Orlando
Castro, jornalista
Os
acontecimentos de 27 de Maio de 1977 em Angola, que provocaram milhares de
mortos, foram o resultado de um "contra-golpe" que foi pacientemente
planeado, tendo como responsável máximo Agostinho Neto, que temia perder o
poder. Esta é uma das muitas teses possíveis. Lara Pawson, jornalistas
britânica, acaba de lançar o livro: “Em Nome do Povo - O massacre que Angola
silenciou”.
Nessa
altura, Nito Alves, então ministro da Administração Interna sob a presidência
de Agostinho Neto, liderou uma manifestação para protestar contra o rumo que o
MPLA estava a tomar. E isso era inaceitável pelos ortodoxos que, por interesses
pessoais, blindavam o presidente. Com o fantasma do Congresso, previsto para o
final desse ano, urgia calar os nitistas pois, se o não fizessem, poderiam ver
os congressistas renderem-se a Nito Alves. Tudo leva a crer que Neto temia
mesmo perder o poder e, por isso, engendrou a tramoia.
Perante
a blindagem que ainda hoje o regime faz ao que se passou, situação que impede
consulta de documentos e que atemoriza muitos dos intervenientes cujo
testemunho é imprescindível para um conhecimento que chegue perto da verdade, a
história do massacre vai continuar com muitos capítulos especulativos.
Na
versão oficial, através de uma declaração do Bureau Político do MPLA, divulgada
a 12 de Julho de 1977, o 27 de Maio foi uma "tentativa de golpe de
Estado" por parte de "fraccionistas" do movimento, cujos
principais "cérebros" foram Nito Alves e José Van-Dunem, versão que
seria alterada mais tarde para "acontecimentos do 27 de Maio".
Nito
Alves e José Van-Dúnem tinham sido formalmente acusados de fraccionismo em
Outubro de 1976. Os visados propuseram a criação de uma comissão de inquérito,
que foi liderada pelo actual Presidente, José Eduardo dos Santos, para
averiguar se havia ou não fraccionismo no seio do partido. As conclusões nunca
chegaram a ser divulgadas publicamente mas, segundo alguns sobreviventes,
revelariam que não existia fraccionismo no seio do MPLA.
Consta
que o próprio José Eduardo dos Santos, tal como o então primeiro-ministro, Lopo
do Nascimento, seriam alvos a abater pela cúpula do MPLA. Ao actual Presidente
terá valido a intervenção do comissário provincial do Lubango, Belarmino
Van-Dúnem.
Os
apoiantes de Nito Alves consideravam que o golpe já estava a ser feito por uma
ala maoísta do partido, liderada pelo secretário administrativo do movimento,
Lúcio Lara, que terá instrumentalizado os principais centros de decisão do
partido e os média, em especial o Jornal de Angola, pelo que consideraram que a
manifestação convocada por Nito Alves foi "um contra-golpe".
Em
relação ao número de mortos, os números vaiam segundo as fontes. Terão sido
mais de 15 mil e menos de 100 mil. É claro que, como continua a ser prática,
nessa altura os ditos fraccionistas sofreram horrores terríveis, desde prisões
arbitrárias, a tortura, condenações sem julgamento ou execuções sumárias.
O
apontado líder do alegado golpe de Estado terá sido fuzilado, mas o seu corpo
nunca foi encontrado, tal como o dos seus mais directos apoiantes como José
Van-Dúnem e Sita Valles, que foi dirigente da UEC, ligada ao Partido Comunista
Português, do qual se desvinculou mais tarde, e foi expulsa do MPLA.
Em
Abril de 1992, o governo angolano reconheceu que foram "julgados,
condenados e executados" os principais "mentores e autores da
intentona fraccionista", que classificou como "uma acção militar de
grande envergadura" que tinha por objectivo "a tomada do poder pela
força e a destituição do presidente Agostinho Neto".
Moralmente,
pelo menos, o principal responsável foi Agostinho Neto que, assessorado por
alguns dos mais radicais membros do MPLA, não se preocupou com o apura a
verdade, dispensou os tribunais, admitiu que fizessem justiça por suas próprias
mãos.
Relatos
dispersos dizem que o Presidente Agostinho Neto foi, antes de tudo, chefe duma
facção e não o árbitro, o unificador, estando completamente dominado pela
arrogância, inflexibilidade e cegueira.
Certo
é, contudo, que Angola perdeu muitos dos seus melhores quadros: combatentes
experimentados em mil batalhas, mulheres combativas, jovens militantes,
intelectuais e estudantes universitários. Dessa forma o MPLA decapitou os que
sonhavam com um futuro melhor, mais igualitário e mais fraterno para os
angolanos.
O
mais recente livro da jornalista britânica Lara Pawson sobre este assunto,
"levanta mais perguntas do que respostas" sobre as verdadeiras
intenções, envolvidos e número de mortos.
"O
meu livro não é uma história definitiva do 27 de Maio, é a minha investigação e
mais trabalho precisa de ser feito", afirmou a propósito de "Em Nome
do Povo - O massacre que Angola silenciou", livro lançado em Londres e que
esta semana chegou livrarias portuguesas, editado pela Tinta-da-China.
O
livro, que demorou sete anos a escrever, representa uma investigação de sete
anos da antiga correspondente da BBC em Angola (1998-2000), demora que a autora
atribui à própria "lentidão" e à incerteza criada pelos testemunhos
que recolheu entre Londres, Lisboa e Luanda.
"Todas
as pessoas com quem eu falava pareciam ter visões muito facciosas e eu achava
difícil confiar em
alguém. Esse é um dos interesses do livro, porque levanta a
questão do rigor da informação sobre Angola e qual é a informação em que
podemos confiar", explica Lara Pawson.
O
27 de Maio de 1977 é descrito como uma tentativa de golpe de Estado por
"fraccionistas" do próprio MPLA, então já no poder do país
recém-independente, contra o Presidente Agostinho Neto e "bureau
político" do partido.
Segundo
vários relatos, milhares terão morrido na reacção das FAPLA, nomeadamente os
dirigentes Nito Alves, então ministro da Administração Interna, e José
Van-Dúnem, mas foi difícil para Lara Pawson alcançar uma "versão definitiva"
sobre os interesses e objectivos daquele movimento, que alegou tratar-se de um
`contragolpe`.
"Uma
das discussões foi saber se foi manifestação ou golpe de Estado e o que aprendi
após falar com angolanos, em particular o povo, é que muito deles acreditavam
estar a participar numa manifestação pacífica. Mas, por outro lado, o facto de
a 9ª Brigada se ter envolvido, de a rádio ter sido ocupada durante várias horas
por homens com armas e as prisões invadidas parece difícil negar que não houve
tentativa de golpe", salienta a autora.
Outra
questão controversa que tentou esclarecer foi o número de mortos resultantes da
resposta do regime, e que variam, segundo as versões, entre 20 mil a 30 mil
mortos, número dado à autora pelo irmão de José Van-Dúnem, João, a 100 mil
mortos reivindicados pela Fundação 27 de Maio.
"O
mais próximo que consegui de uma versão oficial foi de Fernando Costa Andrade,
antigo director do Jornal de Angola. Ele disse que o ministro de Defesa da
altura tinha estimado pelo menos 2.000 mortos. Se um ministro diz isto, é
porque no mínimo foram 2.000 mortos, mas podem ter sido mais", referiu
Lara Pawson.
O
envolvimento de Moscovo, a existência de fracturas entre os próprios
fraxcionistas são outras questões que continuam em aberto, bem como o papel do
actual Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, que sucedeu a Agostinho
Neto no poder.
"Esta
é uma das questões que eu espero que o livro provoque: as pessoas do actual
regime precisam de prestar contas e descobrir quem esteve envolvido e quem não
esteve. Estas pessoas precisam de ser confrontadas por um tribunal e serem
interrogados antes de morrerem", sugeriu.
A
"complexidade e contradições" que rodeiam o assunto contribuíram para
a "obsessão" de Lara Pawson em querer escrever este livro num tom
romanceado, mas, passados 34 anos, descobriu que o assunto continua a ser um
"tabu" e que muitos dos envolvidos têm medo de falar, pelo que a
identidade teve de ser preservada no livro.
O
próprio receio do MPLA em "abrir a ferida" abriu espaço para que Nito
Alves seja actualmente idolatrado por jovens angolanos opositores ao regime,
disse a jornalista britânica, concluindo: "Esconder a verdade está a criar
cada vez mais o peso do próprio mito".