João
Fellet - BBC Brasil em Brasília
O
Ministério Público do Trabalho (MPT) denunciou o grupo empresarial Odebrecht
por, segundo o órgão, manter 500 trabalhadores brasileiros em condições
análogas à escravidão na construção de uma usina em Angola.
De
acordo com a ação, iniciada após uma reportagem da BBC Brasil revelar denúncias
de maus tratos na obra, a construtora teria praticado ainda tráfico de pessoas
no transporte de operários até a usina Biocom, na província de Malanje.
A
denúncia, entregue na sexta-feira à Justiça do Trabalho de Araraquara (SP) pelo
procurador Rafael de Araújo Gomes, pede que a Odebrecht pague uma indenização
de R$ 500 milhões por danos coletivos aos trabalhadores. O procurador notificou
a Polícia Federal e o Ministério Público Federal para que dirigentes da empresa
e de suas subcontratadas respondam criminalmente.
A
Odebrecht disse à BBC Brasil que só pronunciaria sobre o caso após ser
notificada judicialmente. Normalmente, a notificação judicial ocorre alguns
dias úteis após o Ministério Público protocolar a ação. Mas, com as
interrupções de serviços públicos ocorridas por conta dos jogos da Copa do
Mundo, esse prazo pode vir a ser ampliado.
Três
empresas do grupo Odebrecht são rés na ação, que tem 178 páginas e envolveu
extensa investigação: a Construtora Norberto Odebrecht (CNO), a Olex Importação
e Exportação e a Odebrecht Agroindustrial (antiga ETH Bioenergia).
Passaportes
retidos
Em
dezembro de 2013, a
BBC Brasil publicou uma reportagem em que operários diziam ter sido submetidos
a maus tratos na construção da usina Biocom, entre 2011 e 2012. Dezenas de
fotos e vídeos cedidos à reportagem mostravam o que seriam péssimas condições
de higiene no alojamento e refeitório usados pelos trabalhadores.
Os
trabalhadores afirmaram ainda que funcionários que trabalhavam na segurança da
empresa impediam que eles deixassem o alojamento e que tinham seus passaportes
retidos por superiores após o desembarque em Angola. De acordo com
os operários, muitos adoeciam – alguns gravemente – em consequência das más
condições, e pediam para voltar ao Brasil. Alguns dizem ter esperado semanas
até conseguir embarcar.
Segundo
a ação do Ministério Público do Trabalho, braço do Ministério Público da União,
"os trabalhadores, centenas deles, foram submetidos a condições
degradantes de trabalho, incompatíveis com a dignidade humana, e tiveram sua
liberdade cerceada, sendo podados em seu direito de ir e vir".
Os
funcionários, diz a denúncia, "foram tratados como escravos modernos, com
o agravante de tal violência ter sido cometida enquanto se encontravam isolados
em país estrangeiro distante, sem qualquer capacidade de resistência".
Após
voltar ao Brasil, dezenas de operários entraram na Justiça contra a Odebrecht e
suas subcontratadas na obra. A Justiça tem reconhecido que eles foram
submetidos a condições degradantes e ordenado que sejam indenizados.
O
MPT diz que, embora os trabalhadores não fossem empregados da Odebrecht, mas de
empresas subcontratadas pela construtora – entre as quais a Planusi, a W Líder
e a Pirâmide –, a responsabilidade pelas condições na obra era inteiramente da
Odebrecht, conforme definido nos contratos entre as companhias.
Tráfico
de pessoas
A
denúncia lista uma série de ilegalidades que, segundo o MPT, teriam sido
cometidas pela Odebrecht no envio dos trabalhadores a Angola. De acordo com o
órgão, as empresas subordinadas à companhia recorreram a agenciadores ilegais
("gatos") para recrutar operários em diferentes regiões do país,
especialmente no Nordeste. A prática, diz a denúncia, constitui crime de
aliciamento.
Após
o recrutamento, segundo a denúncia, ocorria outra irregularidade: em vez de
solicitar à embaixada de Angola vistos de trabalho aos operários, a Odebrecht
pedia vistos ordinários, que não dão o direito de trabalhar.
Para
obter os vistos, segundo o MPT, a Odebrecht "desavergonhadamente mentiu à embaixada
de Angola", dizendo que os operários viajariam ao país para "tratar
de negócios" e permaneceriam ali menos de 30 dias (limite de estadia do
visto ordinário). No entanto, diz a Procuradoria, as passagens aéreas compradas
pela Odebrecht previam a volta dos trabalhadores em prazos bem superiores a 30
dias.
Segundo
o MPT, a empresa recorreu ao esquema para "contar com trabalhadores
precários e inteiramente submetidos a seu jugo, incapazes de reagir ou de
reclamar das condições suportadas, impossibilitados de procurar outro emprego,
e que sequer pudessem sair do canteiro de obras".
A
prática, segundo o MPT, sujeitou os trabalhadores a graves riscos em Angola,
inclusive o de prisão, e violou tratados internacionais contra o tráfico
humano.
Ratificado
pelo Brasil em 2004, o Protocolo de Palermo engloba, entre as definições para a
atividade de tráfico, o recrutamento e transporte de pessoas mediante fraude ou
engano para fins de exploração em "práticas similares à escravatura".
Dinheiro
público
Segundo
a investigação do MPT, contratos celebrados entre a Odebrecht e suas
subordinadas na obra mencionam que haveria empréstimos do BNDES (Banco Nacional
do Desenvolvimento Econômico e Social) à construção. O BNDES, porém, disse à
BBC Brasil que jamais financiou a obra.
Em
junho de 2012, o Ministério do Desenvolvimento e Comércio Exterior decretou
sigilo sobre todas as operações de crédito do BNDES a Angola e Cuba.
Entre
2006 e 2012, quando os dados ainda eram públicos, o BNDES destinou US$ 3,2
bilhões (R$ 7,2 bilhões) a obras de empresas brasileiras em Angola. A Odebrecht ,
maior construtora brasileira e maior empregadora privada de Angola, onde opera
desde 1984, abocanhou a metade desses financiamentos.
'Círculo
íntimo'
Primeira
indústria de açúcar, eletricidade e etanol de Angola, a Biocom é uma sociedade
entre a Odebrecht, a estatal angolana Sonangol e a empresa Cochan. Segundo o
jornal português Público, o dono da Cochan é o general angolano Leopoldino
Fragoso do Nascimento, um dos homens mais próximos do presidente angolano, José
Eduardo dos Santos, no poder desde 1979.
A
usina, que custou cerca de R$ 1 bilhão, deve ser inaugurada até o fim deste
ano.
Embora
a Biocom tenha sócios angolanos, o MPT diz que, desde 2012, a Odebrecht tornou-se
sócia majoritária da usina e "passou a administrá-la como dona".
Segundo o órgão, ao se associar à Cochan, a Odebrecht buscou contemplar o
"círculo íntimo" do presidente angolano no empreendimento e mascarar
que a usina, anunciada à população local como angolana, é na verdade
brasileira.
Como
punição pelos atos, a Procuradoria pede que a Odebrecht seja multada caso
mantenha práticas ilícitas, indenize os trabalhadores afetados em R$ 500
milhões e deixe de receber empréstimos de bancos públicos. A ação pede ainda
que a companhia pague multa no valor de 0,1% a 20% do seu faturamento anual.
Segundo
o MPT, o caso requer "uma punição absolutamente exemplar", para que a
companhia não se sinta encorajada "a repetir as mesmas condutas no
futuro".
Na
foto: Operários brasileiros disseram ter sido submetidos a maus tratos na
construção da usina Biocom
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