quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Portugal | Corrupção


Pedro Marques Lopes | Diário de Notícias | opinião

Um processo que seja aberto e que acabe sem acusação prova que a justiça não funciona; uma acusação que acaba em absolvição mostra que as garantias processuais só servem para defender os ricos e os poderosos; uma calúnia ou uma vaga suspeita num tabloide é suficiente para se mostrar que há ali marosca e que mais uma vez um malandro sairá impune.

Operação Marquês e o caso BES chegariam para pensarmos que temos um problema com a corrupção. Infelizmente, não parece que o assunto se resuma a esses dois megaprocessos. Existem indícios, e em alguns casos mais do que isso, da existência de outros processos de bem menor dimensão mas semelhantes.

Há, depois, questões menos faladas ou, pelo menos, menos evidentes que se enquadram num problema mais vasto. A corrupção das cunhas, dos processos administrativos que passam para o topo da pilha, dos favores, dos colegas de partido que são escolhidos para fornecedores de serviços variados (de jurídicos a de jardinagem, passando pelos muito conhecidos serviços de comunicação e imagem) nas câmaras que o partido gere sem outro critério que não seja o da troca de favores.

Estou convicto de que muito do tráfico de influência e corrupção passa por essas aparentemente pequenas e grandes, digamos, irregularidades.

A luta contra estes fenómenos tem, claro está, de ser sem tréguas.

Estabeleceu-se, contudo, a perceção, arrisco dizer, a convicção generalizada de que vivemos num país minado pela corrupção e que, senão todos, a maioria dos nossos problemas como comunidade advêm dela. Mais, qualquer pessoa que diga que a corrupção em Portugal não é maior nem menor do que na maioria dos países com que nos comparamos, de que não perturba o normal funcionamento das instituições, de que não é a causa principal de questões como o nosso limitado desenvolvimento económico, social e cultural é imediatamente apelidado de amigo ou mesmo colaborador dos corruptos.

Convém aqui lembrar que os estudos sobre corrupção de que tanta gente fala são sobre a perceção de corrupção. Ou seja, se convencermos as pessoas de algo que elas não sabem se existe, isso passa a existir.

Os que têm feito pela vida a promover estas teses estão de parabéns. Contribuíram decisivamente para a perceção generalizada de que vivemos praticamente num Estado falhado, uma espécie de Guiné-Bissau ou Albânia.

Vivemos uma situação terrível. Por um lado, temos situações de corrupção, tráfico de influências e demasiadas situações de aproveitamento privado de bens públicos que têm de ser investigadas e, eventualmente, julgadas e condenadas. Por outro, gente que quer convencer, e convence mesmo, a opinião pública de que vivemos num país a saque, em que a corrupção é coisa estabelecida e que a maioria dos poderes públicos ou é corrupta ou é conivente. A hipótese de haver justiça é na nossa atual realidade muito baixa.

Nesse grupo existirá um pequeno conjunto de pessoas que realmente acreditam que vivemos mesmo num país a saque, mas o grosso da coluna fá-lo por agenda política ou muito simplesmente por razões venais.

Se, por um lado, temos setores do nosso sistema judicial que parecem alinhar e promover o clima instalado de que a corrupção impera, não julgo que seja essa a realidade de todo o edifício, longe disso.

A justiça é a primeira vítima do estado de coisas. Um processo que seja aberto e que acabe sem acusação prova que a justiça não funciona; uma acusação que acaba em absolvição mostra que as garantias processuais só servem para defender os ricos e os poderosos; uma calúnia ou uma vaga suspeita num tabloide é suficiente para se mostrar que há ali marosca e que mais uma vez um malandro sairá impune.

Os juízes são pessoas como nós, vivem nos mesmos lugares, leem as mesmas coisas, são igualmente afetados pelas perceções conjunturais. A pressão que sentem para decidir em razão do que as "pessoas sentem" será gigantesca. É, com certeza, muito difícil para um juiz viver num ambiente em que a condenação pública está feita e absolver um arguido, como não será igualmente fácil para um homem ou uma mulher do Ministério Público não acusar alguém que já foi declarado suspeito por um tabloide. A capacidade, assim, de fazer justiça está muito limitada. E chegamos ao extremo de ter de esclarecer que fazer justiça é aplicar a lei no caso concreto e não as supostas provas que aparecem divulgadas em redes sociais e tabloides.

Se a justiça vive sob uma enorme pressão, as consequências políticas não se farão esperar, estão aí aliás. As soluções para o lodaçal e roubalheira generalizada em que supostamente vivemos já são conhecidas: inverte-se o ónus da prova, instaura-se a delação premiada, limita-se a presunção de inocência, desculpa-se o eventual abuso de poder das forças policiais. Ou seja, acaba-se com o Estado de direito e a democracia, regime que, convém lembrar aos mais distraídos, é o menos propício à corrupção: as ditaduras são, por definição, a institucionalização da corrupção.

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