terça-feira, 23 de dezembro de 2014

O ARCO DAS NEGOCIATAS



Rui Peralta, Luanda

I - Em Maio de 2011 o "arco do Capital" (partidos do "arco da governação" portuguesa, que apesar do marketing tricolor - laranja, rosa e azul - não deve ser confundido com um "arco-íris", nem - apesar de ser tricolor - com o "arco do triunfo") subscreveu, em triplicado, o memorando da tróica. Três anos e meio depois, eis que assistimos - graças á TAP, ou melhor, graças aos trabalhadores da TAP - a diferentes interpretações do memorando, por parte do "arco" (que engloba dois grupos principais -governo e oposição - sendo a governabilidade dividida em três tipos: governo de um partido, aliança democrática e bloco central. Actualmente perdura a aliança democrática). O primeiro-ministro português (Pedro Passos Coelho) afirmou recentemente na Assembleia da Republica que a venda da TAP era um dos objectivos inscritos no memorando de entendimento. António Costa, líder da oposição no seio do arco, desmentiu o primeiro-ministro: "Ao contrário do que diz o primeiro-ministro, o que estava no memorando de entendimento com a tróica não era a previsão de uma privatização a 100% da TAP (...) a TAP só será privatizada parcialmente".

Vejamos para além do que diz o arco, o que está escrito no memorando, ou seja, o que o arco subscreveu num momento de aflição. Reza assim, sobre a TAP, o "Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades da Politica Económica. Privatizações": " (...) 3.31. O governo acelerará o programa de privatizações. O plano existente para o período que decorre até 2013 abrange transportes (Aeroportos de Portugal, TAP e a CP Cargo), energia (GALP, EDP e REN), comunicações (Correios de Portugal) e seguros (...). O governo compromete-se a ir ainda mais longe, perseguindo uma alienação acelerada da totalidade das acções na EDP e na REN e tem a expectativa que as condições de mercado venham a permitir a venda destas duas empresas, bem como da TAP (...) ".

Compondo-se o memorando de três documentos dos quais dois falavam da TAP - sendo que já referi um deles, passemos então ao outro, intitulado "Portugal - Memorando sobre Politicas Económicas e Financeiras. Privatizações", que reza assim): “17. (...) O plano existente - com horizonte temporal até 2013 - sobre o sector dos  transportes (Aeroportos de Portugal, TAP e CP Cargo) (...) alienação parcial prevista para todas as empresas de maior dimensão."

Esclarecedor...Totalmente parcial e parcialmente total.

II - Um ano antes da assinatura do memorando da Tróica, o PEC IV fez alusão ao "transporte aéreo" propondo um "pacote alargado" de "alienação das participações integradas na denominada carteira acessória". Ou seja a possibilidade de alienar a TAP (o PEC IV não referia se parcial ou totalmente) era prevista e considerada inevitável.

Estas posições do arco são questões  centrais desde a sua formação e constituíram-se em programa logo após o 25 de Novembro de 1975. É um projecto vasto que passou pelo desmantelamento das estruturas produtivas do país (manutenção e construção naval - com o encerramento da Rocha-Margueira e dos grandes estaleiros da Lisnave, Setenave e recentemente de Viana do Castelo - a siderurgia, a agricultura, com a interrupção abruta do processo de reforma agrária, primeiro e com as politicas agrárias europeias, depois), com a monopolização do mercado por parte dos grupos monopolistas clientes do Estado e por fim com o desmantelamento progressivo do sistema nacional de saúde e da educação pública.

O objectivo é simples. Reduzir a soberania popular a um acto carnavalesco e a soberania nacional a uma nau Catrineta, feita de papel de embrulho, que afunda-se numa poça de água da chuva no Portugal dos Pequeninos.

III - A demagogia do discurso da direita portuguesa (governo e correligionários), assente numa campanha bem montada pela máquina de propagando dos seus aparelhos, tem como objectivo enfraquecer a luta dos trabalhadores da TAP, isolando-os da população. Virar a opinião pública contra os trabalhadores, tirando vantagem dos incómodos causados aos utentes (sendo uma empresa publica a TAP tem utentes, que são todos os cidadãos portugueses que nela viajam. Os utentes usufruem dos serviços como proprietários da companhia, uma vez que na sua função cidadã de contribuintes, assumem um papel acionista. A propriedade publica só o é em função do cidadão. Assim os únicos clientes da TAP serão os  cidadãos estrangeiros e as empresas privadas nacionais e estrangeiras. O restante universo, composto pelos cidadãos portugueses, são utentes) e clientes.

O governo assume, na sua demagogia, um ar salazarento (que, aliás, condiz com o seu elenco ministerial) e executa aquilo que melhor sabe fazer: desmantelar, destruir e agir á margem da lei (esta figura delinquente é histórica, um ex-libris da simbologia lúmpen portuguesa, que o Império - nicho promocional dessa gentalha - encarregou-se de espalhar pelo mundo lusófono). A fanfarronice da escória ficou patente na requisição civil (parece que o governo seguiu o conselho do cacique da Madeira, que com ar doutoral dissertou durantes alguns segundos - o saber do homem não deve dar para mais tempo - frente ás camaras, microfones, gravadores e repórteres, sobre o direito á greve e uma cousa obscura que é o direito absoluto), decisão tomada de forma apressada, entre dois goles de cerveja.

Os demagogos afirmam: "a greve afecta o interesse nacional!" Meus caríssimos nacional-interesseiros, sendo os trabalhadores da TAP cidadãos portugueses que recorreram á greve para melhor defenderem os seus interesses e direitos, então é porque alguém esqueceu-se de inserir os interesses dos trabalhadores no interesse nacional, o que o torna, um interesse de classe e de grupelho e não um interesse nacional. Mais á frente os demagogos vociferam: "A greve afecta os portugueses que vivem na diáspora". Ó sublime prosa do fascismo, a diáspora. Meus prosaicos cavalheiros e damas de acompanhamento,  a frase correcta é: a greve afecta os emigrantes, que emigraram devido às políticas económicas de "voxelenxias", mas que "voxelencias" sabem aproveitar as remessas enviadas e adicioná-las á "voxa" salazarenta (e, como tal, fraudulenta) contabilidade de Estado. E afecta também os imigrantes (não os  dourados do VISA GOLD com que "voxelencias" fazem as negociatas), mas os trabalhadores estrangeiros que trabalham em Portugal. Uns querem “vir” para estar na quadra natalícia e passagem de ano com as famílias e os outros querem “ir” passar a quadra com as suas famílias. É assim que a frase deve ser dita, de forma transparente, sem demagogias e sem salazarentas terminologias.

Para além dos emigrantes e dos imigrantes, há a questão do turismo. E não é necessário ser um observador atento para ver a forma como as confederações patronais do sector e as Associações dos diversos operadores turísticos manifestaram o seu descontentamento, em muitos casos alinhadas com a demagogia do governo. Tem de ser entendido o descontentamento. Mas vejamos: as greves são um último recurso. Ninguém faz uma greve por dá cá aquela palha. Quando trabalhadores e sindicatos chegam a uma fase estanque num processo negocial, em que o outro lado (Estado, administração ou patronato) da mesa decide não comparecer ou fingir de mouco e surdo, a greve torna-se inevitável.

Ora, como arma, a greve afecta interesses. Em primeiro lugar os interesses directos do sector. Se assim não fosse as greves não teriam qualquer função. Em casos como os transportes (e outros, como na saúde e na educação ou na Justiça) a greve afecta o universo de utentes e/ou clientes. Por isso existirem os serviços mínimos, que minimizam os diversos incómodos causados pela greve a terceiros. Claro que estes serviços não repõem a normalidade, nem essa é a sua intenção. Mas se há uma greve, é porque a normalidade já foi quebrada. Mas é nesse exacto momento que o aparelho de propaganda (do Estado e dos interesses monopolistas) entram em acção e pintam ambientes cor-de-rosa, azuis, laranjas e amarelos, com afirmações tipo: "a greve é um direito dos trabalhadores, mas..." ou o argumento histórico dos fura-greves, "os amarelos" que começa com um ar de indignação e terminam com um inevitável "direito dos que querem trabalhar" ofendendo os que exercem o direito á greve como se fossem um bando de preguiçosos e gente irresponsável.

Quando, como no caso da TAP, estamos perante revindicações legítimas, que questionam um modelo que põe em causa os interesses estratégicos de um país, neste caso a privatização, é óbvio que as pressões e as ameaças que pairam sobre os trabalhadores sobem de tom. Mas é aos trabalhadores que cabe decidir qual o caminho a seguir na defesa dos seus direitos. De forma livre e sem pressões e ameaças. Ninguém melhor que os trabalhadores para saber o que fazer. E com certeza que as opções  tomadas pelos próprios trabalhadores serão as mais adequadas á sua situação. A isso chama-se Democracia…

Fontes

HONRA A UM HERÓI DA CIDADE DO CUITO E DE ANGOLA!



Martinho Júnior, Luanda

1 – A 20 de dezembro do corrente faleceu na cidade do Cuito, capital da Província do Bié, o camarada capitão Augusto Incha, “Saber Andar”, um bravo de muitas batalhas que ao longo de décadas se foram travando em Angola e partícipe na defesa do Cuito, quando foi assolada pelas hordas de Savimbi, durante a “guerra dos diamantes de sangue”…

O camarada capitão Augusto Incha, “Saber Andar”, distinguiu-se em combates em vários pontos do país e é um dos combatentes que em ocasiões distintas mais vezes terá sido ferido em combate.

De entre as acções em que participou destacam-se a segurança dos companheiros cubanos que constituíram a vanguarda da “Operação Carlota” em finais de 1975 (base secreta sita na Camuxiba, em Luanda, próximo do Estado Maior das FAPLA, ao Morro da Luz), a retomada de Quibaxe, imediatamente antes da batalha de Quifangondo, o desembarque em Ambrizete, logo após o treino recebido pela primeira formação de fuzileiros navais na ilha Cazanga (baía do Mussulo), a coluna que partiu de Ambrizete e retomou Casa da Telha, Tomboco e Quiende (uma das três colunas que retomaram o norte do país em princípios de 1976), a protecção ao primeiro Governador Provincial do Bié após a independência, camarada Faustino Muteka em 1977 e 1978, combates em toda a região centro, incluindo acções contra-ofensivas que levaram ao desmantelamento de várias bases da UNITA, entre elas a sede e destacamentos da Região Militar 89 (desde meados da década de 70 e até ao início da década de 90) e a defesa da cidade do Cuito durante os meses de assédio, quando Savimbi se decidiu pela “guerra dos diamantes de sangue”!

2 – Intrépido e destemido, o camarada capitão Augusto Incha, “Saber Andar” foi um dos combatentes que participou nas Forças Especiais do Bié, depois Brigada de Luta Contra Bandidos, adstrita o ex-Ministério da Segurança do Estado, uma unidade que se responsabilizou pela segurança geo estratégica que garantiu a viabilidade da soberania de Angola no planalto central, contra as iniciativas conjugadas das SADF no Cuando Cubango que impulsionavam as das FALA no Bié (desde meados da década de 70 e até à década de 90) e depois contra Savimbi, no quadro da“guerra dos diamantes de sangue”, que incluiu a “guerra das cidades”.

Homem da linha da frente, não tinha jeito para trabalhos administrativos, nem de secretaria, nem de logística, sendo um excelente conhecedor de tácticas de pequenos grupos, de todo o tipo, incluindo de combate nocturno.

Foi e é admirado pelos seus companheiros de luta, mas em vida não mereceu ser reformado com subida de posto na Caixa Social das FAA, como acontece ainda hoje, injustamente, com muitos oficiais seus contemporâneos pertencentes às mesmas unidades e só se conseguiu reformar muito recentemente por via do Ministério do Interior, por que entretanto tinha passado a fazer parte da Emigração e Fronteiras, onde prestou serviço na sua última fase activa.

3 – O camarada capitão Augusto Incha, “Saber Andar” é membro da ASPAR, “Acção Social Para Apoio e Reinserção”, uma Instituição de Utilidade Pública que advoga sobretudo a comunidade de camaradas combatentes e membros do MPLA com situação ainda não contemplada em termos de justo enquadramento nas medidas de Reconstrução Nacional, Reconciliação e de Reinserção Social.

De facto, enquanto em função da corrente de Acordos a esmagadora maioria dos combatentes que pertenceram à FNLA, à UNITA e à FLEC estão com sua situação enquadrada nas medidas gerais de Reconstrução Nacional, Reconciliação e Reinserção Social, alguns daqueles combatentes patenteados pelas FAPLA, que fizeram parte de forças que respondiam à ex-Segurança do Estado, mesmo que tenham sido e continuem a ser membros do MPLA, têm sentido muitas dificuldades em se equipararem, por que alguns membros do Governo Angolano, responsável acima de tudo pela execução das medidas, não têm correspondido ao nível da dignidade que eles merecem, em desajuste com o próprio MPLA que se debruçou sobre o assunto quer no IVº, quer agora no Vº Congresso Extraordinário!

Outros combatentes que prestaram serviço no ex-Ministério da Segurança do Estado, que assumiram actividades de oficiais operativos sem contudo terem sido patenteados pelas FAPLA, estão ainda em situação mais precária, não havendo até hoje forma de garantir as reformas que por mérito têm direito, depois de serem desactivados há mais de 20 anos, sem qualquer medida vinculativa!

Outro facto no mínimo intrigante, é o de terem sido sistematicamente enaltecidos os feitos dos combatentes que impediram Savimbi de tomar o Cuito, tendo até muitos deles sido sepultados no cemitério onde foram recolhidas as ossadas dos anónimos tombados, sem que haja uma política coerente em relação aos combatentes defensores da cidade ainda em vida, assim como em relação às viúvas e órfãos, ao contrário do que vai acontecendo quantas vezes com aqueles que integraram as forças que a atacaram!

4 – Por muito esquecido que tenha sido o camarada capitão Augusto Incha, “Saber Andar” e outros camaradas de trincheira, os combatentes das horas mais difíceis e decisivas em que se afirmou a independência e a soberania de Angola, têm toda a legitimidade em honrar a memória dos caídos, o seu heroísmo, o seu imenso mérito e lembrar que a ineficácia que tem dado provas em muitos casos alguns membros do Governo Angolano nas políticas que os deviam integrar dignamente nos expedientes de paz, enquadra-se no mais nefasto e desprestigiante oportunismo!

Por essa razão, em nome do próprio MPLA de que muitos anónimos são militantes com provas dadas nas horas e nos momentos críticos, essa aparente ineficácia governamental, com respostas tão equívocas neste caso ao nível do Ministério do Interior, não pode mais passar em branco e deixar de ser apontada e advertida publicamente!

Enquanto por exemplo em Cuba, que fez das trincheiras angolanas as suas trincheiras, os heróis são lembrados, enaltecidos e evocados como exemplo, com a cultura de sua memória por razões de independência, de soberania e da construção do socialismo, em Angola há quem pretenda passar uma esponja sobre a história, por que não tem melhor argumento para responder perante a Pátria e o seu próprio Povo!

*Foto recolhida por Martinho Júnior no dia 15 de junho de 2011 no conhecido colégio dos Maristas na cidade do Cuito, por alturas duma Assembleia de Antigos Combatentes; o “Saber Andar” é a torre da esquerda, ao lado do autor.

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