domingo, 2 de novembro de 2014

QUEM COZINHOU A SOPA EM HONG KONG?



M K Bhadrakumar [*]

sensacional reportagem da BBC revelando que os protestos em Hong Kong conhecidos como Occupy Central na realidade não foram espontâneos nem internos, mas sim coreografados cuidadosamente dois anos atrás e executados por forças estrangeiras e que cerca de 1000 activistas chineses poderiam ser "manifestantes treinados" corrobora as reportagens vindas de Moscovo há poucas semanas – as reportagens russas sem hesitações apontam o dedo aos EUA como mentor de tal empreendimento.

Em retrospectiva, Pequim parece ter lido as folhas de chá correctamente, tendo retirado grande quantidade de conclusões acerca da alquimia do misterioso fenómeno conhecido como as "revoluções coloridas" patrocinadas pelos EUA na última década. A ucraniana, naturalmente, é apenas a mais recente numa cadeia que começou na Geórgia em 2003 e é um facto mais ou menos estabelecido que estes chamados movimentos são realmente geopolíticos no seu carácter e inextricavelmente ligados às estratégias globais e políticas regionais dos EUA.

A Rússia tem sido o alvo principal e é interessante que agora na China também tenha sido feito um teste no terreno. É concebível que as "revoluções coloridas" constituam um tópico na cooperação de segurança Rússia-China, especialmente na região da Ásia Central.

O cronograma do empreendimento em Hong Kong pode ter tido algo a ver com a cimeira APEC (Asia-Pacific Economic Cooperation) em Pequim, programada para 10 de Novembro. As intenções podiam ter sido embaraçar o governo chinês ou mesmo testar seus nervos e impeli-lo a utilizar força para suprimir os protestos.

Por outro lado, pode ter havido expectativas no ocidente de que os protestos pudessem atear fogo ao tecido sócio-económico na "China continental". Alguns sabichões indianos na televisão estatal chegaram a visualizar um tal cenário apocalíptico.

Se assim é, o empreendimento fracassou quanto ao efeito desejado. A reportagem da BBC empana o Occupy Central quase irremediavelmente e qualquer agência de inteligência estrangeira saberia que os protestos se tornaram um "caso acabado" a partir de agora.

Na verdade, o mais impressionante é que a BBC tenha feito uma tal reportagem – agrupando os manifestantes de Hong Kong com sujeitos tão desacreditados como o grupo punk Pussy Riot da Rússia e um desertor da Coreia do Norte. É lógico que a Grã-Bretanha chegou à conclusão de que o Occupy Central fracassou para além da recuperação possível e a coisa certa a fazer sem mais tardar será distanciar-se do protesto.

A Grã-Bretanha saberia que pouco importando quaisquer aberrações na ordem política em Hong Kong, a verdade histórica é que a democracia em qualquer forma aparecer pela primeira vez na história de Hong Kong só depois de a cidade mudar de mãos e ficar sob o controle da China.

Na verdade, Pequim actuou com a cabeça fria. Ali não houve nada da brutalidade com que nós dispersámos Baba Ramdev da área de Ramlila dois anos atrás. Contudo, a abordagem de Pequim é na realidade dura como um prego. Muitos factores actuaram em favor de Pequim.

Na verdade Pequim deixou o caos seguir seu curso e estimou correctamente que em algum ponto mais cedo ou mais tarde a opinião pública em Hong Kong incrementalmente actuaria contra a resultante confusão e desordem. Aquela abordagem mostrou-se válida.

Pequim podia permitir-se uma abordagem tão calibrada por duas razões. Uma, porque Hong Kong já não é a locomotiva de crescimento para a economia da China. A cidade não é mesmo um dos vagões principais do comboio. Shanghai e várias outras regiões no Leste ultrapassaram Hong Kong em dinamismo e prosperidade. Basta dizer que a importância de Hong Kong para a economia chineses (e sua política externa) diminuiu consideravelmente e esta tendência só pode acentuar-se ao longo do tempo.

A segunda e mais importante razão é que a "opinião pública do continente" encarou os protestos em Hong Kong como um acto de petulância da "crianças mimadas" da cidade (as quais já desfrutam um excesso de democracia) ao invés de arautos da democratização da sociedade chinesa. Há igualmente uma forte probabilidade de que a opinião pública do continente acredite no papel da "mão estrangeira".

Pequim na verdade adoptou uma posição dura ao recusar a negociar sua prerrogativa para determinar o ritmo e a direcção da democratização da China. Ela também assinalou um nível de auto-confiança em dispersar uma operação da inteligência estado-unidense sem explodir de raiva. (De modo interessante, acalma compostura com a qual Pequim observou a estadia do Dalai Lama na América do Norte na véspera da cimeira APEC também é notável.)

A partir de agora, a utilização de métodos coercivos em Hong Kong compara-se favoravelmente com as medidas de força maciças nos protestos Occupy Wall Street, nos EUA, dois anos atrás. Parece que os diabos estrangeiros na Estrada da Seda calcularam mal. 

[*] Antigo embaixador da Índia.

O original encontra-se em blogs.rediff.com/mkbhadrakumar/2014/10/27/who-cooked-the-hong-kong-broth/

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

Portugal: A COLIGAÇÃO POR UM CANUDO



Pedro Marques Lopes – Diário de Notícias, opinião

1 Começa a parecer evidente que Passos Coelho não está interessado em fazer uma coligação com o CDS para as próximas eleições legislativas. Só isso pode explicar a forma como destrata publicamente Paulo Portas. Uma semana não lhe passa cartão na elaboração do Orçamento de Estado, na outra acusa-o de querer ganhar eleições baixando impostos e aumentando salários e nesta lembrou-o que lhe deu a tarefa de fazer uma reforma do Estado mas que ele ainda não cumpriu a sua missão. Foi, aliás, interessante ver como Portas e Passos iam trocando acusações através da comunicação social sobre quem devia fazer o quê no que diz respeito à reforma do Estado.

É compreensível que Passos Coelho queira criar um incómodo tal ao CDS que este se veja obrigado a concorrer sozinho. O líder do PSD sabe que não pode tomar a iniciativa de romper com a coligação. Isso daria um trunfo ao CDS: não pode ser o PSD a dar a ideia de que os centristas não teriam concordado com todas as opções da governação, porque isso abriria um espaço de voto ao eleitorado de centro-direita que não se reviu neste governo. Por outro lado, Passos Coelho sabe que terá de dar mais deputados ao CDS do que os centristas poderiam obter se concorressem sozinhos. Sendo previsível que o PSD perca muitos deputados, será complicado explicar ao aparelho social-democrata que ainda terão de se encaixar deputados do CDS.

Para piorar mais o cenário, os deputados extra que o PSD poderá dar ao CDS poderão servir para que os centristas façam um arranjo de governação com o PS. Seria estranho o CDS concorrer coligado com o PSD e depois aceitar viabilizar um governo do PS, mas a inevitável confusão em que entrará o PSD no período pós-eleitoral - até que se encontre um interlocutor no PSD levará meses -, e com a pressão que existirá para que haja um apoio maioritário na Assembleia, não será disparatado pensar que essa pouco ortodoxa solução possa acontecer. Claro está que se parte da hipótese provável que nem o PS ganhará com maioria absoluta nem existirão votos à esquerda do PS que permitam um governo suportado por uma maioria absoluta.

E o CDS? Os centristas sabem que se o divórcio partir deles, para ter algum espaço político, terão de justificar porque é que aceitaram deixar cair todas as suas bandeiras (contribuintes, pensionistas). Teriam de enveredar pelo discurso do coitadinho que tentou mas que os outros malandros não deixaram. Podem, claro está, defender intransigentemente toda a herança dos últimos anos, mas aí nada os separará do PSD. Nesse caso, o que levará um eleitor que concorde com a governação a votar no CDS em vez de no PSD? Pouco ou nada, esse cidadão votará naquele que acredita ser o partido mais capaz de derrotar os socialistas. Qualquer uma destas alternativas poderá devolver ao CDS o título de partido do táxi.

Mas vejamos as coisas de outro ângulo. Partindo do princípio de que o CDS, em caso de ir coligado com o PSD, se compromete a não viabilizar sozinho um governo do PS, os poucos deputados que o CDS poderá vir a obter serão mais importantes para o aparelho - o tal que ajudou decisivamente Paulo Portas a revogar o carácter irrevogável da sua demissão - do que os suplementares que o PSD lhe garantiria: é que esses poderiam permitir ao CDS manter-se como partido de poder.

Claro está, podia olhar-se para uma eventual ida do CDS sozinho às eleições como um reposicionamento ideológico, colocando-o como um partido de verdadeiro centro. E não há dúvida de que esta opção do PSD - que não durará muito - em tornar-se no partido mais à direita do espetro político ajudaria o CDS. Só que o problema do CDS neste momento é de sobrevivência e não de escolhas político-ideológicas.

Muita água ainda vai correr na relação entre o PSD e o CDS, mas há algo que parece claro: a manter-se a tensão que existe entre os dois partidos, que a guerra pública entre os dois líderes é apenas a ponta do icebergue, a ideia de concorrerem juntos parece distante.

2 É no Orçamento do Estado que estão espelhadas as grandes opções políticas. Da oposição, sobretudo da que ambiciona governar, não se espera propriamente a apresentação de um orçamento alternativo, mas pistas do que seria a sua alternativa e, pelo menos, um questionar bem fundamentado das medidas governamentais.

É difícil conceber um OE que levante tantas dúvidas, que mostre tantos erros de avaliação, que exiba tantas falhas de rigor.

Digamos que não augura nada de bom ver o PS a fazer um discurso cheio de generalidades e lugares-comuns em que não se vislumbrou nem uma luzinha de alternativa. Não é admissível que o PS se tenha apresentado no mais importante momento do ano político tão pouco combativo e, mais do que tudo, tão seco de ideias.

Se há algo que os portugueses já aprenderam, e a duras penas, é a não passar cheques em branco. O pior que nos podia acontecer era alguém ganhar as eleições apenas com a promessa vaga de que irá fazer melhor ou menos mal. Não chega.

*Gestor

Alunos proibidos de falar português preocupa comunidade no Luxemburgo




Diretor de turma não quer que os alunos falem português nas aulas e a ministra da Família luxemburguesa apoia a decisão. Portugueses temem desvalorização da língua materna.

O caso de um director de turma que proibiu os alunos de falar português nas aulas, uma decisão aplaudida pela ministra da Família do Luxemburgo, está a preocupar a comunidade portuguesa no país, que considera a medida "castradora".

Para o presidente da Confederação da Comunidade Portuguesa no Luxemburgo (CCPL), a proibição pode levar também a um sentimento de desvalorização da língua materna, contrariando as políticas do Governo luxemburguês, que vem defendendo a importância do português para o sucesso escolar dos imigrantes.

"Eu compreendo que na escola os alunos se exprimam na língua em que estão a ser ensinados, mas proibir genericamente o português nas aulas é uma forma de castração", disse à Lusa José Coimbra de Matos, sublinhando que "se as crianças partirem do princípio que a língua delas é proibida no sistema escolar, vão sentir-se inferiorizadas em relação aos outros".

O dirigente associativo acusou ainda o Executivo luxemburguês de "incoerência" entre "aquilo que diz e aquilo que faz". "O Governo luxemburguês diz que tem de se apostar no multilinguismo, e depois surge uma medida destas", lamentou Coimbra de Matos.

O presidente da Confederação Portuguesa garantiu à Lusa que o caso não é único no Luxemburgo, e diz que há mesmo creches em que a língua portuguesa é proibida. "Pessoas que trabalham em creches públicas informaram-nos que as crianças são punidas se forem apanhadas a falar português", contou à Lusa Coimbra de Matos, para quem a medida discrimina sobretudo a comunidade portuguesa. "Será que os que falam inglês ou italiano têm o mesmo tratamento?", questionou o presidente da CCPL.

O caso, noticiado pela Rádio Latina, mereceu a aprovação da ministra da Família e da Integração do Luxemburgo, Corinne Cahen. Num 'post' publicado pela ministra na rede social Facebook, Corinne Cahen defendeu a promoção da aprendizagem de várias línguas "desde o ensino precoce".

Em comentário ao 'post' da ministra, um dia depois, uma mãe disse que temia que "o tiro saísse pela culatra", acrescentando: "Na turma do sétimo ano da minha filha, 14 dos 20 alunos são portugueses, e o director de turma decidiu que não podem falar português nas aulas, mas que o luxemburguês é obrigatório". A ministra respondeu ao comentário, dizendo: "Decisão acertada do director de turma".

Para o presidente da Confederação da Comunidade Portuguesa no Luxemburgo, o comentário da ministra mostra que há "dois pesos e duas medidas" na política do Executivo luxemburguês.

"O próprio Ministério da Educação do Luxemburgo diz que é importante valorizar a língua materna e quis que o português fosse incluído no boletim escolar, e agora surge este caso que ainda por cima é aprovado por alguém com responsabilidades no Governo", lamentou o dirigente associativo.

O 'post' na página do Facebook da ministra da Família, a que a Lusa teve acesso, foi entretanto apagado. A Lusa tentou ouvir a ministra sobre este caso, mas fonte do seu gabinete informou que Corinne Cahen está fora do país.

A Lusa questionou também a autora do comentário na rede social que denunciou o caso da proibição de falar português, mas a mãe da aluna do 7° ano (o primeiro ano do ensino secundário no Luxemburgo) recusou revelar em que liceu o caso se passou ou prestar declarações.

No Luxemburgo há cerca de 100 mil portugueses, que representam cerca de 20 por cento da população no país.

Segundo dados do Ministério da Educação do Luxemburgo, o português é a segunda língua materna mais falada nas escolas do país, com 28,9% de falantes, a seguir ao luxemburguês, com 39,8%, mas à frente dos outros dois idiomas oficiais do Grão-Ducado, francês (11,9% de falantes) e alemão (2%).

Os alunos portugueses representam mais de vinte por cento dos estudantes em todos os níveis de ensino no país, uma percentagem que no ensino secundário técnico ronda os 28 por cento, segundo dados do Ministério da Educação de 2012/2013.

Lusa, em Diário de Notícias

Portugal: O ESPETÁCULO DEPRIMENTE DA JUSTIÇA



Paula Ferreira – Jornal de Notícias, opinião

São apontados como responsáveis pelo crash que deixou 44 dias os tribunais portugueses moribundos: um especialista em Ciência Política, outro em Marketing. Paula Teixeira da Cruz encontrou os rostos que, parece acreditar a ministra da Justiça, diminuem a sua responsabilidade política. As notícias vindas agora a público devem dar que pensar. O Estado, esse pequeno monstro que para tudo pede pareceres, cria grupos de trabalho e comissões pagas a preços de ouro - dizem até ser essa uma das explicações por que a despesa pública não emagrece - entregou a um indivíduo, que entrou na PJ como segurança e, em dois anos, ascendeu à direção do Departamento de Arquitetura de Sistemas do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, a gestão do sistema informático do Ministério da Justiça.

Bem pode Paula Teixeira da Cruz usar a velha fórmula de pedir que a Justiça investigue e daí lavar as mãos. Antes disso, a senhora ministra deve uma explicação ao país, aos cidadãos. Esta novela leva já episódios em demasia e cada um mais deprimente que o anterior.

Deixem a Justiça investigar. Se de facto houve sabotagem, como Paula Teixeira da Cruz deu a entender, é muito grave. Todavia, antes de a Justiça chegar a alguma conclusão, a ministra, ou alguém por ela, tratou de crucificar várias vítimas. A Procuradoria-Geral da República há de chegar a alguma conclusão - no limite, arquiva o caso. As responsabilidades políticas são outra coisa: nesse campo, esta ministra não tem tido limites para as chutar para canto.

No mesmo dia em que os rostos do colapso do Ministério da Justiça foram conhecidos, o JN relata mais um episódio de um outro crash. Nas escolas portuguesas, há alunos ainda sem aulas: há professores colocados de manhã e descolocados ao final da tarde.

Nádia Bastos, docente do primeiro ciclo, recebeu um e-mail a colocá-la no agrupamento de escolas de Carnide. A viver em Ermesinde, no concelho de Valongo, preparava-se para mudar para Lisboa com as duas filhas de três e cinco anos. Mulher prevenida, decidiu ligar primeiro para a escola. Poupou a viagem: pois a vaga já estava preenchida. A confirmação chegou mais tarde, novamente por e-mail, com um pedido de desculpa da Direção-Geral da Administração Escolar para que desconsiderasse o mail anterior. Era um erro informático.

É caso para perguntar quem serão os técnicos informáticos contratados pelo Ministério da Educação. Se o Ministério da Justiça escolheu um antigo segurança, licenciado em Ciência Política, e um especialista em marketing, sem qualquer formação em Informática, que razões teria o Ministério de Nuno Crato para não fazer o mesmo?

BLOQUEIO A CUBA: OS ESTADOS UNIDOS CONTRA A VONTADE DO MUNDO



José Reinaldo Carvalho* - Vermelho, opinião

Cuba acaba de conquistar mais uma vitória política e diplomática em sua luta contra o bloqueio imposto há mais de meio século pelos Estados Unidos.

Na última terça-feira (28), 188 países manifestaram-se a favor da resolução contra o bloqueio, apresentada pela maior das Antilhas na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Apenas os imperialistas estadunidenses e os sionistas israelenses votaram contra e três outros países - Ilhas Marshall, Micronesia e Palau - se abstiveram.

É a 23ª vez que a organização multilateral se pronuncia com clareza irrefutável pelo fim da odiosa medida que prejudica o desenvolvimento do país e afronta as normas de convivência democrática entre as nações.

De nada adiantaram as manobras e pressões sobre a comunidade internacional para impedir a derrota dos Estados Unidos. O resultado põe à mostra uma vez mais o isolamento da superpotência norte-americana nesta questão e o amplo apoio, praticamente unânime, obtido por Cuba.

A primeira vez que semelhante documento foi apresentado na Assembleia Geral da ONU foi em 1992, ocasião em que 59 países votaram a favor de Cuba. O apoio mais significativo à ilha circunscrevia-se à região latino-americana e caribenha e ao continente africano. Não representava ainda um respaldo universal, como ocorre atualmente.

A partir de 1994, com o voto em conjunto da União Europeia, o apoio a Cuba na luta contra o bloqueio se ampliou. De lá para cá, houve um salto no número de países que passaram a acompanhar a posição cubana na Assembleia Geral da ONU. Desde 2005, foi superada a marca dos 180 países e a partir de 2012, portanto há três anos consecutivos, são 188 os Estados nacionais representados na ONU que votam contra o bloqueio.

É importante salientar também que ultimamente o tema tem sido debatido nos grupos regionais da ONU, como o G-77+China, que reúne os países em desenvolvimento, o Caricom, que representa a comunidade caribenha, o Movimento dos Países não Alinhados , a União Africana e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac). Em todos esses, há amplo consenso contra o bloqueio dos Estados Unidos a Cuba.

Em toda a história da votação da resolução proposta por Cuba contra o bloqueio, os Estados Unidos nunca alcançaram mais de quatro votos, o que demonstra o isolamento político e diplomático da superpotência nesta matéria e que pode ser constatado nos debates e confrontos sobre outras questões cruciais no cenário internacional. Sinal dos tempos, em que emergem as forças da resistência e da luta contra o hegemonismo e por uma nova ordem mundial.

O bloqueio a Cuba é um anacronismo que precisa urgentemente acabar, sendo contestado crescentemente nos próprios Estados Unidos. É uma medida que afeta econômica e socialmente o país e contraria normas consagradas no direito internacional.

O resultado da votação contra o bloqueio na Assembleia Geral da ONU é uma vitória do povo cubano e de todos os povos do mundo.

*Jornalista, Diretor do Cebrapaz, membro da Rede de Intelectuais em Defesa da Humanidade e editor do Vermelho.

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Brasil: Ultradireita monta cerco no Congresso e busca emparedar presidenta



Correio do Brasil - de Brasília e São Paulo

Os votos ainda não esfriaram nas urnas, após declarada a vitória da presidenta Dilma Rousseff para um novo mandato, até 2018, e as forças mais reacionárias da sociedade brasileira já se articulam. Partidos de centro-direita, entre eles grande parte do PMDB e do PDT que, presumidamente, deveriam integrar a base aliada, articulam um bunker para deter as reformas sociais defendidas pela esquerda que, também em tese, venceu as eleições deste último domingo. Os parlamentares conservadores, porém, formam a maioria absoluta do Congresso, o que significa um jogo pesado para a presidenta, reconduzida ao cargo por uma diferença de apenas 3,5 pontos para o adversário tucano, Aécio Neves.

Na véspera, a bancada do PMDB na Câmara dos Deputados aclamou seu líder, Eduardo Cunha – integrante da extrema-direita no Estado do Rio – como candidato à presidência da Casa. O anúncio ocorre três meses antes da eleição, em um claro movimento de pressão ao PT e o governo para que aceite a candidatura do peemedebista, desafeto declarado da presidenta Dilma. A próxima eleição para presidente da Casa será em fevereiro de 2015, quando os novos deputados tomam posse.

A estratégia da bancada peemedebista da Câmara ocorre à revelia da cúpula do PMDB e visa a atrair partidos de oposição, na queda de braço entre o governo e a atual legislatura. Além de não ter a simpatia da presidente reeleita Dilma Rousseff, Cunha não cultiva boas relações com o vice-presidente Michel Temer, que também preside a legenda. Até agora, governo e PT, que terá a maior bancada da Câmara em 2015, estão apenas assistindo aos movimentos de Cunha, o que pode colaborar com sua estratégia de pavimentar o terreno para a candidatura até um ponto irreversível. Aliados de Cunha romperam o acordo com os petistas, que previa um rodízio no comando da Câmara. Agora, seria a vez do PT apontar um candidato à Presidência, com o apoio do PMDB.

Vara curta

Os parlamentares da direita sentem-se fortalecidos, após impor meia derrota ao governo, dois dias depois da reeleição, numa matéria carregada de simbolismo democrático como a que previa a criação de conselhos populares para debater e aperfeiçoar as medidas governamentais. Após acusar o ato de “bolivarianismo”, o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, colocou o tema em pauta quando a centro-direita formava maioria em Plenário. O decreto presidencial apenas regulamenta algo que é lei há 11 anos. Tratava-se apenas de mandar um duro recado à presidenta, ainda que signifique cutucar a onça com vara curta.

Na análise do jornalista e blogueiro Rodrigo Vianna, “o governo Dilma terá a dura tarefa de se equilibrar entre dois fogos. De um lado, está a força das ruas – que empurrou Dilma para a vitória. De outro, está o “centrão” no Congresso. Na Câmara, a centro-esquerda (PT, PCdoB e mais alguns votos no PSB e PDT) tem menos de 100 deputados. Isso mesmo: cerca de 20% da Câmara”.

“O PMDB – que seria o aliado de “centro” a garantir estabilidade – envia sinais de rebelião. Mas Dilma não pode prescindir do centro para governar. O PSD de Kassab deve assumir papel importante. Pode-se aglutinar, em torno do PSD, uma base de apoio de centro que ofereça a Dilma um contraponto, se o PMDB de Eduardo Cunha insistir na chantagem. Na teoria, PSD/PR/PP/PDT podem formar um bloco com mais de 120 deputados (o dobro do PMDB)”, acrescenta.

Na matemática política, porém, não há resultados exatos. “Se ceder demais ao centro noCongresso, Dilma desagradará as ruas – onde colheu o apoio que lhe garantiu a vitória numa campanha em que o cerco midiático conservador chegou a níveis semelhantes ao de 1954, no ataque final a Getúlio Vargas. A situação de Dilma pode encontrar paralelo também no governo Jango. Ele era pressionado pela esquerda – para avançar nas Reformas de Base. Só que o aliado PSD (partido de centro), rechaçava as reformas. Jango queria a reforma possível – que pudesse ser aprovada no Congresso. Pressionado pela esquerda, foi para o tudo ou nada. Perdeu apoio do PSD, e foi derrubado por um golpe em 1964″, lembra Vianna.

O PT, lembra o articulista, “até hoje abdicou da rua, resolvendo tudo com conciliação. Esse tempo acabou. Mas não sejamos ingênuos, nem extremistas. A negociação segue sendo necessária. A esquerda não tem força para impor sua agenda ‘pura’ ao país. Apostar nisso é apostar num desastre”.

Ministério complicado

Um dos mais poderosos instrumentos de negociação que a presidenta conserva, na tentativa de formar uma maioria estável no Congresso, a caneta de que dispõe para assinar a formação do próximo ministério está carregada e pronta para entrar em ação. Dilma, segundo o editorialista da agência brasileira de notícias Carta Maior, Saul Leblon, “fará de seu novo ministério uma trincheira de competência técnica, mas também um instrumento de ação política para abortar cercos e superar flancos revelados antes e
depois das urnas”.

“O PT, partidos aliados e movimentos sociais naturalmente serão contemplados: foi deles a responsabilidade pela candidatura vitoriosa em outubro. Mas o setor empresarial também será incorporado. A concessão de um governante vitorioso é uma lâmina de dois gumes. Um deles fatia um pedaço do seu mandato para o mercado; o outro fatia um pedaço do mercado que os inconsoláveis pelotões do revanchismo querem perfilar na ordem unida do terceiro turno contra Dilma”, acrescentou.

Leblon, na defesa de um mercado mais simpático às reformas de base, cita exemplos como os de Luiza Trajano, dona do Magazine Luiza, ou o do aventado para o ministério da Fazenda Luiz Trabuco Cappi – “presidente de banco que pensa como a empresária, não por benemerência, mas de olho no avanço do crédito no país”. Segundo o colunista, eles “podem ser acomodados em um governo de composição acossado pelo terceiro turno golpista, associado aos rentistas que preferem lucrar sem produzir. Acercar-se de anteparos não antagônicos à construção de um desenvolvimento convergente é o que qualquer governante progressista sempre fez e fará, após renhida batalha eleitoral”.

O cerco à presidenta, no Congresso, porém, segundo o cronista de Carta Maior “não é uma miragem”. Há, segundo afirma, “a pretensão conservadora de isolar Dilma em uma Guantánamo institucional, e impedi-la de governar”.

“As operações de assalto estão explícitas nas manchetes ressentidas das horas que correm, nos perdigotos expelidos de colunas sulfurosas e na rejeição da Câmara ao projeto que institui conselhos populares –organismos consultivos para o aperfeiçoamento dos programas sociais do governo. São sinais do tipo: às favas as urnas! Reverter a escalada dos liberais que não se libertam jamais da UDN embutida nas veias, não se resolve com um ministério puro sangue. É mais difícil que isso”, afirma.

Segundo Leblon, as urnas deram mais quatro anos de governo a Dilma, após um período de falhas severas na condução política do país:

“Se falhar de novo, dificilmente haverá uma chance tão cedo outra vez”, conclui.

Na foto: Alves, presidente da Câmara, e Dilma, em recente encontro, evitam temas polémicos

Leia mais em Correio do Brasil

Brasil: BRINCANDO COM O FOGO, EXCELÊNCIAS?




Sei que não esqueceram Junho de 2013 e estão com raiva. Mas tentar barrar a Política de Participação Social pode ser insanidade

Alessandra Nilo – Outras Palavras

Srs. Deputados, por favor parem com esse mimimi sobre a inconstitucionalidade do Decreto Presidencial Nº 8.243. Afinal, qual foi a surpresa, por que tanto espanto? Essa não foi a primeira (e nem última vez) que recebem um decreto presidencial, e é fato notório que o executivo quase governa por Decretos e Medidas Provisórias. Há quanto tempo e por quantas vezes vocês os receberam e os aprovaram calmamente?

O tamanho desse incômodo parece mais um preciosismo para esconder podridões. E, afinal, o que a participação social tem de “insana” ou a ver com a “existência de 40 ministérios” ou com a escolha do staff governamental? Que argumentação é essa? Os simulacros não se sustentam mais tão facilmente.

Entendo que estejam irritados porque as pessoas comuns foram às ruas, disputaram discursos, ideias. Entendo que Henrique Alves está chateado por ter perdido as eleições, que metade do PMDB não gostou do resultado; que o PSB está em crise de identidade e que PSDB e DEM, juntinhos, decidiram apertar o governo. Entendo, mas não adianta mandar recados, faremos valer nossos direitos.

Entendo também que a prática dos que rechaçaram o Decreto tem a ver com interesses partidários pouco republicanos de muitos dos senhores, e apenas corrobora com uma já generalizada desconfiança, partilhada por todas as classes e meios, sobre os que legislam para poucos e ignoram a maioria.

Sim, a realidade não está fácil e o descontentamento paira sobre muitas cabeças.

Entendo também que os que barraram a Política Nacional de Participação Social (PNPS)devem estar mesmo com raiva. Saíram de alguma forma derrotados pelas urnas e sabem o que acontece quando a sociedade ocupa as ruas. Ruas sempre tão sedutoras… Sei que não esqueceram tão rápido de Junho de 2013. Lembro bem como os senhores voltaram correndo de seus estados, trabalharam de segunda a sexta em turnos regulares de trabalho, fazendo por pressão e no grito o que sempre deveriam ter feito, e o que são mais do que bem-pagos para fazer. Óbvio, estamos conscientes que fizeram muita fita, mas nós não somos meras plateias, estamos ativas no processo.

Realmente detesto ter que concordar com os comentários recentes sobre alguns partidos e parlamentares toscos e anacrônicos que temos, cujas composturas indicam total desrespeito à democracia. Que feio, senhores. Brincando com fogo?

Não vai ser tão difícil conseguir aliados. Seja de direitas, de esquerdas, de centros ou independentes, ainda tem muita gente cujo voto não tem preço. Pela PNPS, em todas as regiões e partidos será possível conseguir aliados/as.

Desenhando: 40 milhões de pessoas que votaram em branco, mais oito milhões que defendem o plebiscito sobre a Reforma Política não irão divergir num tentativa tão óbvia de retrocesso democrático. Qualquer pessoa sabe como funcionam as redes, o quanto as articulações sociais se multiplicam e como as informações circulam entre bytes e bits rapidamente. Existem organizações e movimentos, a sociedade é múltipla e nem sempre tem donos.

Finalmente, registro que refiro-me apenas aos “Senhores Deputados” porque, de fato, essa maioria masculina na política deixa muito a desejar. Tenho certeza de que se fossemos metade + 1 no Congresso, nós, mulheres, iríamos aprovar sem grandes dramas esse Decreto, uma demanda de anos de uma parte bem significativa da população brasileira. A situação é, pois, muito grave: além de terem uma noção limitada e limitante de Democracia, ao que parece, muitos dos Senhores sequer sabem fazer contas.

Sem meu voto e sem afeto, despeço-me.

Leia mais em Outras Palavras
Bancos: o peso morto da economia brasileira - Ladislau Dowbor
Meritocracia, trapaça e depressão - George Monbiot

Juíza argentina ordena prisão e extradição de 20 agentes da ditadura franquista



Vitor Sion, São Paulo – Opera Mundi


Devido à Lei de Anistia espanhola, vítimas do regime de Francisco Franco iniciaram processo na Argentina em 2010

A juíza argentina María Servini de Cubría ordenou a detenção e a extradição de 20 agentes que trabalharam para o governo espanhol durante a ditadura franquista (1936-1975). A decisão judicial prevê que os condenados sejam levados à Argentina para serem interrogados sobre crimes de lesa humanidade cometidos nas décadas de 1960 e 1970.

Para dar legitimidade à sua medida, a magistrada fez uso do princípio de justiça universal, o mesmo que permitiu a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet no Reino Unido, em 1998, e prevê a aplicação extraterritorial da lei penal para casos de crimes contra a humanidade. Isso porque, ao final do governo franquista, foi aprovada uma lei de anistia que dificulta a evolução de julgamentos na Espanha sobre crimes cometidos pelo Estado nesse período.  

Entre os condenados estão os ex-ministros Rodolfo Martín Villa e José Utrera Molina. A Interpol foi notificada na quinta-feira (30/10).  

Não é a primeira vez que María Servini de Cubría tenta levar ex-agentes franquistas à Argentina.Em 2013, ela pediu a extradição do ex-guarda civil Jesús Muñecas Aguilar; do ex-segurança de Franco e da Casa Real Celso Galván Abascal; do ex-comissário José Ignacio Giralte González;e do ex-inspetor José Antonio González Pacheco, conhecido como “Billy El Niño”. Na ocasião, a Justiça espanhola recusou o pedido de enviá-los à Argentina, mas os acusados foram ouvidos no país europeu, que retirou os seus passaportes.

O processo judicial contra ex-agentes do Estado espanhol foi iniciado na Argentina em 2010, a partir do pedido de vítimas do franquismo e organizações de direitos humanos. 

Na foto: Ex-ministro Rodolfo Martín Villa é considerado responsável pelo assassinato de ao menos cinco opositores na década de 1970 - Wikicommons

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México: Comunidade Ayotzinapa busca respostas sobre paradeiro de estudantes desaparecidos



Alejandro Sánchez - Emeequis - Ayotzinapa – Opera Mundi

Moradores da região, famílias e alunos que ficaram na Escola Normal Rural Raúl Isidoro Burgos se unem em luto e revolta por desaparecimento dos 43 normalistas

Genoveba Sánchez Peralta é, talvez, a mulher mais infeliz do mundo neste momento: há algumas semanas, pouco depois de sepultar o marido, passou a procurar o filho, o estudante Israel Caballero Sánchez, 21 anos, desaparecido. Israel usava jeans e camiseta de cor clara na noite do dia 26 de setembro, em que policiais de Iguala atacaram a tiros o ônibus em que viajavam os alunos da Escola Normal Rural Raúl Isidoro Burgos, entregando ao menos 43 deles (incluindo Israel), em seguida, ao cartel Guerreros Unidos. Bom, isso é o que todos dizem, mas a verdade é que ninguém sabe do paradeiro dos estudantes ou quem os levou.

Os jovens iam à marcha do dia 2 de outubro na Cidade do México, em memória do assassinato dos estudantes em Tlatelolco em 1968. A manifestação também lembraria dois companheiros assassinados pela polícia na estrada federal que vai até Acapulco, em dezembro de 2011, enquanto os alunos a bloqueavam para exigir que as autoridades aumentassem os recursos destinados à ração alimentícia diária por estudante, que não chegava a 35 pesos [cerca de R$ 6] para três refeições por dia.

A mãe de Israel caminha pela quadra de basquete da escola, em cujos muros foram içadas as bandeiras de todas as escolas normais rurais do país, em sinal de união e luta. Também estão pintados ali os rostos de Karl Marx, Friedrich Engels e Lênin, cujas ideias seguem vivas e fortes na região. "Podem nos faltar recursos, mas nunca nos faltará razão", lê-se em uma das paredes.

Cento e quarenta novos alunos ingressaram, no último mês de julho, na escola em Ayotzinapa, um povoado com 84 habitantes, segundo o censo de 2010. Conurbado com Tixtla, o vilarejo fica no alto de uma região montanhosa no centro do estado mexicano de Guerrero. Esta nova geração, uma das mais pobres entre as que passaram por estas salas de aula nos últimos anos, foi recebida pelos companheiros de níveis mais avançados com a seguinte saudação: "Bem-vindos ao que não tem início. Bem-vindos ao que não tem fim. Bem-vindos à luta eterna para melhorarmos dia após dia. Alguns a chamam de necessidade, mas nós a chamamos de esperança".

A formação na escola inclui o trabalho na horta e no jardim ou o cuidado do gado, além dos grupos de estudo noturnos em que os alunos de classes superiores estimulam os mais novos a analisar a situação em que vivem suas comunidades. As discussões costumam se prolongar até cerca de meia-noite. “Aqui todos trabalham duro. Devem cumprir com o trabalho dos professores, mas também com o do Comitê Executivo Estudantil (CEE). Neste esforço, são valorizados nossos ideais”, diz Víctor, aluno do segundo ano, que orienta os novos estudantes sem descuidar das aulas ou das leituras e debates em seu grupo de estudos.

O nível de participação política e consciência social que adquirem aqui é talvez um reflexo da pobreza e da miséria que assola as comunidades da serra ao redor de Ayotzinapa. Dificilmente outra escola de nível superior no país conseguiu se organizar e se envolver com a sociedade da mesma maneira. As 16 matérias abrangem várias atividades: imprensa e propaganda, higiene, primeiros socorros, transporte, difusão cultural, esportes, centro de informática, finanças, academia e COPI (Clube de Orientação Política e Ideológica). No COPI, “perguntamos que problemas detectam em suas comunidades. Eles nos contam. Sempre destacam os líderes locais, as humilhações por que passam seus pais camponeses”, explica Víctor. “É como compreendem, de baixo, aspectos maiores do panorama nacional.”

Entre os pais camponeses que se uniram para exigir do governo a localização dos filhos, Fernando é o de fala mais dura. Percorre toda a escola com os olhos e se detém em um ponto. A ausência parece tomar conta dele. Há pouco tempo passou por uma situação amarga. Viajou até Iguala, onde a polícia o colocou em uma caminhonete junto com outros pais para percorrer vários lugares em busca das supostas fossas onde podem estar enterrados os restos mortais dos 43 estudantes. "Eles nos trataram como marionetes. ‘Vamos para cá. Não, melhor irmos pra lá’", relembra. Há algumas semanas, esteve também na Cidade do México, a fim de se reunir com o subsecretário de Governo, Luis Miranda, que prometeu dar aos pais todo o apoio em busca do paradeiro de seus filhos. Fernando questiona também o papel da imprensa, que, em sua opinião, foi cúmplice do atual governo em sua tentativa de ocultar os atos violentos no país e o aumento no número de mortos, que já ultrapassou aquele registrado no período do presidente Felipe Calderón [2006-2012]. "Como as autoridades não sabem onde estão os rapazes, se ali mesmo em Iguala, para onde os levaram, está o 41º Batalhão de Infantaria?", indaga.

Na zona da escola conhecida como "cavernas do Corredor G", Bernardo foi o único ocupante do quarto número 4 que escapou do desaparecimento. É integrante do grupo musical da escola; naquele dia teve que ensaiar e, por isso, ficou limpando seu trompete. Na noite de 26 de setembro, antes da meia-noite, os líderes estudantis ligaram para a base para que todos se concentrassem na quadra de basquete. Deram a eles a notícia que paralisou a todos: "A polícia atacou nossos companheiros que estavam a caminho de Iguala". Um dos rapazes conseguiu ligar para a escola e contou que, quando tentavam sair do centro já com os dois ônibus que os trariam de volta, policiais os impediram, atravessando uma patrulha na estrada para cercá-los. Quando os estudantes desceram para tentar mover a viatura, começaram a receber tiros. "Israel Jacinto estava contando como estavam atacando. Escutamos pelo celular tiros que pareciam de escopetas, de revólveres; dava para escutar os barulhos das caminhonetes, gritos, golpes e vidros quebrando", relata Bernardo. O saldo: 43 desaparecidos, seis mortos.

Ernesto Pérez estaciona sua kombi em frente à quadra de basquete da escola. Carmen Hernández desce com pratos descartáveis, copos e uma bandeja de madeira. Ele pega dois panos de prato e os coloca sobre as alças de uma panela de aço de 30 litros cheias de pozole em ebulição, e a leva com dificuldade até uma mesa. “Vamos, sobrinhos, que vai esfriar”, grita Carmen, que tenta transmitir sua atitude positiva às famílias dos 43 desaparecidos.

A cena se repete de manhã, de tarde e de noite desde o ataque. Alguns levam café, feijões, pão, atole [bebida de milho tradicional no México]; outros levam chicharrón com molho verde, miudezas com caldo de tomate, picadinho, chá ou o que podem. Chegam também famílias com água e papel higiênico. Ficam um pouco, abraçam as pessoas e vão embora. A solidariedade dos povoados vizinhos e até mesmo a que chega de outros municípios é notória.

O senhor Pérez conta que há menos de dois meses teve dengue. Alguém deu a notícia ao pessoal da escola normal. O Comitê Executivo Estudantil organizou um grupo com alunos recém-ingressados que foi imediatamente visitar o camponês convalescente. Não era a primeira vez que recebia auxílio dos estudantes. Alguns anos antes, quando morreu sua sogra e ele não tinha dinheiro, os rapazes foram, cavaram a sepultura e, mais tarde, chegaram com um porco criado na granja que usam em suas atividades do módulo de produção. O animal serviu para alimentar os presentes durante o funeral.

Muitas famílias da região guardam boas recordações dos estudantes. Muitas se lembram da tragédia do furacão Manuel, cujas chuvas provocaram inundações de até um metro e trinta centímetros. Ao ver a magnitude dos danos, os rapazes começaram a trabalhar imediatamente. Improvisaram canoas com as bases dos colchões e começaram a resgatar idosos e crianças. O exército só chegou semanas mais tarde, e como os soldados levavam uma equipe de televisão para gravar as atividades de resgate, as pessoas partiram para cima deles. 

Tradução: Henrique Mendes

Matéria original publicada na Emeequis, revista semanal mexicana sobre cultura, política e sociedade.

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DE QUE LADO ESTÁ A TURQUIA?



Patrick Cockburn*, London - Pravda

Durante o verão, o ISIL - Estado Islâmico de Iraque e Levante [Síria] - derrotou o exército iraquiano, o exército sírio, os rebeldes sírios e a guerrilhapeshmerga dos curdos iraquianos; estabeleceu um estado que vai de Bagdá a Aleppo e da fronteira do norte da Síria aos desertos do Iraque, ao sul. Grupos étnicos e religiosos dos quais o mundo praticamente jamais ouvira falar - incluídos os iazidis de Sinjar e os cristãos caldeanos de Mosul - tornaram-se vítimas da crueldade do ISIL e de suas perversões sectárias. Em setembro, o ISIL moveu sua atenção na direção dos dois e meio milhões de sírios curdos que ganharam autonomia de facto em três cantões bem ao sul da fronteira turca. Um desses cantões, centrado na cidade de Kobani, virou alvo de assalto determinado.

Dia 6 de outubro, milicianos do ISIL haviam aberto caminho até o centro da cidade. Recep Tayyip Erdoğan previu que a cidade cairia em questão de horas; John Kerry discursou sobre a 'tragédia' de Kobani, mas disse - o que jamais fez sentido algum - que a captura da cidade não seria grande significado. Uma conhecida combatente curda, Arin Mirkan, se autoimolou, lançando-se contra forças do ISIL que avançavam: o gesto foi interpretado como sinal de desespero e de derrota iminente.

Com o ataque a Kobani, a liderança do ISIL quis provar que ainda pode derrotar seus inimigos, apesar dos ataques aéreos dos EUA contra eles, que começaram dia 8 de agosto no Iraque e dia 23 de setembro foram ampliados para invadir também a Síria. No ataque contra Kobani, os milicianos do ISIL cantavam: "O Estado Islâmico permanece, o Estado Islâmico cresce." No passado, o  ISIL optou - foi uma decisão tática - por abandonar batalhas que achasse que não poderia vencer. Mas a batalha de cinco semanas por Kobani já durara muito e fora muito noticiada para o mundo, para que os milicianos pudessem recuar sem perder prestígio. O apelo que tem o Estado Islâmico entre sunitas sírios, iraquianos e por todo o mundo deriva da crença de que suas vitórias são presentes divinos e inevitáveis; qualquer fracasso abala diretamente a crença de que Deus estaria lutando ao lado do ISIL.

Mas aquela inevitável vitória do ISIL em Kobani não aconteceu. Dia 19 de outubro, revertendo a política na qual os EUA vinham investindo, os aviões norte-americanos passaram a entregar armas, munição e remédio aos que defendiam a cidade. Sob pressão dos EUA, a Turquia anunciou no mesmo dia que garantiria salvo conduto aos guerrilheiros curdos iraquianos da guerrilha peshmerga para saírem do norte do Iraque e se deslocarem para Kobani; hoje, esses guerrilheiros curdos já recapturaram parte da cidade.

Washington percebeu que, dada a retórica de Obama sobre um seu plano para "degradar e destruir" o ISIL, e com eleições para o Congresso que acontecerão dentro de apenas um mês, os EUA não podiam admitir que os terroristas colhessem mais uma vitória. E nesse caso especial, a vitória muito provavelmente seria comemorada com o massacre, diante de câmeras de televisão, montadas do lado turco da fronteira, de todos os curdos sobreviventes.

Quando o sítio começou, o apoio aéreo que os EUA deram aos que defendiam Kobani foi pouco mais que mínimo; com medo de ofender a Turquia, a força aérea dos EUA evitara qualquer associação com combatentes curdos em solo. Em meados de outubro, a política mudou, e os curdos passaram a fornecer aos norte-americanos informações detalhadas sobre alvos em terra, o que possibilitou que os ataques aéreos norte-americanos destruíssem tanques e artilharia do ISIL. Antes, os comandantes do ISIL haviam conseguido esconder com eficácia seu armamento e dispersar as próprias forças terrestres. Até ali, das 6.600 missões de ataques aéreos, só 632 haviam atingido algum alvo em terra. Mas, na campanha para tomar Kobani, os comandantes do ISIL tiveram de concentrar as forças em posições identificáveis, e tornaram-nas vulneráveis. Num período de 48 horas, houve cerca de 40 ataques aéreos norte-americanos, alguns a menos de 50 metros da linha de frente curda.

Não foi só o apoio aéreo que fez a diferença. Em Kobani, pela primeira vez o ISIL enfrentou inimigo declarado - as Unidades de Defesa Popular (YPG) e seu braço político, o Partido da União Democrática (PYD) -, os quais, sob aspectos importantes, assemelham-se. O PYD é o ramo sírio do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que desde 1984 luta por autodeterminação para os 15 milhões de curdos turcos. Como o ISIL, o PKK combina comprometimento ideológico fanatizado com expertise e talento militares, acumulados ao longo de muitos anos de guerra de guerrilhas. Originalmente de ideologia marxista-leninista, o PKK tem comando vertical e busca monopolizar o poder dentro da comunidade curda, tanto na Turquia como na Síria. O líder do partido, que está preso, Abdullah Ocalan, é objeto de poderoso culto à personalidade, e distribui instruções de comando da prisão onde é mantido, numa ilha turca no Mar de Marmara. A liderança militar do PKK opera de uma fortaleza nas Montanhas Qandil, no norte do Iraque, uma das maiores fortalezas naturais que há no planeta ("Estamos aqui há mais de mil anos", The Independent). A maioria dos combatentes, estimados em 7 mil, retiraram-se da Turquia, nos termos de um acordo de cessar-fogo em 2013, e hoje se movimentam de acampamento para acampamento nos vales e gargantas profundas das Qandil. São fortemente disciplinados e apaixonadamente dedicados à causa do nacionalismo curdo. Graças a isso conseguiram manter-se vivos ao longo de 30 anos de guerra contra o gigantesco exército turco, sempre capazes de se recompor apesar das perdas devastadoras que têm sofrido. Como o ISIL, o PKK, também enfatiza o martírio: combatentes mortos são enterrados em cemitérios super protegidos e muito bem cuidados, sempre no alto das montanhas, as sepulturas marcadas por pedras tumulares elaboradas. 

Lá, há imagens de Ocalan por todas as paredes: há seis, sete anos, visitei um abrigo do PKK nas Qandil e vi, na encosta da montanha, uma enorme imagem de Ocalan construída com pedras coloridas. É das raras bases de guerrilheiros, em todo o planeta, que pode ser vista do espaço.

Síria e Iraque estão cheios de exércitos e milícias que não combatem contra ninguém que possa responder ao fogo, mas o PKK e seus afiliados, o PYD e as YPG, são diferentes. Frequentemente criticados por outros curdos como grupo stalinista e antidemocrático, eles pelo menos construíram e mantêm capacidades para defender as próprias comunidades. A sequência de vitórias do Estado Islâmico contra forças superiores, no início desse ano, só aconteceu porque combatiam contra soldados, como os do exército iraquiano, absolutamente desmoralizados, com a moral em frangalhos, mal armados, sem munição e, até, sem comida, resultado da ação de comandantes corruptos e incompetentes; aqueles soldados, ou muitos deles, estão sempre prontos a desertar.

Quando alguns milhares de milicianos do ISIL invadiram Mosul em junho, estariam, em teoria, desafiando 60 mil soldados e policiais iraquianos. O verdadeiro número provavelmente mal alcança 1/3 disso: os demais não passavam de nomes em listas, com os oficiais embolsando os soldos; ou existiam mesmo, mas só porque pagam metade de seus soldos aos comandantes, em troca de jamais terem de aparecer nem por perto de acampamentos militares. A situação pouco melhorou nos quatro meses seguintes, depois da queda de Mosul dia 9 de junho.

Segundo um político iraquiano, recente inspeção de uma divisão blindada do exército iraquiano mostrou "que onde devia haver 120 tanques e 10 mil soldados, só havia 68 tanques e apenas 2 mil soldados".

A guerrilha peshmerga - literalmente "aqueles que desafiam a morte" - dos curdos iraquianos, tampouco é muito efetiva. São vistos frequentemente como soldados melhores que os do exército iraquiano, mas essa é reputação que conquistaram há 30 anos, quando combatiam contra Saddam; depois daquilo pouco combateram, exceto nas guerras civis curdas. Mesmo antes de serem expulsos pelo ISIL em Sinjar em agosto, observador atento da guerrilha peshmerga referiu-se a eles, depreciativamente, como 'pêche melba', que "só prestam para emboscadas nas montanhas".

Os sucessos do Estado Islâmico foram muito facilitados não só pela incompetência dos inimigos, mas também pelas muitas divisões que se veem entre eles. John Kerry vangloria-se de ter montado uma coalizão de 60 países, todos comprometidos com lutar contra o ISIL, mas desde o início já estava muito visível que muitos importantes membros da tal 'coalizão' não estavam lá muito preocupados com a ameaça-ISIL.

Quando começou o bombardeio contra a Síria, em setembro, Obama anunciou, com orgulho, que Arábia Saudita, Jordânia, Emirados Árabes Unidos, Qatar, Bahrain e Turquia uniam-se, todos, como parceiros militares dos EUA contra o ISIL. Mas, como os norte-americanos sabiam, todos esses são estados sunitas, que tiveram papel crucial no processo de arregimentar jihadistas para lutar contra governos eleitos na Síria e no Iraque. Foi problema político para os EUA, como Joe Biden confessou, para grande embaraço de todo o governo, numa conversa em Harvard dia 2 de outubro.

Biden disse que Turquia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos haviam promovido uma "guerra por procuração entre sunitas e xiitas" na Síria e "derramaram lá milhões de dólares e dezenas de milhares de toneladas de armas", para qualquer um que se interessasse em lutar contra Assad. "Problema aí é que armas e dinheiro estão chegando diretamente às mãos da Frente al-Nusra e da al-Qaida, e a situação está atraindo para lá jihadistas extremistas vindos de todos os cantos do mundo". Admitiu que os rebeldes sírios moderados, que se supunha que fossem elemento central e efetivo para a política dos EUA na Síria, não passavam de força militar mínima, de fato, desprezível.

Adiante, Biden desculpou-se pelo que havia dito, mas o que disse é verdade clara e demonstrável e manifesta aquilo em que Washington realmente acredita. Depois de se mostrarem ofendidos pela franqueza de Biden, os aliados sunitas dos EUA rapidamente confirmaram os parâmetros da cooperação. O príncipe al-Waleed bin Talal al-Saud, magnata e membro da família real saudita, disse que "a Arábia Saudita não se envolverá diretamente na luta contra o ISIL no Iraque ou na Síria, porque o grupo não afeta explicitamente nosso país." Na Turquia, Erdoğan declarou que, no que lhe diga respeito, o PKK é tão ruim quanto o ISIL.

Ficaram excluídas dessa bizarra coalizão quase todas as forças que realmente dão combate ao ISIL, incluindo o Irã, o exército sírio, os curdos sírios e as milícias xiitas no Iraque. A grande confusão gerada pelas 'políticas' de Obama-Kerry-Biden muito beneficiou o Estado Islâmico, como se viu num incidente no norte do Iraque, no início de agosto, quando Obama enviou forças especiais para o Monte Sinjar para monitorar o perigo que ameaçaria milhares de iazidis emboscados naquele local. Etnicamente curdos, mas com religião não islamista própria, os iazidis haviam fugido de suas cidades e vilas para escapar de serem massacrados ou escravizados pelo ISIL.

Os soldados dos EUA chegaram por helicóptero e permaneceram sempre escoltados e eficientemente protegidos por milicianos curdos uniformizados. Mas de repente, voltaram a embarcar rapidamente nos helicópteros e partiram em disparada. O motivo para a partida precipitada, como depois se revelou em Washington, foi que o oficial encarregado do destacamento norte-americano havia conversado com sua escolta curda, e descobrira que não eram os peshmerga amigos dos EUA do Governo Regional do Curdistão, mas combatentes do PKK - ainda listados como 'terroristas' pelos EUA, inobstante o papel crucialmente importante que tiveram no socorro aos iazidis e em obrigar o ISIL a retroceder.

Só quando Kobani já estava à beira de ser tomada é que Washington afinal aceitou que não lhe restava alternativa, senão cooperar com o PYD: afinal de contas, o PYD era praticamente a única força efetiva que continuava a combater em solo, contra o ISIL.

E há também o problema turco. Os aviões dos EUA que atacam forças do ISIL em Kobani tinham de voar quase 2 mil km a partir da base no Golfo, porque a Turquia não autorizava que usassem a base turca em Incirlik, a apenas poucos quilômetros de Kobani. Ao não impedir que reforços, armas e munições chegassem ao ISIL em Kobani, Ankara mostrava que preferia ter o ISIL no comando da cidade: qualquer coisa lhe pareceria melhor que o PYD.

A posição da Turquia já estava clara desde julho de 2012, quando o exército sírio, pressionado por rebeldes por todos os lados, abandonou as principais áreas curdas. Os curdos sírios perceberam que, de repente, haviam obtido uma autonomia de facto e que aumentava a autoridade do PKK. Localizados quase que ao longo da fronteira com a Turquia, área estrategicamente importante para o ISIL, os curdos inesperadamente foram convertidos e atores na luta pelo poder na Síria. Não foi desenvolvimento que pudesse agradar aos turcos. As principais organizações políticas e militares dos cursos sírios eram ramos do PKK, seguindo ordens de Ocalan e da liderança militar em Qandil. Os insurgentes do PKK, que haviam por tanto tempo combatido por alguma forma de autonomia na Turquia, agora governavam um quase-estado na Síria, centrado nas cidades de Qamishli, Kobani e Afrin. Grande parte da região síria de fronteira permaneceria provavelmente em mãos dos curdos, dado que o governo sírio e seus oponentes eram ambos fracos demais para mudar esse quadro.

Ankara pode não jogar como grande-mestre de xadrez na colaboração com o ISIL para quebrar o poder dos curdos, como entendem os teóricos da conspiração, mas viu a vantagem que poderia obter se deixasse o ISIL enfraquecer os curdos sírios. Essa política jamais foi exatamente muito prudente: se o ISILconseguisse tomar Kobani, o que humilharia também os EUA, a Turquia, pressuposta aliada dos EUA seria vista como parcialmente responsável pelo desastre, depois de ter bloqueado a cidade. De qualquer modo, a mudança de curso dos turcos aconteceu em velocidade escandalosa.

Poucas horas depois de Erdoğan dizer que a Turquia não ajudaria os terroristas do PYD, já estava autorizando os curdos iraquianos a reforçar as trincheiras do PYD em Kobani.

A virada total da Turquia foi o último de uma série de erros de cálculo cometidos sobre os desenvolvimentos na Síria desde o início dos tumultos de rua, em 2011. O governo de Erdoğan deveria ter-se posicionado a favor do equilíbrio de poder entre Assad e a oposição. Em vez disso, convenceu-se de que Assad, como se fosse Gaddafi da Líbia - seria inevitavelmente derrubado do poder. Não aconteceu. E Ankara passou a apoiar grupos jihadistas pagos pelas monarquias do Golfo, entre os quais a Frente al-Nusra, afiliado sírio da al-Qaida, e o ISIL. A Turquia teve praticamente o mesmo papel, como força de apoio aos jihadistas na Síria, que coube ao Paquistão, que apoiou os Talibã no Afeganistão.

Os estimados 12 mil jihadistas estrangeiros que hoje combatem na Síria, e que são motivo de graves preocupações na Europa e nos EUA, entraram, praticamente todos, por uma trilha que se tornou conhecida como 'a rodovia dos jihadis', que se serve dos pontos de passagem da fronteira turca, nos quais os guardas se fazem de cegos.

Na segunda metade de 2013, por pressão dos EUA sobre a Turquia, essas vias tornaram-se mais difíceis para militantes do ISIL, os quais contudo ainda atravessam a fronteira sem grande dificuldade. Ainda não se conhece muito bem a exata natureza das relações entre os serviços de inteligência turcos e o ISIL e al-Nusra, mas há fortes evidências de que, sim, há grau considerável de cooperação entre eles. Quando rebeldes sírios liderados pela frente al-Nusra capturaram a cidade armênia de Kassab em território controlado pelo exército sírio, no início desse ano, parecia que os turcos os tivessem autorizado a operar a partir do território turco. Também foi muito misterioso o caso dos 49 membros do Corpo Consular da Turquia em Mosul que permaneceram na cidade enquanto era tomada pelo ISIL; foram mantidos como reféns em Raqqa, capital síria do Estado Islâmico, depois inexplicavelmente libertados, depois de quatro meses, em troca de membros do ISIL mantidos presos na Turquia.

Se Erdoğan tivesse optado por ajudar os curdos encurralados em Kobani, em vez de traí-los, poderia ter fortalecido o processo de paz entre seu próprio governo e os curdos turcos. Em vez disso, suas ações só geraram protestos e tumultos de rua, entre os curdos, por toda a Turquia;  cidades e vilas do interior do país nas quais jamais houvera manifestações de curdos ao longo de toda a história moderna foram queimadas e morreram 44 pessoas. Pela primeira vez em dois anos a aviação militar turca atacou posições do PKK no sudeste do país.

Parece que Erdoğan jogou ao lixo uma das principais realizações de seus anos de governo: ter dado início a uma solução negociada com a guerrilha armada curda. Hostilidade étnica e violência entre turcos e curdos aumentaram imediatamente. A polícia reprimiu manifestações populares anti-ISIL , mas não interferiu em manifestações pró-ISIL. 72 refugiados que fugiram de Kobani para a Turquia, foram mandados de volta para a cidade. Cinco membros do PYD que foram capturados pelo exército turco, foram descritos como "terroristas separatistas".

Houve surto de manifestações histéricas de apoiadores de Erdoğan: o prefeito de Ankara, Melih Gökçek, tuitou que "há gente no leste que se faz passar por curdo, mas são, na verdade, armênios ateus." A imprensa-empresa turca, cada vez mais subserviente ou intimidada pelo governo reduziu muito a gravidade das manifestações de rua. A CNN turca, famosa por exibir um documentário sobre a vida dos pinguins, no auge das manifestações no Gezi Park, ano passado, optou por exibir, dessa vez, durante os protestos curdos, um documentário sobre a vida das abelhas.

Que efeito negativo haverá contra o ISIL, se não conseguir tomar Kobani? A reputação de sempre derrotar os inimigos sofrerá um pouco, mas já demonstraram que podem sobreviver a ataques aéreos dos EUA, mesmo no caso de estarem com suas forças concentradas num só ponto. O califato declarado por Abu Bakr al-Baghdadi dia 29 de junho continua a expandir-se: as maiores vitórias na Província Anbar asseguraram ao califato mais um quarto do Iraque. Uma série de ataques bem planejados em setembro garantiram aoISIL o controle de terras em torno de Fallujah, cerca de 60 km a oeste de Bagdá. Um acampamento do exército iraquiano em Saqlawiyah foi cercado durante uma semana e invadido: 300 soldados do exército iraquiano foram mortos. Como no passado, o exército mostrou-se incapaz para qualquer contraofensiva efetiva, mesmo com todo o apoio dos ataques aéreos norte-americanos. Dia 2 de outubro, o ISIL lançou uma série de ataque bem-sucedidos para capturar Hit, cidade ao norte de Ramadi, deixando o governo com apenas uma única base do exército na área. Há hoje forças do ISIL muito próximas dos enclaves sunitas  no oeste de Bagdá: até agora, permanecem paradas, embora todas as demais áreas sunitas do país tenham estado em torvelinho. Segundo prisioneiros do ISIL, as células do ISIL na cidade estão à espera de ordem, para entrar em ação coordenada com ataque que virá de fora da capital. É possível que oISIL não consiga tomar toda a cidade de Bagdá, onde vivem sete milhões de pessoas (a maioria, xiitas), mas poderia tomar as áreas sunitas e gerar pânico na capital.

Nos bairros ricos, onde convivem várias religiões, como em al-Mansour, no setor oeste de Bagdá, metade dos habitantes já partiram rumo à Jordânia ou o Golfo, porque não têm dúvidas de que o ISIL atacará a cidade. "Acho que o ISIL atacará Bagdá, no mínimo para ocupar os enclaves sunitas", disse um morador. "Se conseguirem manter pelo menos parte da capital do Iraque, aumentará a credibilidade do que dizem, que criaram um novo estado."

Enquanto isso, o governo e as empresas locais de imprensa dedicam-se empenhadamente em reduzir a gravidade da situação e da possibilidade real de o ISIL invadir a capital, tentando conter a corrida rumo a áreas sunitas mais seguras no sul.

A substituição do governo corrupto e disfuncional de Nouri al-Maliki por Haider al-Abadi não fez tanta diferença quanto seus apoiadores estrangeiros gostariam de ver. Porque o desempenho do exército absolutamente não melhorou, as principais forças que estão enfrentando o ISIL são milícias xiitas. Fortemente sectárias e frequentemente criminalizadas, são elas que lutam furiosamente em torno de Bagdá para forçar o ISIL a retroceder e para expulsar a população sunita das áreas mistas. Sunitas são frequentemente aprisionados nos pontos de passagem, trocados por resgates de dezenas de milhares de dólares, mas mais frequentemente assassinados depois que o resgate é pago. A ONG Anistia Internacional diz que os milicianos, inclusive a Brigada Badr e o grupo Asaib Ahl al Haq, operam sob total imunidade; a mesma ONG acusou o governo dominado pelos xiitas de estar "acobertando crimes de guerra".

Com o governo do Iraque e os EUA pagando grandes somas de dinheiro a empresários, comerciantes, líderes tribais [e também a ONGs como a Anistia Internacional, dentre outras (NTs)] e a qualquer um que diga que combaterá contra o ISIL, os senhores-da-guerra locais estão novamente em alta: desde o mês de junho, foram criadas de 20 a 30 novas milícias.

Tudo isso significa que os sunitas iraquianos não têm escolha, a não ser manter-se ao lado do ISIL. A alternativa seria a volta dos ferozes milicianos xiitas, que desconfiam de que todos os sunitas sempre apoiam o Estado Islâmico. Precariamente recuperado da mais recente guerra, o Iraque já está sendo devastado por nova guerra.

Aconteça o que acontecer em Kobani, o ISIL não implodirá. Qualquer intervenção estrangeira só fará aumentar o nível de violência, e oposição entre sunitas e xiitas ganhará novo impulso, sem fim à vista. 

 Foto: Monte Ararat é território da Arménia, roubado pela Turquia


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