcançou um objetivo fundamental: o enfraquecimento das conquistas fundamentais da iniciativa para o reconhecimento de um Estado palestino na ONU. Embora o reconhecimento da ONU não faça mudanças tangíveis se não for acompanhado com pressão internacional para Israel acabar com o seu regime de ocupação, de apartheid e do colonialismo, a iniciativa pelo estado palestino permitiu um avanço político importante pelos palestinos no nível estratégico. Com isso, ganhou-se o apoio de uma aliança internacional impulsionado pelo sul global, levou-se a questão da Palestina das mãos dos EUA e do Conselho de Segurança e trouxe-o de volta para a Assembleia Geral da ONU, um terreno em que a Palestina pode contar com apoio esmagador. Finalmente, se introduziu a questão do direito internacional e do direito à autodeterminação novamente como um pilar para a solução da questão palestina.

Diante da crescente percepção de que estão perdendo o seu papel como protagonista maior e árbitro, a Casa Branca foi forçada a apresentar uma contra-iniciativa no Oriente Médio. Na Síria, a Rússia está bloqueando uma solução dominada pelos EUA e no Egito, Irã e o Oriente Médio em geral, a administração Obama tem demonstrado uma falta de visão ou capacidade de ir além da reação errática aos acontecimentos. Portanto, os chefes da política externa dos EUA provavelmente escolheram a opção de recuo: a Palestina para restabelecer a sua posição dominante no Oriente Médio.

Para Israel, as novas negociações constituem uma grande vitória para a sua empreitada dos assentamentos. Não só os EUA pressionaram com sucesso os negociadores palestinos para abrir mão da pré-condição de um congelamento dos assentamentos, como estes mostram uma aceleração da colonização israelense quase sem precedentes: desde o 1º de agosto, Israel anunciou planos para construir cerca de 3.000 novas unidades de assentamentos e deixou claro sua intenção de continuar com a limpeza étnica de 50 mil palestinos no deserto do Naqab/Negev e com o deslocamento forçado de 1.300 palestinos na Cisjordânia para dar espaço para um campo de treinamento militar. Além de tudo isso, Israel se recusa a discutir uma solução de dois Estados com base nas fronteiras de 1967. Membros do gabinete, como Naftali Bennett, o ministro da Economia, afirmaram claramente que os palestinos "podem esquecer" um estado.

A ironia de Israel iniciar negociações para uma solução de dois estados, negando e minando a possibilidade de um Estado palestino parece estar perdida na diplomacia dos EUA. Em vez de ter que enfrentar uma ação coletiva contra as iniciativas de colonização na Cisjordânia e as suas políticas de limpeza étnica, Israel tem sido recompensado pelos EUA com a criação de uma comissão especial formada por militares estadunidenses e israelenses que discutem "as necessidades de segurança de Israel". Este é atalho para um esforço que mina os direitos palestinos à soberania efetiva e inclui discussões sobre “trocas de terras”, controle de fronteiras, controle sobre o espaço aéreo e territorial, a não interferência e muito mais.

Enquanto os EUA e Israel podem considerar estes resultados como uma vitória hoje, uma vez que as negociações colapsem novamente, prováveis consequências de longo prazo podem fazer que esses ganhos de curto prazo pareçam caros.

Primeiro de tudo, a necessidade dos EUA de liderarem a iniciativa por conta própria significa que dificilmente podem se livrar da culpa pelo colapso previsível das negociações. Ao fechar os espaços políticos no curto prazo, isto convida implicitamente à tomada do palco por parte de outros protagonistas, que apresentam menos preconceito e novas ideias.

Em segundo lugar, Israel parece convencer os EUA a ignorarem a contínua expansão dos assentamentos, mas a União Europeia acaba de seguir a condenação dos assentamentos com ações concretas, incluindo a introdução de novas regras que proíbem recursos públicos da UE nos assentamentos. O eventual fracasso das negociações provavelmente vai empurrar alguns governos da UE a ir mais longe, talvez até proibir o comércio com os assentamentos israelenses ilegais.

Finalmente, esta rodada de negociações já aprofundou severamente a crise de legitimidade enfrentada pela Autoridade Palestina. Ampliar a divisão e a crescente instabilidade é (ainda) mais prejudicial para os interesses de Israel e EUA do que para o povo palestino. É certamente difícil imaginar que qualquer estrutura de pós-Autoridade Palestina possa ser tão maleável como a estrutura político palestina atual.

Para concluir, embora o "Wild West" norte-americano esteja de volta na Palestina no momento, ele não parece capaz de criar qualquer mudança duradoura. O que é realmente necessário é a criação de uma conjuntura política que se baseie no apoio global aos direitos palestinos de autodeterminação, no direito internacional e nos direitos humanos, capaz de construir meios eficazes para pressionar Israel a implementá-las. Para a Palestina, entrar em um processo de negociação multilateral sobre como forjar estas alianças e ferramentas são as conversações mais urgentes a serem realizadas nesta fase.

(*) Jamal Juma é coordenador geral da Campanha Stop the Wall. Maren Mantovani é relações internacionais da Stop the Wall.
 

A DESGRAÇA DO EGITO

 


Pepe Escobar – Brasil de Fato, opinião
 
O ‘banho de sangue que não é banho de sangue’ no Egito mostrou que as forças mais linha-dura de supressão e de corrupção reinam supremas, enquanto interesses estrangeiros – a Casa de Saud, Israel e o Pentágono – apoiam a estratégia impiedosa dos militares.
 
Pare. Olhe as imagens. São cadáveres alinhados num necrotério improvisado. Como se justificaria esse horrendo banho de sangue no Egito? Escolha seu lado. Ou é remix egípcio da Praça Tiananmen, ou é banho de sangue que não é banho de sangue comandado pelos golpistas do golpe que não é golpe, com o objetivo de combater “o terror”.
 
Com certeza não foi operação para desalojar gente – como o Departamento de Polícia de New York ‘evacuando’ o pessoal de Occupy Wall Street. Como tuitou um jornalista da [empresa] Sky, parecia mais “um vasto assalto militar contra civis desarmados” usando tudo, de tanques e gás lacrimogêneo até atiradores com armas de precisão no alto dos prédios.
 
Daí o grande número de mortos assassinados indiscriminadamente – o fogo cruzado de números vai de algumas poucas centenas (segundo o “governo de transição”) a pelo menos 4.500 (segundo a Fraternidade Muçulmana), incluindo pelo menos quatro jornalistas e Asmaa, 17 anos, filha de Mohamed El Beltagy, alto dirigente da Fraternidade Muçulmana.
 
El Beltagy, antes de ser preso, disse uma frase crucial: “Se vocês não tomarem as ruas, ele [o general Abdul-Fattah al-Sisi, líder do golpe que não é golpe que nomeou o governo de transição] fará do Egito outra Síria.”
 
Errado. Sisi não é Bashar al-Assad. Que ninguém espere clamores ocidentais apaixonados, a exigir “ataques a alvos predefinidos” ou uma zona aérea de exclusão sobre o Egito. Sisi pode até ser ditador militar que mata o próprio povo, mas é dos “nossos” filhos-da-puta.
 
“O que nós dizemos é e vale”
 
Consideremos as reações. Os letárgicos poodles da União Europeia clamaram por “moderação” e descreveram a coisa como “extremamente preocupante”. Declaração da Casa Branca dizia que o governo de transição deve “respeitar direitos humanos” – o que, parece, pode ser interpretado como dronagem equivalente à dronagem de Manning/Snowden, mas da escola Paquistão/Iêmen de direitos humanos.
 
Esse patético arremedo de diplomata, o secretário-geral da OTAN Anders Fogh Rasmussen, pelo menos foi claro: “O Egito é importante parceiro da OTAN através do Diálogo Mediterrâneo.” Tradução: a única coisa que realmente nos interessa é que aqueles árabes façam o que os mandamos fazer.
 
Despido de qualquer retórica – de indignação ou outra –, o ponto chave é que Washington não suspenderá a ajuda anual de $1,3 bilhão para o exército de Sisi, faça ele o que fizer. Sisi, esperto, já declarou uma “guerra ao terror”. O Pentágono o apoia. E o governo Obama também já embarcou nessa – relutantemente ou não.
 
Vejamos agora quem está revoltado. O Qatar, como se podia prever, condenou o massacre; afinal, o Qatar estava financiando o governo de Mursi. A Frente de Ação Islâmica, braço político da Fraternidade Muçulmana na Jordânia, encorajara os egípcios a manterem o protesto para “derrotar a conspiração” organizada pelo antigo regime – de mubarakistas sem Mubarak.
 
A Turquia – que também apóia a Fraternidade Muçulmana – exigiu que o Conselho de Segurança da ONU e a Liga Árabe agissem imediatamente para deter “um massacre”; como se a ONU e a Liga Árabe controlada pelos sauditas fossem interromper suas três horas de almoço grátis para fazer alguma coisa.
 
O Irã – corretamente – alertou para o risco de guerra civil. Não implica que Teerã esteja apoiando cegamente a Fraternidade Muçulmana, especialmente depois de Mursi ter incitado os egípcios a abraçarem uma jihad contra Assad na Síria. Teerã observou é que a guerra civil já está em curso.
 
Agora, é cuidar da matança
 
“Bizantino” é pouco, para explicar o jogo de passar adiante a responsabilidade. O banho de sangue que não é o banho de sangue aconteceu quando o “governo” nomeado por Sisi havia prometido começar a construir uma “transição” apoiada pelos militares que seria politicamente muito inclusiva.
 
Mas, farto já de seis semanas de protestos que denunciavam o “golpe que não é golpe”, o governo de transição mudou a narrativa e decidiu não deixar ninguém vivo para contar a história.
 
Segundo as análises mais bem informadas da mídia egípcia, o vice-primeiro-ministro Ziad Baha Eldin e o vice-presidente para assuntos estrangeiros Mohamed El Baradei queriam pegar leve contra os manifestantes; mas o ministro do Interior general Mohammad Ibrahim Mustafa e o ministro da Defesa – o próprio Sisi – queriam solução medieval.
 
O primeiro passo foi culpar preventivamente a Fraternidade Muçulmana pelo massacre – bem quando a Fraternidade Muçulmana culpava o grupo Jemaah Islamiyah por usar Kalashnikovs e queimar igrejas e postos da Polícia.
 
A principal razão pela qual o “banho de sangue que não é banho de sangue” foi deflagrado nessa quarta-feira é que a Fraternidade Muçulmana tentou invadir o eternamente temido Ministério do Interior. Ibrahim Mustafa, linha duríssima, nunca admitiria.
 
Os bandidos de Sisi indicaram 25 governadores provinciais, dos quais 19 são generais, bem a tempo de “recompensar” os altos escalões militares e, assim, solidificar o “estado profundo” egípcio, ou, de fato, o estado policial. E para coroar o “banho de sangue que não é banho de sangue”, os bandidos de Sisi declararam lei marcial por um mês. Nessas circunstâncias, a renúncia de El Baradei, queridinho do ocidente, foi pouco, e nem tirou o sono de Sisi.
 
O espírito original da Praça Tahrir está agora morto e enterrado, como disse um iemenita miraculosamente ainda não assassinado pelos drones de Obama, Tawakkul Karman, Prêmio Nobel da Paz.
 
A questão chave é saber quem lucra com um Egito super polarizado, com uma guerra civil que jogue a bem organizada e fundamentalista Fraternidade Muçulmana contra o “estado profundo” controlado pelos militares.
 
As duas opções são igualmente repulsivas (além de incompetentes). Mas os vencedores locais são facilmente identificáveis: a contrarrevolução – os mubarakistas duros de matar, por exemplo; um bando de oligarcas corruptos; e, mais que todos os outros, o próprio estado profundo, ele mesmo.
 
Reina a repressão mais linha-dura. A corrupção reina. E reinam forças estrangeiras (como a Arábia Saudita que até agora é quem está pagando a maior parte das contas, com os Emirados Árabes Unidos).
 
Internacionalmente, os grandes vencedores são a Arábia Saudita (que deslocou o Qatar); Israel (porque o exército egípcio é ainda mais dócil que a Fraternidade); e – quem poderia ser?! – o Pentágono, cafetão do exército egípcio. Nem em viagem pela Via Láctea haverá quem diga que esse eixo Casa de Saud/Israel/Pentágono seria “bom para o povo egípcio”.
 
Nosso homem é o Xeique Al-Tortura
 
Recapitulemos. Em 2011, o governo Obama não disse, até o último minuto, que “Mubarak tem de sair”. Hilary Clinton queria uma “transição” liderada pelo espião-chefe e ativo da CIA, Omar Suleiman – conhecidíssimo na Praça Tahrir como “Xeique Al-Tortura”.
 
Naquele momento, a piada que circulava em círculos seletos em Washington contava que o governo Obama já era garota-de-torcida da Fraternidade Muçulmana (aliada do Qatar). Agora, como io-iô, o governo Obama tenta encontrar jeito de distribuir a nova narrativa – o ‘leal’ exército egípcio, que corajosamente elimina a Fraternidade Muçulmana ‘terrorista’, para assim “proteger a revolução”.
 
Para começo de conversa, nunca houve revolução alguma; foi-se a cabeça da serpente (Mubarak), mas a serpente continuou viva e chicoteando. Agora, apareceu a nova serpente, em tudo igual à velha. Além do mais, é fácil vender à arquibancada desinformada que Fraternidade Muçulmana = al-Qaeda.
 
O líder supremo do Pentágono Chuck Hagel passou o dia 3 de julho grudado ao telefone com Sisi, enquanto acontecia o golpe que não é golpe. O pessoal do Pentágono quer muito que todos acreditemos que Sisi garantiu a Hagel que logo estaria por cima da carne seca. Praticamente 100% do governo, na Beltway, engoliu essa. Daí brotou a versão oficial em Washington do “golpe que não é golpe”. Tim Kaine, da Virginia, na Comissão de Relações Exteriores do Senado, até elogiou muito os Emirados Árabes Unidos e a Jordânia, aquelas democracias modelares, pelo entusiasmo com que acolheram o “golpe que não é golpe”.
 
É importante listar os cinco países que explicitamente endossaram o “golpe que não é golpe”. Quatro deles são petromonarquias do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG, também conhecido como Clube Contrarrevolucionário do Golfo: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e Bahrain. E o quinto é aquela monarquiazinha, a Jordânia, que o CCG quer anexar ao Golfo.
 
Ainda mais patético que alguns ditos liberais egípcios, alguns esquerdistas, alguns nasseristas e sortimento variado de progressistas que defenderam a sede de sangue de Sisi, foi o vira-casaca Mahmoud Badr, fundador do Tamarrod – o movimento que liderou as demonstrações massivas que levaram à derrubada de Mursi. Em 2012, esconjurava a Arábia Saudita. Depois do golpe, prostrou-se em homenagem. Esse, pelo menos, sabe quem paga as contas.
 
E há também Ahmed al-Tayyeb, o Grande Imã de al-Azhar, o Vaticano do Islã sunita. Disse que “Al-Azhar (...) não sabe dos métodos usados para dispersar os protestos, só vimos o que a televisão mostrou.” Sandice. Ele várias vezes elogiou Sisi.
 
Bato meus cílios... e você desaba
 
Não há outro modo de dizer isso: do ponto de vista de Washington, os árabes que se matem uns os outros até o dia do Juízo Final, e tanto faz que sunitas matem xiitas, xiitas matem sunitas, jihadistas contra secularistas, camponeses contra urbanizados, egípcios contra egípcios. A única coisa que conta são os acordos de Camp David; e ninguém tem licença para antagonizar Israel.
 
Assim sendo, está ótimo que os subalternos de Sisi em coturnos tenham pedido que Israel mantenha seus drones próximos da fronteira, para que possam prosseguir em sua “guerra ao terror” no Sinai. Para todas as finalidades práticas, Israel governa o Sinai.
 
Mas cancelou-se uma entrega de F-16s ao exército de Sisi. Na vida real, todas as vendas de armas dos EUA no Oriente Médio têm de receber “autorização” de Israel. Pode-se portanto conjecturar que Israel – pelo menos por hora – ainda não está muito segura sobre quais são, de fato, os planos de Sisi.
 
É muito instrutivo ler o que pensa Sisi sobre “democracia” – e escreveu quanto estudava no War College, nos EUA. O homem é essencialmente islamista – mas, acima de tudo, anseia pelo poder. E os Irmãos da Fraternidade Muçulmana interpuseram-se no caminho dele. Tiveram de ser aniquilados e descartados.
 
A “guerra ao terror” de Sisi é provável sucesso estrondoso como slogan de Relações Públicas, para legitimar sua candidatura a um mandato popular. Está tentando aparecer na foto como um novo Nasser. É Sisi o Salvador, cercado por um bando de Sisi-zetes. Um colunista escreveu no jornal Al-Masry Al-Youm que Sisi nem precisa ordenar: é só ele “bater os cílios”. A campanha Sisi-para-presidente já está em andamento.
 
Quem conheça os ditadores cabeça-de-lata que os EUA promoveram na América Latina nos anos 1970s sabe farejá-los de longe. Não é Salvador. Não passa de um Al-Sisi-nêitor, Al-Sisi-no – mais um inglório ditador cabeça de prego, onde meu colega Spengler definiu, sem meias palavras, como uma república de bananas, sem bananas.
 
Tradução: Coletivo Vila Vudu
 

A VOLTA DO VIRA-LATA

 


Para um governo que se diz comprometido com os direitos humanos e as normas internacionais, é difícil explicar a recusa em proteger um indivíduo perseguido exatamente por defender esses valores
 
Igor Fuser – Brasil de Fato, opinião
 
É raro um discurso a favor da atual política externa brasileira sem menção ao "complexo de vira-lata". Com essa expressão, busca-se condenar a subserviência do governo de FHC – e da elite nativa, em geral – perante as metrópoles do capitalismo global. Esse comportamento pusilânime teria sido superado a partir da posse de Lula, quando o Brasil supostamente adotou uma nova diplomacia, "ativa e altiva", da qual o chanceler Antonio Patriota é um herdeiro e continuador.
 
Essa interpretação otimista está longe de corresponder à lamentável sucessão de episódios que incluem a negativa do Itamaraty em conceder asilo político a Edward Snowden e a reação brasileira ao escândalo da espionagem praticada em nosso país (entre outros) por agentes estadunidenses, tornada pública pelo próprio Snowden. Para um governo que se diz comprometido com os direitos humanos e as normas internacionais, é difícil explicar a recusa em proteger um indivíduo perseguido exatamente por defender esses valores – ainda mais num caso em que a soberania brasileira foi afrontada.
 
Na conferência sobre política externa realizada em julho na Universidade Federal do ABC, um estudante indagou o motivo da negativa em acolher Snowden ao chanceler Patriota, que respondeu laconicamente: "O Brasil não concedeu asilo porque outros países concederam antes." Disse isso como se ignorasse a diferença entre a posição do Brasil na escala mundial de poder e a da Bolívia, Equador e Venezuela, que atenderam ao pedido de Snowden. A atitude desses países (ativa e altiva, de fato) permaneceu no plano simbólico, diante do risco de que, durante a viagem, o avião fosse interceptado, o que dificilmente ocorreria se o destino fosse o Brasil.
 
No episódio da espionagem, a reação de Brasília se assemelhou mais aos resmungos quase inaudíveis dos vassalos europeus dos EUA do que ao repúdio emitido em tom firme pela Argentina. Patriota esmerou-se em minimizar a importância do grampo como algo banal, coisa que todo mundo faz. Imagine-se, por hipótese, como reagiria Obama se descobrisse que o Brasil instalou uma central regional de espionagem em Washington.
 
Ora, se o governo brasileiro quisesse realmente mostrar desagrado perante o crime cometido contra o nosso país, a atitude correta só poderia ser uma: suspender a viagem da presidenta Dilma aos EUA. Em vez disso, limitou-se a uma queixa protocolar, apenas para registro. Infelizmente, como disse o ex-chanceler Celso Amorim em outro momento da conferência na UFABC, "tem muita gente que é patriota, mas depois de algumas pressões, vai mudando de posição".
 
Artigo originalmente publicado na edição 546 do Brasil de Fato.
 

Brasil: Governo quebra acordo com povo Munduruku e inicia operação militar no Pará

 


Renato Santana, de Brasília (DF) – Brasil de Fato
 
Aviões e tropas da Força Nacional estão em Jacareacanga, município ao sul do Pará, para garantir a entrada de 130 técnicos no território indígena Munduruku para estudos necessários às usinas hidrelétricas de São Luiz do Tapajós e Jatobá. De acordo com lideranças indígenas, as tropas empreendem exercícios de guerra, com voos rasantes e mobilidade das tropas em pontos estratégicos da cidade.
 
O envio dos técnicos e a operação da Força Nacional, porém, fazem parte da quebra de acordo do governo federal com os Munduruku. Após o povo deter três pesquisadores na terra indígena, no início de julho, o governo federal suspendeu os estudos das usinas até a regulamentação do direito à Consulta Prévia – Convenção 169. O que nunca ocorreu.
 
No entanto, à sombra de tal acordo, a trama da retomada dos estudos se fiou. Durante reunião de caciques e lideranças Munduruku, no último dia 3, o prefeito de Jacareacanga, Raulien Queiroz, do PT, com força policial e institucional, comandou a destituição dos principais dirigentes da Associação Pusuru. Além disso, impediu manifestações contra a construção das usinas hidrelétricas no rio Tapajós.
 
Quatro dias depois do encontro em Jacareacanga, denunciado pelos Munduruku como forma de enfraquecer a organização interna num movimento orquestrado pelo governo federal, o secretário executivo adjunto do Ministério de Minas e Energia, Francisco Romário Wojcicki, assinou documento enviado para a presidente interina da Funai, Maria Augusta Assirati, comunicando a retomada dos estudos no rio Tapajós.
 
No documento, Wojcicki informa que um dia antes, 6 de agosto, representantes dos ministérios de Minas e Energia, Planejamento, Orçamento e Gestão, Justiça e Secretaria Geral da Presidência da República, órgão responsável pela regulamentação da Consulta Prévia, decidiram pela retomada dos estudos no último dia 10. A Funai apenas foi comunicada da decisão, cujo estudo segue até 10 de setembro e, numa segunda etapa, entre 15 de setembro e 20 de novembro.
 
Sem questionamentos, a presidente da Funai, Maria Augusta, enviou, no último dia 8, ofício para a Associação Pusuru comunicando o retorno dos técnicos para dali dois dias. Mesmo com um representante do órgão indigenista presenciando tudo o que ocorreu no encontro do dia 3, Maria Augusta parabenizou a “importante reunião acontecida no dia 3 de agosto”. Em ligeira confusão, disse que Jacareacanga fica no Mato Grosso.
 
“Tudo isso está muito estranho. Os caciques e as lideranças têm certeza de que tudo tem relação, a reunião do dia 3 com esses documentos apenas comunicando a volta dos estudos. A Força Nacional está com caminhão e carros. Circulam pela cidade e nas redondezas”, declara Maria Leusa Munduruku.
 
Fora da terra indígena
 
No ofício enviado pelo Ministério de Minas e Energia para a Funai não há nenhuma menção se os técnicos entrarão ou não na terra ou território Munduruku. Ainda assim, a presidente da Funai fez questão de frisar que os estudos ocorrerão fora da área indígena. Em nenhum dos dois documentos, porém, é citada a presença da Força Nacional e como a operação dos agentes militares ocorreria. Mais uma vez Maria Augusta não demonstra questionamentos.
 
“Os pesquisadores entram no nosso território, mas mesmo se não entrassem as usinas vão atingir tudo, então não pode ser desculpa. O governo quebrou acordo e quer impor projeto contra nós. Vamos resistir”, afirma Maria Leusa. A Munduruku lembra que não foram consultados quanto aos empreendimentos. A primeira parte dos estudos, comunicada à Funai pelo Ministério de Minas e Energia, ocorrerá entre os municípios de Jacareacanga e Trairão (usina de Jatobá) e a segunda entre os municípios de Itaituba e Trairão (usina de São Luiz do Tapajós).
 
“Não tem como os pesquisadores não passarem nas nossas terras. Aliás, tudo isso é nosso território, que reivindicamos. Se essas usinas saírem, nossas aldeias serão inundadas. Nossos locais sagrados serão inundados. Então é até um absurdo a gente ter que ouvir que os técnicos não entram. A Funai deveria tomar vergonha”, declara de forma enfática Maria Leusa.
 
Foto: Aviões dão rasantes em município e comunidades. Ofícios comprovam que decisão por retomada de trabalhos ocorreu dias depois de tumultuada reunião em Jacareacanga - Ruy Sposati/Cimi
 
Mais sobre o assunto:
 

As contradições da emancipação (Equador) e as trevas da submissão (Honduras)

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - Em Maio de 2007, quatro meses depois se ter tornado presidente do Equador, Rafael Correa anunciou a criação de uma Comissão da Verdade, presidida por Elsie Monge, presidente da Comissão Ecuménica dos Direitos Humanos (CEDHU). O objectivo da Comissão da Verdade era "inquirir, esclarecer e impedir a impunidade nos feitos violentos e nas violações dos direitos humanos atribuídos a agentes do Estado", particularmente no período 1984-1988, durante o governo de León Febres Cordero, que governou o país com revolver á cintura.
 
Latifundiário, Cordero via o Equador como mais uma das suas numerosas fazendas. O seu amigo pessoal, Ronald Reagan – na época presidente dos USA – convenceu-o a aplicar a receita do FMI. Conhecedor de que estas receitas iriam gerar protestos e uma eventual revolta generalizada, aproveitou a existência de uma guerrilha pouco numerosa, que se implantava no terreno e lançou os serviços de segurança numa escalada repressiva sem precedentes.  
 
Três anos depois, em 2010, a Comissão concluiu o relatório, registando 831 violações dos direitos humanos, que afectaram 456 vítimas, assim como os nomes dos principais oficiais responsáveis pelas torturas, interrogatórios e execuções. Algumas destas prácticas foram observadas nos governos seguintes, mas 70% dos crimes mencionados no relatório ocorreram durante o mandato de Cordero, que criou um grupo clandestino (o SIC-10) encarregado das “tarefas sujas” no seio do Serviço de Investigação Criminal.  
 
O SIC-10 dependia directamente do Ministro do Interior, Luís Robles Plaza e funcionava em coordenação com as Forças Armadas, assim como estabeleceu operações com a INTERPOL e com numerosos governos estrangeiros, em particular com a Colômbia, Chile, Peru, Costa Rica, USA e Espanha. Os seus operacionais foram treinados pela MOSSAD israelita e segundo declarou á Comissão um antigo membro do SIC-10, os instrutores da MOSSAD ensinavam técnicas de interrogatório e tortura.

Em nome do Estado, o Presidente Correa pediu perdão às vítimas e ao povo equatoriano. No mês de Fevereiro deste ano o Procurador-Geral da Republica, Galo Chiriboa, ordenou a apreensão de cerca de 150 mil páginas, conservadas nas caves da Policia Judiciária e a 5 de Junho anunciou publicamente os nomes dos membros oficiais do SIC-10. Além disso prometeu que os implicados em 136 casos de violações dos direitos humanos seriam acusados, assim como os executores de 456 assassinatos políticos.
 
Alguns responsáveis do SIC-10 já morreram e a grande maioria encontra-se na reforma, como Fausto Flores, coronel e responsável da luta contra o tráfico de droga numa província do Equador; Enrique Amado Ojeda, chefe do SIC-10 na província de Pichincha, que atingiu a patente de general da polícia; Mário Pazmiño, nomeado director das informações do Exército e demitido pelo Presidente Correa, devido á sua proximidade com a CIA. Byron Paredes, que foi nomeado coronel, é o único que se encontra a cumprir pena por tráfico de droga. 
 
Depois da leitura do relatório o Presidente Correa afirmou: "Os actos violentos são imprescritíveis e não são susceptíveis de serem objecto de reduções de pena nem de amnistias, para construir uma sociedade cuja bandeira de luta contra a impunidade permitirá ao Equador ser um território de paz.”
 
De agora em diante a batalha prossegue nos tribunais.
 
II - Se no plano judicial, caminha a verdade histórica do Equador, no plano constitucional garante-se o futuro do país. As Constituições são sínteses históricas que cristalizam a acumulação de processos sociais e plasmam uma determinada forma de entender a vida social. Não são as Constituições que fazem as sociedades, mas sim as sociedades que elaboram as Constituições e as adoptam como contracto social, como faróis que determinam objectivos e como mapas indicadores de rotas a seguir.
 
O grande inimigo das Constituições é o formalismo, ou melhor, a legislação produzida fora do seu espirito e que apresenta determinados princípios constitucionais como formais. Neste sentido os governos conseguem fazer passar decretos, leis e normas anticonstitucionais, fazendo da Constituição tábua rasa, porque argumentam que determinadas garantias constitucionais são formais e impraticáveis. Desta forma as Constituições acabam por tornar-se meras cartas ocas, vazias de sentido, mantas de retalhos ensanguentados pelas punhaladas consistentes dos seus adversários. 
 
A Constituição equatoriana de 2008, redigida em Montecristi e por isso conhecida por Constituição de Montecristi, foi elaborada, apresentada e maioritariamente aprovada pela soberania popular como um meio e um fim, tendo em vista as transformações estruturais em curso no Equador, conhecidas por Revolução Cidadã. Construção colectiva de um novo contracto de convivência social e ambiental, a Constituição de Montecristi propõe a construção de novos espaços de liberdade e de igualdade, rompendo os cercos que tentam impedir a sua vigência. O seu conteúdo é composto por múltiplas propostas impulsionadoras de transformações de fundo, construídas através de décadas de lutas sociais e de resistência, que articularam diversas agendas alternativas de desenvolvimento como o Bem Viver, o Estado Plurinacional, a consolidação e ampliação dos direitos individuais e colectivos, os direitos ambientais e outros princípios e valores colectivos.
 
Todos os projectos transformadores são portadores de contradições e comportam o contraditório. O contexto em que se gera o processo transformador é transportado para o interior do processo e as contradições do contexto cruzam-se com as contradições da transformação. Um exemplo destas contradições pode ser verificado na questão das comunidades indígenas. A Constituição estabelece a consulta como direito de todos os equatorianos, reconhecendo dentro deste princípio que a consulta aos povos indígenas está sujeita ao direito internacional, conforme a Declaração das Nações Unidas sobre Direitos e Povos Indígenas e a jurisprudência da Corte Interamericana.
 
Acontece que o incumprimento das regras constitucionais, muitas vezes efectuado pelo governo equatoriano, leva a conflitos concretos com estas comunidades, geralmente surgidos em torno da questão mineira. São dinâmicas inerentes aos processos de desenvolvimentos, embora também possam denotar uma tentação desenvolvimentista por parte do executivo equatoriano. São tensões latentes, que indiciam contradições mais profundas, transportadas de contextos anteriores e que se plasmam agora no processo transformativo.    
 
A ambiguidade fundacional da nação equatoriana, os seus modelos de Estado-nação subalterno, periférico, suportados por uma lógica colonial e gerador de uma teia de relações sociais assentes no modelo cultural da colonialidade do poder, são factores de exclusão que limitam o desenvolvimento e o processo de transformação em curso. A logica da emancipação é movida pela necessidade de superar os elementos pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais, ou seja a Tradição, elemento cultural de inibição, a Oligarquia e as Elites criadas pelo longo processo de acumulação que caracteriza os estados periféricos. Mas como os processos de acumulação chegaram ao seu fim (daí os processos de restruturação que caracterizam a actual fase, a que por comodismo, muitos denominam neoliberal) também estes novos elementos criados pela pós-acumulação, actuais, têm de ser superados. Só que os elementos pós-acumulação são predominantes na economia-mundo, pelo que eles tornam-se inerentes aos processos de emancipação. 
 
A construção de um outro Estado, de uma forma-Estado que assuma desde a liberdade e a igualdade as múltiplas diversidades existentes, maioritariamente marginalizadas e subjugadas, concretiza-se no plano constitucional equatoriano sob a forma de Estado Plurinacional. Desta forma são superados os elementos pré-coloniais, plasmados pela Tradição, de uma forma participativa, que insere os povos indígenas no processo de transformação e que em simultâneo representa a sua própria transformação, iniciando um processo de aculturação orgânico, essencial para a emancipação real e efectiva. Por sua vez o Estado Plurinacional é também superador do elemento colonial, originador da Oligarquia.
 
Desta forma a sociedade equatoriana sofre um duplo processo de transformação cultural, que elimina a colonialidade, factor cultural dominante durante o processo de acumulação iniciado pela independência, que manteve inalteráveis as relações coloniais. Este não é um mero processo de modernização do Estado, incorporando burocraticamente o indígena e o afro-equatoriano. O Estado Plurinacional assume os códigos culturais e a praxis das nacionalidades indígenas e das comunidades afro-equatorianas, incorporando-os como actores no processo colectivo da tomada de decisões. O governo de Correia tem dados passos tímidos neste sentido, o que origina a actual conflitualidade na região mineira. Ou seja o facto de não se estar a assumir a forma-Estado plasmada na Constituição, o Estado Plurinacional, impede o avanço da Revolução Cidadã e da afecta em particular a política de desenvolvimento do Equador.
 
Mas porquê esta “timidez” por parte do governo de Correa? Devido às forças centrífugas do período pós-acumulação, originadas pelas políticas de restruturação dos mercados internacionais e lançadas pelos governos anteriores no Equador, o chamado neoliberalismo. As novas elites surgidas durante esse período assumiram estrategicamente posições no interior da Revolução Cidadã (muitas das reivindicações deste processo também são do seu interesse e são suas reivindicações). A forma das suas reivindicações e intenções imperarem consiste em impedirem a construção do Estado Plurinacional, mantendo a Revolução Cidadã no âmbito do Estado de Direito, coabitando com o elemento oligárquico e transformando a tradição em factor de domínio e exclusão.
 
O Estado Plurinacional implica novas instituições participativas e um novo papel da representação. A relação horizontal de poder criada pelo Estado Plurinacional é a consequência da democratização do aparelho de Estado, do assumir de novos espaços comunitários e de formas de organização alternativas, no plano social, económico e politico. Ora este processo de repensar e aprofundar a democracia e levá-la além da sua cristalização no Estado de Direito, é no actual momento a grande frente de combate da Revolução Cidadã.
 
III - O Bem Viver, outro princípio da Constituição de Montecristi, é uma alternativa subjacente às reivindicações populares, consubstanciadas na Revolução Cidadã e complementar do desenvolvimento. Não se trata de um pacote de medidas, ou de um conjunto de políticas e instrumentos indicadores para sair do subdesenvolvimento, nem sintetiza uma proposta cultural, unidimensional, mas antes de um conceito plural, pluridimensional. O seu postulado de harmonia com a Natureza, oposto ao conceito de acumulação e regresso aos valores de uso, abre a porta á formulação de novos valores e alternativas de vida e permite a aculturação a partir do interior da identidade cultural. É, portanto, uma proposta de alteração civilizacional.
 
Constitui, o Bem Viver, um ponto de partida para construir novas políticas de desenvolvimento e superar as aberrações do Produto Interno Bruto (PIB) - consequência do desenvolvimento assimétrico - assentando num Índice de Desenvolvimento Humano, indicador de uma política de desenvolvimento integrado e participativo que implica a ruptura com a lógica pós-acumulativa. Mas essa ruptura não é, ainda, assumida na praxis governativa, tendo as razões das hesitações do executivo equatoriano a mesma raiz da aplicação do Estado Plurinacional. É que o momento de transição vivido no Equador é uma contradição latente entre os novos princípios constitucionais, consignados pela Revolução Cidadã e os velhos princípios da colonialidade, assentes no Estado de Direito.
 
A lista de incongruências é reveladora das distintas intenções entre os mandatos constitucionais e a prática governativa, ainda marcada por uma visão desenvolvimentista e pelos tiques das novas elites, que assumem uma postura neoliberal e preferem a continuidade da forma-Estado de Direito e da formulação economicista do PIB, evitando a visão humanista da Revolução Cidadã sobre a actividade produtiva. Da resolução desta contradição dependerá a continuidade do processo emancipador do Equador.
 
Se o Bem Viver e o Estado Plurinacional, assim como a própria Revolução Cidadã são objectivos a concretizar ou meros slogans próprios de uma grande campanha manipuladora, uma operação de marketing, veremos nos próximos tempos, quando as tensões contraditórias estiverem ou mais distendidas ou pelo contrário, mais retesadas e maior o quantitativo de incongruências.       
 
Para sobreaviso ficam estas palavras do Presidente Correa, ditas numa entrevista datada de 15 de Janeiro de 2012: “no somos anticapitalistas, no somos antiyanquis, no somos antiimperialistas”.
 
Ao não ser tanta coisa, o que será então?
 
IV - Mas se os ventos emancipadores sopram fortes no Equador, nas Honduras, pelo contrário, assiste-se a um retrocesso social e politico. Nas ruas, a morte de defensores de direitos humanos, de líderes camponeses, de jornalistas e as violações de mulheres, formam parte do quotidiano de violência. Esta realidade assume contornos preocupantes desde que, a 28 de Junho de 2009, um golpe de Estado depôs o presidente Zelaya e colocou no poder o latifundiário Roberto Micheletti. Desde esse momento a realidade deste pequeno país da América Central, com 8 milhões de habitantes, que faz fronteira com a Guatemala, El Salvador e Nicarágua, retornou ao pesadelo de outros tempos.     
 
Latifundiários e militares, ou seja a oligarquia e o seu suporte repressivo, com o apoio dos USA, puseram fim a um período de democracia e de transformações sociais, que passava por um processo de alteração constitucional e pela reforma agrária. A impunidade e a corrupção imperam e este ano as estatísticas apontam para um elevado índice de morte violenta: 89 em cada 100 mil habitantes. O Exército manda parar os autocarros, os militares entram nos restaurantes, identificam as pessoas e atacam as comunidades rurais em nome do combate ao narcotráfico, em operações conjuntas com a DEA (Agencia Antidroga dos USA)  
 
Militares e paramilitares patrulham as ruas e o Congresso aprovou uma lei que permite às forças armadas fazer tarefas de segurança local, operações para as quais os militares não estão preparados. É um país militarizado e a legislação antiterrorista é um meio para espalhar o terror e absolutizar as escutas telefónicas, penetrar nos sistemas informáticos pessoais e no correio eletrónico.
 
Grande parte das mortes são de militantes dos direitos humanos, de organizações camponesas, sindicalistas e membros do Partido Liberdade e Refundação, apoiante de Zelaya e a polícia limita-se a arquivar os casos, murmurando “que andavam metidos em algo”.        Após o golpe de estado foi criada a Frente Nacional de Resistência Popular e a luta apoderou-se das ruas, apesar do clima repressivo. Com a aproximação das eleições gerais, em Novembro deste ano, a situação torna-se mais crítica, uma vez que o Partido da Liberdade e da Refundação aparece como o principal favorito, coisa que a oligarquia não está disposta a aceitar. As Honduras são um país em guerra, uma guerra declarada pelo Estado contra o povo hondurenho. 
 
Mais de 28 jornalistas foram assassinados desde o golpe de Estado e mais de uma centena são perseguidos. Dezenas de órgãos de comunicação foram encerrados e cerca de uma centena de camponeses foram assassinados. Milhares de cidadãos hondurenhos exilaram-se em estados vizinhos e mesmo na Europa. Casos como o do jornalista e professor universitário Anibal Barrow, cujo corpo foi desmembrado e espalhado nas margens de um pequeno lago, em Villanueva, no departamento de Cortês. Barrow, de 65 anos, foi sequestrado a 24 de Junho, na cidade de San Pedro Sula, quando viajava na companhia de familiares. Os seus restos mortais foram encontrados 15 dias depois.
 
As Honduras ingressaram num tipo de violência de alto perfil, em que os jornalistas aparecem como os alvos a abater. Na lista negra surgem depois dos jornalistas, os pastores evangélicos, advogados, activistas dos direitos humanos, sindicalistas e activistas das organizações camponesas. 
 
Mas não serão estas as lições aprendidas na Escola das Américas? Afinal as Honduras são uma das herdades preferidas do Tio Sam e dos seus inquilinos da Casa Branca. E nas quintas do Tio os sobrinhos são capatazes. O resto é a capoeira, o curral e seus respectivos animais…
 
Fontes
Monge, Elsie "
Calvo Ospina,,  Hernando Tais-toi et respire. Torture, prison et bras d'honneur Bruno Leprince Editions, Paris, 2013
España Torres, Hugo  El testigo Ediciones Abya-Yala, Quito, 1996
Tapia, L. El estado de derecho como tiranía. CIDES-UMSA. La Paz (2011)
Cueva, A. Autoritarismo y fascismo en América Latina. Serie Cuadernos Políticos, Centro de Pensamiento Crítico. Quito: (2013)
Ospina, P. Ecuador: la participación ciudadana en el proyecto de Estado de Rafael Correa. Observatorio Latinoamericano 7. (2011) Instituto de Estudios de América Latina y el Caribe. Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires.
Rapport de la Commission de la vérité, Quito, mai 2010
 

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