segunda-feira, 27 de outubro de 2014

ANTÓNIO LUCAS, O “AFRICANO” (in memoriam)



Alberto Castro*, Londres

Em Torres Vedras  e arredores já muito se deve ter falado de António Ernesto da Silva Lucas, ou simplesmente Lucas para amigos e conhecidos, um grande torriense falecido em Agosto último. Grande na sua compleição física, no tamanho do seu coração e nas preocupações sociais que o levaram a ser um convicto homem de esquerda. Existe todavia uma dimensão da sua grandeza que poucos devem conhecer: trata-se da dimensão africana daquele grande torriense. 

Ocorre-me escrever agora sobre ele a propósito de recentes ingerências de deputados portugueses em assuntos internos de São Tomé e Príncipe, fora do âmbito da UE e da CPLP, nomeadamente Mário Ruivo e João Portugal (PS), Nuno Serra (PSD) e José Ribeiro e Castro (CDS-PP) que, para além de em nome de uma alegada defesa da estabilidade democrática nas ilhas acompanharem Patrice Trovoada, o líder da Acção  Democrática Independente (ADI)  no regresso a STP, após quase dois anos de ausência com suspeitas de corrupção e branqueamento de capital pelo meio, participaram claramente da campanha eleitoral que resultou vitoriosa em favor do mesmo no passado dia 12 de outubro.

Conheci-o na segunda metade da década de 80 quando comecei a tarimbar no jornalismo, mais precisamente no semanário regional  ''Badaladas'', então dirigido pelo Padre José Manuel e tendo como chefe de redacção o saudoso Manuel Candeias. Era ele um dos secretários do então presidente da autarquia, José Augusto Carvalho, tendo sido também vereador posteriormente. Do nosso primeiro encontro nasceu o que seria uma sólida e longa amizade alicerçada mais ainda no facto de eu ser originário de São Tomé e Príncipe (STP), ilhas na qual o meu inesquecível amigo e compadre (padrinho do meu primogénito) havia feito serviço militar e servido como funcionário da outrora grande e produtiva roça Água Izé, um dos alicerces da economia local assente no cacau. Em São Tomé ele foi também futebolista do Andorinha Sport Club, emblemático clube desportivo da cidade, ainda hoje filiado ao Belenenses de Lisboa. 

No António Lucas logo percebi um profundo amor por África, em particular pelas chamadas ilhas maravilhosas. Através de mim restabeleceu mais cedo laços de amizade que havia construído e deixado em STP, estabeleceu e fidelizou novos elos com Angola e, mais tarde, por si mesmo, com Cabo Verde. Falava muito do seu compadre Óscar Souza, o Oscarito, com quem serviu no exército português e que foi ministro da Defesa nas ilhas no pós-independência. 

Ele tinha na verdade uma alma africana. Uma alma que, sem ressentimentos, paternalismos, racismos ou soberbas neocolonialistas, o levou em várias ocasiões de volta aos caminhos da sua querida África. Sua casa no Sarge, freguesia da qual foi também presidente da junta, funcionava como uma espécie de consulado africano em Torres Vedras. Tinha as portas sempre abertas para os seus amigos africanos, os quais o estimavam profundamente. Era sempre uma grande festa quando os recebia ou os visitava. Quantas vezes ouvi de amigos e conhecidos comuns a pergunta ''E o Lucas? Quando é que ele cá volta?''.

Sempre procurou estabelecer e fortalecer elos pessoais, políticos e empresariais entre portugueses e  africanos dos PALOP's, numa altura em que em Portugal o olhar sobre os segundos era, de certa forma, pouco positiva, para dizer o mínimo. Juntos havíamos abordado várias vezes o tema de geminação de Torres Vedras com cidades africanas. Cito por exemplo Cabinda e Viana, em Angola, e Água Grande, em STP. Algumas iniciativas oficiais foram feitas nesse sentido mas o clima político na altura vivido nos citados países, uma agenda de prioridades em Portugal muito focada na Europa e o desaparecimento de cena, físico e político, de alguns dos entusiastas africanos não permitiram a concretização das mesmas. Soube depois que houve progressos com Cabo Verde, mais precisamente com a cidade de Boa Vista, onde o meu amigo e compadre Lucas acabaria por passar parte dos seus derradeiros anos.

Recordo aqui a primeira viagem que juntos fizemos à Angola no início dos idos anos 90. Em Cabinda, numa visita feita a um povoado, vi populares manifestarem alegria e apreço enormes por sua presença e pela forma como com eles interagia. ''Esse branco é dos nossos'', sentenciavam uns. ''O patrão voltou! Graças a Deus!'', clamava outro, já idoso, de braços erguidos em agradecimento aos céus, para riso incontido dos presentes. Via-se no ancião uma clara desesperança perante dificuldades na altura vividas num país recém-independente, ainda em guerra fratricida e com perspectivas pouco animadoras de paz e desenvolvimento. Note-se, por outro lado, que em África existe ainda fortemente enraizado no imaginário popular a crença que associa a riqueza à gordura localizada, no caso dos homens, ao bojo saliente. Um detalhe que também pode explicar parcialmente o gesto do autóctone. 

No plano empresarial ele foi um grande dinamizador das relações entre empresários portugueses, particularmente torrienses, e africanos. Nesse sentido organizou, a título particular, várias viagens (na verdade autênticas missões político-empresariais) aos citados países. Registo uma com o empresário Fernando Alves, na altura dono das firmas torrienses Auto Henriques e Construtorres e com Carlos Miguel, atual presidente da autarquia oestina, na época advogado daqueles empresas. Ambos podem testemunhar da imensa popularidade e do carinho pelo Lucas em terras africanas.

Alguns empresários hoje bem sucedidos no mercado africano lusófono puderam salvar e/ou consolidar as suas empresas na origem devido, mesmo que indiretamente, ao António Lucas. Cito, por exemplo, o Luís Vicente filho, da Freixofeira, a quem ele me apresentou no seu gabinete da edilidade de Torres Vedras e que, juntamente com seu pai, já falecido (pessoa da qual guardo uma imagem igualmente muito positiva), acompanhei no início dos anos 90 à Luanda, dando os primeiros apoios na sua viagem inaugural exploratória do mercado angolano. Não mais tive contactos com Luís Vicente filho mas soube que a empresa consolidou-se no mercado de frutas e legumes em Portugal e, entre outros ganhos, detém a maioria do capital da Refriango, uma empresa de direito angolano bem sucedida nascida da perspicácia e da vontade resoluta do empresário torriense no desenvolvimento do sector das bebidas em Angola.

Na última década, ou mais, os acasos da vida fizeram com que nossos caminhos não mais se cruzassem com a mesma frequência de outrora. Mesmo assim, ainda surgia um tempinho para uma ou outra rara visita, um ou outro telefonema de ocasião, sempre acompanhados de ''intermináveis'' conversas sobre temas mais diversos. Juntamente com D. Alice, sua batalhadora e dedicada companheira de sempre, não deixou de me visitar em Londres onde passei a residir. Do meu amigo, camarada e compadre Lucas, ''o africano'', um exemplo de como portugueses e africanos se devem relacionar, guardarei sempre as melhores recordações. 

Na foto: António Lucas com a esposa, D. Alice, no London Eye

Colunista e jornalista freelancer*

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