quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Literatura | "Escrevo sobre banqueiros que sabem a merda que fizeram"


De chofre, o entrevistado, Francisco José Viegas, autor de policiais, responde ao jornalista do Diário de Notícias, João Céu e Silva, por palavras que dão título ao texto. Recheio de ficção ou realidade na obra do autor? Para muitos leitores a realidade está inserida nos conteúdos, talvez numa quase perfeita simbiose com a ficção. Da sua obra e de muito mais fala o autor. A entrevista é fluente, com o mérito de agradar até aos mais exigentes. Leia o que aqui trazemos via DN:

O inspetor Jaime Ramos não aparece nos noticiários das televisões ou nas notícias de jornais, mas rivaliza literariamente com as figuras da polícia e da justiça que disputam o espaço mediático para explicar o crime à portuguesa.

No nono volume de investigações policiais, o mítico inspetor Jaime Ramos continua imbatível no desempenho das suas aventuras literárias de autoria de Francisco José Viegas. Sempre preocupado em também refletir a realidade nacional além do enredo policial, com acontecimentos verídicos ou aproximados da realidade que serão úteis à história, desta vez o escritor vai mais fundo e a presença da recente história de Portugal na narrativa é determinante para o desenvolvimento destas 400 páginas.

O inspetor Jaime Ramos já se tornou um clássico no quase inexistente género do policial português e Francisco José Viegas mantém-se o único escritor a fazer questão de manter um protagonista destes no ativo - mesmo que neste A Luz de Pequim lhe comece a fazer as malas na Judiciária -, conseguindo seduzir milhares de leitores que aguardam por cada novo título com alguma ansiedade.

O resumo na contracapa revela parte do imbróglio ao avançar que haverá um corpo que aparece pendurado nos pilares da Ponte de D. Luís, um cadáver de uma mulher abandonado que evoca os crimes do submundo da noite portuense, realidades que se conjugam e fazem Jaime Ramos viajar até Pequim e pôr dentro destas páginas muitas das polémicas sobre a colonização, por exemplo, bem como o modo de ser português nos tempos mais recentes. Em poucas palavras, Jaime Ramos vai confrontar o leitor "sobre o sentido de ser português num país dominado por elites cúmplices, endogamias e poderes ocultos".

Conforme se pode ler nesta entrevista, Francisco José Viegas é claro ao dizer que "tudo em Portugal dava um bom thriller" e aponta o dedo aos "protagonistas" bem conhecidos: "Os bancos, os partidos, os donos dos bancos e dos partidos, as famílias, os laços familiares, as traições nos partidos, as traições no governo, o PSD, o PS, o PCP." Considera que existe uma rede de amizades perigosas que tem origem num "certo ano da Faculdade de Direito de Lisboa", de onde nasceram "relações de uma certa endogamia e de grande cumplicidade". Vai mais longe no que diz: "Gente que se conhece há muito tempo, que faz um telefonema, que relembra uma amizade. É o nosso país."


As primeiras seis páginas avançam com um acontecimento, descrito num estilo bastante erótico, que fica sem desfecho durante muitas páginas. É preciso captar a atenção do leitor cada vez mais?

O José Cardoso Pires dizia uma coisa intrigante: quem anda atrás dos leitores acaba por levar pedradas... Não é por causa de um capítulo com uma carga mais erótica que se prende o leitor, mas pelo livro em si, pela história. Não se deve facilitar a vida ao leitor, mas falar com ele, escrever para ele. Contar-lhe uma história. Isto é uma coisa fora de moda, porque o escritor quer falar para a eternidade e tal, mas a verdadeira eternidade é um leitor que guarda o livro depois de o ler. E esse capítulo inicial nem o acho grandemente "erótico", digamos assim. É o clima o que me interessa mais, um rapaz e uma rapariga que escapam de uma vila do interior, Moncorvo, e vão para a serra do Reboredo - onde encontram um cadáver. Questão de ambiente, de cinema, de paisagem. Não há coisa mais surpreendente para eles, ali, diante do rio, naquele crepúsculo, do que encontrar um cadáver... E para um leitor também, suponho. Um crime no campo, naquela tranquilidade toda... Tem uma aura romântica, até [risos].

O inspetor Jaime Ramos já se tornou um clássico entre um vasto grupo de leitores. Sente a pressão para entregar um novo livro antes do tempo que gostaria?

Tenho um editor generoso e paciente, e tenho leitores que insistem, sim. Que mandam mensagens a perguntar onde anda o inspetor Ramos... O livro anterior saiu há três anos, não me parece que tenha sido muito pressionado, a não ser na fase final, em que escrevo contra o tempo, com uma certa urgência em terminar. Depois, há um tempo em que fica ali tudo a pairar...

Voltemos ao passado. Porque criou Jaime Ramos num país onde o policial quase inexiste enquanto género literário?

Queria tentar o policial, que é um género mal-amado entre nós. E achei que a melhor maneira de falar do país era essa, desviando o olhar, escolhendo uma personagem mais ou menos banal, um desiludido no meio da euforia nacional e patriótica [risos]. Claro, existe um grande preconceito contra o policial, e eu compreendo, e acho que é um preconceito que às vezes se justifica, porque há policiais muito maus, como há romances bons e maus. Mas quis que o policial fosse uma espécie de modelo de partida, muito rígido, para depois escrever sobre o que me apetecesse, parodiando as regras do próprio policial, reconstruindo-as. No Longe de Manaus tem aquela frase: "O romance policial tem regras. Este não tem." Mais ou menos isso. E o Jaime Ramos é o meu observador particular, o meu barómetro.

Os enredos para Jaime Ramos são mais difíceis num Portugal tão bem colocado nas estatísticas dos países mais seguros?

Os países nórdicos são ainda mais seguros do que Portugal, e no entanto os crimes cometidos no chamado "policial nórdico" são muito mais violentos. O romance policial é um romance apenas, não é um género à parte, destinado a fazer sociologia... Quem quer fazer sociologia faz sociologia, quem quer ser escuteiro faz de escuteiro, quem quer contar uma história de mistério faz uma história de mistério. A certa altura do livro, essa questão coloca-se ao próprio Jaime Ramos, quando é confrontado pelo "ajudante" Isaltino de Jesus acerca de ética, política e tudo isso, e ele lhe diz "eu não investigo crimes para fazer deste um mundo melhor, se eu quisesse um mundo melhor ia procurá-lo por aí fora"... Ele investiga por vingança, por curiosidade, por precaução. Para que a vida das vítimas tenha um sentido e para que a vida dos culpados não tenha descanso, mas o romance policial não vai fazer aquilo que a sociologia e a polícia não fazem. Claro que há pessoas que leem um romance policial para ficarem mais aliviadas, como se a obrigação do romance fosse restabelecer a ordem burguesa, punindo os maus e recompensando os bons, ou explicando como funciona a sociedade. Na verdade, "a sociedade" não me interessa para nada, do ponto de vista literário. Interessam-me as personagens, as suas desilusões, as suas alegrias, as suas biografias. E interessam-me os leitores, poder jogar com eles. Quem quer fazer política ou caridade não vem para a literatura, vai para um partido ou para uma Misericórdia. Escrevo sobre o que me apetece, sobre vidas perdidas, sobre o que não vem nos manuais de sociologia e de política. Escrevo sobre espiões, sobre banqueiros que sabem a merda que fizeram, sobre pessoas que mataram e foram assassinadas, sobre mulheres ignoradas, sobre subúrbios, sobre gente má, sobre gente sem história, sobre gente que errou bastante, sobre os derrotados. Sobre os bairros que não são visitados pelos turistas e onde não há restaurantes da moda. Qualquer dia íamos admitir só heróis vegetarianos, ou "amigos do ambiente", preocupados com a "sustentabilidade", o Chiado ou a "emergência climática"... Os heróis dos romances policiais não são pessoas exemplares. Pelo contrário, equilibram-se no fio da navalha da moral, estão frequentemente do lado errado, sonegam provas num inquérito policial, são preguiçosos, não são bons cidadãos nem comem salada de tofu... E têm ideias disparatadas. Mesmo Jaime Ramos. As ideias das minhas personagens não são as minhas ideias...

Jaime Ramos adaptar-se-ia à nossa realidade "policial" atual, focada na corrupção de tantas figuras públicas e de mulheres assassinadas, ou essa é uma realidade que não interessa assim tanto ao inspetor e ao autor?

Claro que sim, que tudo isso interessa. A corrupção é uma doença crónica do país, e a violência contra as mulheres é um crime nojento. Jaime Ramos lida com isso. Neste livro estão lá as referências, mesmo aos juízes "compreensivos" e aos políticos com aquela linguagem da treta que agora se usa... O que acontece é que Jaime Ramos é dos Homicídios, na PJ. Trata de crimes contra a segurança das pessoas, como agora se diz. Enfrenta a morte, a maldade, o desejo de morte, a violência, e tudo o que é arrastado por esse mundo, como a pobreza, a miséria, os subúrbios, os crimes da noite portuense, aqueles gangues da Ribeira, de Miragaia, de Contumil...Este é, se quiser, o romance mais "social" da série Jaime Ramos. E, ao mesmo tempo, o mais desesperado e o mais zangado com as "elites económicas", com o poder que detêm, sobre a sua organização oligárquica. E também o mais pessoal, é verdade, e aquele em que Jaime Ramos está sempre à beira do abismo, obrigado a investigar tudo durante uma semana, com medo de ser afastado. De ser limpo.

O inspetor tem uma biografia conhecida dos leitores. Se comete um deslize nessa vida do protagonista os leitores dão-lhe conhecimento?

Sim, muito frequentemente. Corrigem, sugerem, nem sempre bem, mas com boas intenções [risos]. Lembro-me de uma leitora, de Leiria, curiosamente, que ia a todos os lançamentos para me dizer "olhe que aqui isto está errado". E estava. E eu corrigia na nova edição. O policial é um género muito exigente, muito minucioso, com leitores muito atentos. Uma das coisas mais felizes da vida de um escritor, acho eu, acontece quando as pessoas seguem a vida das personagens que ele criou. Costumo dizer que isso provoca algumas crises de ciúmes. Na Alemanha, em Itália ou em França, por exemplo, os livros são apresentados como "mais uma investigação de Jaime Ramos". Isso alegra-me muito. Se leio uma crítica a dizer que os meus livros estão muito próximos de Simenon, por exemplo, isso deixa-me muito feliz, mas fiquei muito mais contente quando disseram que Jaime Ramos está ao nível de Maigret... O que uma pessoa faz é criar gente de papel. Histórias verdadeiras para gente de papel as interpretar. Quando essa gente de papel ganha vida, e autonomia, e segue por aí fora, isso é demasiado bom...

Todos os livros são autobiográficos. Quais os factos da vida própria que o inspiram enquanto escreve ou esta é uma criatura independente do seu quotidiano?

Acho que muito poucos... Deito-me muito cedo, levanto-me cedo, ainda de noite, trabalho numa editora, cuido dos livros dos outros, cozinho todos os dias, gosto de esplanadas para ler e escrever, gosto de ir à praça ou de ficar no sofá à noite, a tomar descafeinado com a minha mulher... Acho que isto não é muito fascinante nem luminoso como experiência biográfica. A minha vida é a minha vida, mas o meu trabalho para os livros da série de Jaime Ramos tem muito que ver com o facto de me esforçar por vestir a sua pele, de construir a sua identidade. Lá está: se eu quisesse escrever uma autobiografia, escrevia uma autobiografia. E chateia-me muito isso da autoficção, aquela brincadeirinha inócua e chata do Knausgård, o Proust que nunca mais come aquela madalena, os livros em que as personagens são jornalistas ou professores universitários, e os seus diálogos servem para provar as lindas ideias que os escritores têm para o país ou sobre os seus semelhantes... Muitas vezes, as ideias políticas dos escritores, enquanto escritores, são uma boa merda. Deus nos livre delas.

Os escritores não devem ter ideias políticas, é isso?

Pelo contrário. Os escritores têm ideias políticas, e devem falar delas. Vivemos num mundo em que as influencers falam de tudo, e os futebolistas, e os atores de telenovela, e toda a gente. Mas um livro não serve para pôr em verso ou prosa aquilo que um escritor pensa da política mais imediata. Um livro tem uma respiração muito mais longa, mais vasta, mais demorada. Fala de um mundo inacabado, em convulsão... Um mundo que ainda não conseguimos explicar.

"Jaime Ramos junta as peças como um mau romancista, convencido de que tudo começa pelo fim." Está a ver-se ao espelho?

Quando o Manuel Vázquez Montalbán queria falar de si próprio, criava uma personagem própria, o que acontece em alguns livros, ou falava até de um escritor chamado Vázquez Montalbán. Neste caso limito-me a ser irónico. Jaime Ramos é um tipo culto, muito lido, muito influenciado pelas suas leituras... Ele olha cada investigação como uma biografia ou um conjunto de biografias, como um romance. No Longe de Manaus, repito o exemplo, ele chega a dizer "agora vamos fazer como o Camilo", agora vamos inventar uma nova situação dramática... O trabalho de investigador policial tem muito de romancista, de argumentista: tem de imaginar como as coisas aconteceram, como se explicam determinados acontecimentos, como vivem as pessoas que ainda não conhece, as personagens da vida real.

O primeiro terço de A Luz de Pequim é muito Porto e à Porto. Depois, Jaime Ramos viaja por outras geografias. É preciso dar mundo ao inspetor ou a nossa história merece a sua presença para não ser esquecida?

Se calhar essa é a parte mais autobiográfica, a de viajar. Mas, ao contrário de mim, ele vai sempre contrariado. Eu gosto de viajar, ele não. Acontece que a viagem é o que nos torna humanos, sonhadores, o que faz de nós pessoas mais tolerantes, mais abertas aos outros, mais humildes. Jaime Ramos não é nada disso. Pelo menos não é essa a imagem que ele pretende passar de si próprio. Ele finge muito.

E neste livro há a China...

É um mundo novo, sim. Eu gosto da China e gosto de Pequim, até por motivos familiares. Mas gosto muito da China porque é um mundo que não entendemos. Demora a entender. No século V ou VI antes da nossa era, quando andávamos a apanhar cacos na Europa e no Mediterrâneo, a China estava muito à frente, tal como aquilo a que chamamos Oriente, as várias rotas da seda, da porcelana, do conhecimento. Muito à frente. Na arte, na literatura, nos objetos da vida quotidiana, na escrita, na guerra... Na produção de livros. Sabe que o quarto da imperatriz Ci Xi, a imperatriz viúva, uma mulher que mudou de facto a China, as paredes estavam cheias de poemas? Há um grande racismo antichinês em Portugal, à esquerda e à direita. Dizem "os chineses" com um certo esgar... Mas há coisas que me surpreendem muito naquele país gigantesco que em 1976 saiu da miséria absoluta, da indigência, do horror, dos campos de morte, da revolução cultural, da fome. Tenho uma certa admiração pelo Deng Xiaoping, sim, e a sua visão. Mas lá está: há coisas que não compreendo ainda. A noção do tempo. A espiritualidade. A literatura, que é grandiosa. A cordialidade. E também o rigor, a rigidez, a tecnologia. Isto não é muito popular para se dizer, mas pronto...

Há passagens pelo antigo Portugal, Brasil, Macau... Este romance está saudosista ou é uma despedida do inspetor?

Só falta dizer que é um romance neocolonial, como disseram do Longe de Manaus ou do Lourenço Marques [risos]... É verdade que esse é um dos meus mundos, o das ruínas do império, as memórias de África e do Oriente. A forma como conseguimos viver com essa memória. É verdade que hoje somos todos europeus e gostamos muito da Web Summit, mas a geração de Jaime Ramos foi à guerra, era gente pobre que andou de G3 na mão, ou nasceu nos musseques, ou conheceu Luanda nos anos 1960 e 1970, ou viveu em Macau ou em Moçambique. Daqui a cinco ou dez anos, não haverá ninguém com contactos pessoais ou familiares com essa África colonial, mas é impossível tirar a África da nossa pele. Devíamos ter mais África, aliás, e mais Ásia. Termos deputados chineses e indianos. Sermos menos branquelas, menos convencidos de que somos o centro do mundo. Claro, há aquela cena em casa do Júlio Freixo [controleiro de Jaime Ramos no PCP] em que há dois mapas, o do império português e o do império soviético... Um absurdo, mas um absurdo nostálgico.

Se o inspetor "fosse" questionado sobre a polémica da palavra Descobrimentos a sua opinião seria igual à do autor?

É provável. A África de Jaime Ramos é a da guerra colonial, na Guiné. Ficou surdo. Veio de lá comunista. Veio com outra visão do mundo, ficou a saber que o mundo não acabava no Algarve ou na foz do Minho. Pessoalmente, acho que devíamos ter um museu dos Descobrimentos, ou da Expansão, sim, ou da Ciência e das Descobertas dos séculos XV e XVI - mas a ele é-lhe indiferente. Quando publiquei o Lourenço Marques, em 2002, ainda não se escrevia sobre os retornados, nem sobre os portugueses que tinham vindo de África, nem sobre o que eles tinham vivido em 1975, 1976... A esta distância, lembro-me das reações de muita gente, surpreendida (um tipo que regressa a Moçambique para recordar a adolescência em Lourenço Marques, na Beira, no Niassa), e que achou que era um romance saudosista. Parvoíce. Era um romance sobre as pessoas que tinham vivido em África e que tinham um passado, uma felicidade perdida lá atrás. Era a sua memória. Essa gente tinha sido expulsa da história de Portugal como uma parte incómoda do país, arrumada para debaixo do tapete. Não tinham voz. Tal como os africanos que vieram e vêm para Portugal, e que ainda não têm uma voz. A literatura serve também para isso, para dar voz aos silenciados, aos derrotados...

As partes sobre a Revolução, Lenine, Cunhal... são uma revisitação própria ao passado que viveu e está a desaparecer do mapa?

Também. Acho que muitos militantes comunistas reconhecerão aquelas histórias - e contadas daquela maneira. Tenho um grande respeito pelos comunistas daquela geração, mas nenhum pelo comunismo. Há naqueles velhos militantes comunistas uma certa ideia de grandeza e de solenidade, de moral, de seriedade. A certa altura há um deles que diz "a revolução não é um convite para dançar". Bom, a história do comunismo é a história de uma tragédia, de um embuste, mas as histórias dos comunistas fazem parte da nossa memória cultural, daqueles anos 1970 pelo menos. E há personagens reais, muito simpáticas, que eu admiro muito. Como personagens, evidentemente. Não para implantarem o comunismo, para recitarem sonetos sobre o Estaline ou para defenderem o Muro de Berlim e o Gulag como um "avanço civilizacional". De certa maneira, interessam-me como exemplos: algumas delas são pessoas que experimentaram a derrota de uma forma muito amarga ou apenas como uma ilusão perdida. Neste caso, há o Júlio Freixo, o controleiro do Jaime Ramos, que nunca deixou de ser comunista, e que vê como o seu mundo terminou. E é um homem muito nobre, muito sério, daqueles comunistas anónimos e discretos, do Porto, que a história não consegue arrumar.

Como são escolhidos os personagens que mata em cada livro? Só por necessidade da história ou alguns são por embirração?

São gente que vive no fio da navalha. E às vezes são representantes desses derrotados da história. O Jaime Ramos diz, algumas vezes, que é um biógrafo dessa gente. A gente com que embirro está sempre viva...

Há uma hora do dia ou da noite em que a escrita sai melhor?

De manhã, bem cedo, depois do pequeno-almoço, lá para as cinco e meia, seis. Nem sempre consigo, claro, mas essa é a melhor hora, quando as pessoas sobre quem escrevo chegam a casa...

Antecipa sem querer a polémica com o Pavilhão Rosa Mota rebatizado de Arena Super Bock ao colocar a seguinte frase: "Deixou-o em frente ao Palácio de Cristal - chamar-lhe-ia sempre Palácio de Cristal." O que pensa da nova designação?

Que, para as pessoas do Porto, há de ser sempre ser Palácio de Cristal. De facto, eu também já não gostava de Pavilhão Rosa Mota. Palácio de Cristal é perfeito. Com aquelas árvores, aquela visão da Ponte da Arrábida e da Afurada. Em dias de chuva é das coisas mais bonitas do Porto.

Que ideia é essa de pôr um homem pendurado na Ponte de D. Luís?

Talvez seja um sinal. Daquele sítio eu via a Ribeira, antigamente. Via aquela colina de casas a descer sobre o rio. Agora está tudo cheio de turistas e de tuk-tuks, mas é uma das visões mais bonitas do Porto, tal como a marginal do Freixo ou as casas de Massarelos. O diretor do Jaime Ramos acha que o cadáver de um homem, exposto ali, é uma afronta ao cosmopolitismo da cidade, ao turismo, a essa treta da modernidade de uma grande metrópole que as revistas de turismo hoje consideram muito. E é. Um cadáver ali é uma afronta à cidade do lifestyle.

Elogia Jaime Ramos por ser um "homem tão imperfeito" na última página. Não se quer encaixar no perfil dos autores politicamente corretos ou o inspetor precisa de novo(s) livro(s) para ter um fim à vista?

Ele é um homem imperfeito, é isso que faz dele o meu personagem. Ao contrário dos heróis banais, burgueses, cheios de virtudes e de linguagem esclarecida... Neste livro ele é investigado pela própria polícia, que vai reanalisar os seus casos anteriores para ver se o apanham em falso. E apanham, claro. O Ramos cometeu tantos erros... Eles querem ver se fez assédio sexual, se sonegou provas, se fez relatórios falsos, se cometeu indignidades contra a igualdade de género, se maltratou alguém durante um interrogatório, se falhou nas investigações, se bebeu de mais. Ele fez tudo isso, sim. À luz das ideias de hoje ele é um tipo que falhou com grande estrondo. A nova geração de burocratas fala de transparência, multiculturalismo, boas práticas... Querem limpar o passado, ler a história das suas investigações à luz da correção política de hoje, arrumar as prateleiras. E despedir Jaime Ramos, claro. Ele tem vários combates para fazer, nestas páginas...

Tem um personagem que vai avaliar Jaime Ramos à luz dos novos tempos. Façamos um paralelo: como avalia a nova ministra da Cultura - sem um passado nessa área - após a sua passagem pela Secretaria de Estado da Cultura?

Eu sou tão desastrado que continuo a pensar que o João Soares estava perfeito para o lugar. A Graça Fonseca é uma pessoa de quem gosto bastante, com um perfil político muito definido, boa capacidade de gestão, e a quem desejo que tudo corra bem. Já lho disse, aliás. Mas o problema da cultura no governo não é o do orçamento, é o das ligações, que têm de ser bem vincadas, à economia, ao turismo e à educação. Uma educação para a cultura, para a fruição da arte - da pintura, da música e da literatura, por exemplo -, para o respeito pelo património ou pela paisagem, por exemplo. O turismo tem obrigação de pagar muito mais pelo património arquitetónico e pelos museus. E a economia só agora está a descobrir que pode ganhar muito dinheiro com a cultura...

O PS está no poder após ter ultrapassado a PAF [coligação PSD-CDS] pela esquerda. A gerigonça dava um bom thriller ou esta legislatura parece mais prometedora?

Tudo em Portugal dava um bom thriller. Os bancos, os partidos, os donos dos bancos e dos partidos, as famílias, os laços familiares, as traições nos partidos, as traições no governo, o PSD, o PS, o PCP. De resto, acho que vamos ter dois anos mais ou menos tranquilos. São ciclos. As pessoas percebem isso, e estão preparadas.

Há um capítulo especial, em que enumera os cargos desempenhados no futuro pelos então alunos de certo ano da Faculdade de Direito de Lisboa... É uma grande rede?

É uma das redes das nossas elites, por assim dizer. Nada contra. É o que é. Há ali relações de uma certa endogamia, de grande cumplicidade. Gente que se conhece há muito tempo, que faz um telefonema, que relembra uma amizade. É o nosso país.

Há juízes, presidentes da República, assessores, presidentes de clubes de futebol, ministros, embaixadores, etc.

É uma geração inteira, sim... Era no tempo em que as faculdades de Direito eram as melhores fábricas de ministros e de poderosos que já eram poderosos. A Agustina Bessa-Luís, uma mulher genial, dizia que agora íamos ter a política do "homem comum"... Ela dizia isso com uma certa pena, e eu compreendo-a.

Ao fim de vários livros o que o seduz mais em Jaime Ramos?

O ceticismo e a esperança. O ceticismo é uma espécie de dever, de guia espiritual, de forma de vida. Ele é um cético na política e na relação com os outros. E, depois, a esperança nas pequenas coisas, no dia-a-dia, no amor, numa refeição perfeita, num gesto de amizade, numa leitura, nas coisas da casa, num passeio de fim de semana, numa recordação. Pequenas coisas são as mais importantes, como sempre.

Os escritores portugueses lamentam-se de raramente os seus editores sugerirem alterações aos livros. Enquanto autor gostaria de ser editado?

Eu sou editado e gosto bastante. A primeira e última editora foi a Magda, a minha mulher, que é uma leitora muito exigente e minuciosa. E depois na editora, propriamente dita, há pessoas ótimas, muito atentas, que me ajudaram muito. São pessoas muito anónimas e discretas que salvam os livros. Nunca se lhes dá a importância que merecem.

Os leitores deparam-se na foto da badana com um Francisco José Viegas muito "remoçado". Esse novo estado não lhe "emagreceu" a inspiração?

São menos 26 quilos. Naturalmente, é porque não precisava deles...

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A Luz de Pequim

Francisco José Viegas

Porto Editora

400 páginas

Sessões de apresentação
Em Lisboa dia 19, às 18.30, no El Corte Inglés
No Porto dia 30, às 18.00. na FNAC Santa Catarina


Imagem: Francisco José Viegas | © Gerardo Santos/Global Imagens

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