segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

DUMA “VITÓRIA” COLONIAL-FASCISTA QUE NUNCA HOUVE... – I

 Martinho Júnior, Luanda

OPORTUNA REINTERPRETAÇÃO SUSCITADA POR ESTE 4 DE FEVEREIRO DE 2020

Para a formulação do pensamento dialético e estratégico de Agostinho Neto, houve uma questão sempre presente na visão do líder influindo nos factores da vanguarda: a afirmação consequente e constante do Não Alinhamento Activo do MPLA no âmbito da luta armada de libertação contra o colonialismo, o “apartheid” e muitas das suas sequelas, que obrigou a imensos sacrifícios, desde logo entre 10 de Agosto de 1962 (data em que o camarada Agostinho Neto assumiu a Presidência do MPLA) e o 25 de Abril de 1975.

Essa percepção tem ficado deliberadamente fora dos conceitos da NATO (e de quem a ela se conecta), ainda activos e presentes hoje, conceitos que são básicos na caracterização da Guerra Fria usados por muitos “analistas” contemporâneos de história, de sociologia, de antropologia cultural, de psicologia, de política, de caracterização militar, de caracterização dos múltiplos processos das inteligências…

A quem vale a persistência de reduzir aquela época à bifurcação da Guerra Fria, quando a liberdade ia muito para além dessa estreita bifurcação?

01- O pensamento dialético e estratégico do Presidente Agostinho Neto teve uma formulação progressiva, cada vez mais enriquecida de experiências (adaptando-se à valorização dos sucessivos momentos tácticos que se foram sucedendo), até por que obrigatoriamente havia que enfrentar plataformas distintas de conjunturas e cenários, dentro e fora do território angolano, quase todas (essas plataformas) em regime de clandestinidade, ou semiclandestinidade.

O MPLA nas motivações da luta armada de libertação nacional, foi nesse sentido uma relevante preciosidade, mesmo a nível da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, CONCP, o que contrastava desde logo e por isso, em relação aos processos etno-nacionalistas, que transversalmente sempre tiveram que ver com uma multiplicidade de fenómenos que era premente sempre interpretar, por causa de suas implicações com a vida e a sobrevivência!



A ruptura era:

. Com conjunturas e cenários típicos do colonialismo português…

. Com o neocolonialismo enquanto resíduo da Conferência de Berlim (manifestamente em função dos regimes que se foram sucedendo em Kinshasa e sua nefasta influência, não só em relação ao MPLA, mas também à FNLA, moldada ao jeito da tipologia de seus interesses)…

. Mais tarde com o próprio “apartheid” e a esbatida contrarrevolução portuguesa (mesmo já sem o Exercício Alcora em vigor, os contactos e comunicações entre Lisboa e Pretória foram sendo mantidos “discretamente” pelos sucessivos governos portugueses do “arco de governação”)…

. E até com o imperialismo (tendo em atenção substancialmente os interesses das transnacionais europeias e estado-unidenses, mineiras, do petróleo e de outras afins, ou em apêndice, inclusive transnacionais ligadas à nascente burguesia industrial portuguesa, ao nível de Champalimaud e Grupo Mello)…

A definição do pensamento dialético e estratégico de Agostinho Neto, sendo a antítese, em ruptura em relação à tese colonial e internacional fascista, ao afirmar-se na trilha do Não Alinhamento Activo, fora dos pressupostos da Guerra Fria, abriu-se à lógica com sentido de vida, inestimável para quem teria obrigatoriamente de fazer a leitura de identidade patriótica e popular, tão implicada na mobilização do esforço humano da própria guerrilha e tão implicada na sobrevivência da própria organização e seus militantes!

Levou também a que os aspectos da luta armada de libertação nacional não se limitassem à vitória sobre o colonialismo português (nos termos do Programa Mínimo), mas tivessem continuidade (por exemplo por via da resistência popular generalizada consumada via Organização de Defesa Popular, ODP) até ao colapso do “apartheid” em 1991 e ao Acordo de Bicesse, de 31 de Maio de 1991, quase doze anos depois da morte de Agostinho Neto!...

2- Pode-se em síntese considerar algumas das linhas que identificam o pensamento dialético e estratégico daquele que viria a ser o primeiro Presidente de Angola, respeitador da história desde os caboucos patrióticos, respeitador do momento tático decisivo que foi o 4 de Fevereiro de 1961:

. Generalização da luta armada;

. Primazia do interior em relação ao exterior;

. Unidade na luta de todas as organizações patrióticas envolvidas na luta armada de libertação nacional no sentido dum amplo movimento;

. Utilização das leituras sobre os factores físico-geográfico-hidrográfico-ambientais, a fim de melhor adequar as acções da guerrilha, “do campo, para cerco às cidades”;

. Utilização de processos de antropologia cultural artesanais e outros, para adaptação da guerrilha ao terreno (tendo em conta o papel do campesinato na guerrilha);

. Íntima relação dos processos de guerrilha com a mobilização popular, incluindo nas questões tão vitais quanto a produção e a logística alimentar comuns;

. Educação e preparação da guerrilha (Centros de Instrução Revolucionária), captando e mobilizando em uníssono a vontade de todos;

. Educação e saúde para todos (escolas e postos de saúde nas linhas de penetração), muito importantes para a actuação duma guerrilha de baixa intensidade;

. Integração de processos de luta sindical tendo em conta os milhares de refugiados compulsivos fora das fronteiras do país;

. A ideologia como arma (orientação marxista-leninista), associada aos processos de produção e gestão de dados (com influência directa no ciclo informação-análise-tomada de decisões);

. Inventário, definição e contínuo balanço das teses referentes ao inimigo e dos seus amplos campos de acção e manobra externa e interna, a fim de saber aplicar a ruptura enquanto antítese;

. Alastramento da guerrilha de baixa intensidade e num processo de antítese, sucessivamente, à 1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª RPM;

. Primazia da luta clandestina nas cidades, sem recurso a sabotagens com uso de explosivos, ou a emboscadas, ciladas e outras formas de luta urbana, a fim de proteger da repressão uma inestimável base humana de mobilização e sustentação, obrigada a viver (sobreviver) em regime prolongado de clandestinidade ou semiclandestinidade.

A guerrilha urbana do MPLA, só se iria manifestar entre o 25 de Abril de 1974 e o 11 de Novembro de 1975, durante o período de descolonização e mesmo assim numa geometria discreta, muito variável e flexível…

Até mesmo quem tem compendiado a história do MPLA e do Presidente Agostinho Neto referente a esse período, parece ter ainda hoje muita dificuldade em reconhecer e dar a conhecer os meandros da época em termos de luta nas cidades (com implicações em termos de luta de classes), muito em particular na capital…

Os “historiadores” de serviço têm deliberadamente excluido sempre a narração do que foi feito, como foi feito, que métodos foram empregues, com que meios, objectivos e fins, quem foi mobilizado para tal e teve participação activa, como os meios humanos foram mobilizados e onde foram instalados, que razões levaram à prossecução da luta nesses termos, como evoluíram os organismos e estruturas implicadas, tendo em conta que a fase final da descolonização foi um processo transitório, mas muito sensível e decisivo para a independência…

Assim, poucos conseguem abordar o papel, a tipologia de missões e operações, a amplitude, assim com os objectivos do Grupo de Operações Especiais (GOE) da Segurança do Estado Maior das FAPLA, então instalado clandestinamente na Camuxiba à ilharga do Morro da Luz, à Samba, tal como do Comando Operacional de Luanda (COL), então instalado na Vila Alice!

As leituras correntes em rescaldo do GOE são tão “híbridas”, são tão levianas, ligeiras e alienatórias, que domina a versão romanceada da existência dum muito informal “grupo do Geitoieira”, tido como um grupo de “meio-lumpens suburbanos”, quando os nexos eram tão fortes, quanto disciplinados, quanto ao fim e ao cabo, transitórios, sob o comando do próprio Estado-Maior das FAPLA que também estava em rápida evolução!...

3- A fidelidade canina do pensamento dialético e estratégico de Agostinho Neto ao Não Alinhamento Activo (inspirando-se entre outros em Broz Tito e na Jugoslávia, por razões de semelhança das características do mosaico humano do espaço físico-geográfico jugoslavo e angolano), obrigou:

. A dar primazia ao político, tendo em conta que após a IIª Guerra Mundial o processo político global abriu espaço à emancipação juvenil dos povos, visando a sua autodeterminação e independência;

. A poupar energias de forma a poder aplicá-las em escalada, à medida que novos estados independentes iam surgindo na África Austral, conforme os casos da Tanzânia, (independente a 26 de Abril de 1964) e da Zâmbia, (a 24 de Outubro de 1964);

. A dimensionar progressivamente os esforços da luta de libertação em África, contra o colonialismo e o “apartheid”, de Argel ao Cabo, reforçando por via da chegada das colunas 1 e 2 do Che (1965), o que possibilitou avançar-se a linha da frente informal do paralelo entre Dar es Salam e Brazzaville, para o paralelo da Zâmbia;

. A integrar nos processos interconectados de luta armada no seguimento da independência da Zâmbia, para além do quadro da CONCP, organizações como a ZANU e ZAPU (Zimbabwe), SWAPO (Sudoeste Africano, Namíbia) e ANC (África do Sul);

. A tirar partido de tudo isso em benefício do Não Alinhamento Activo, de molde a procurar superar insuficiências gritantes do fornecimento de material e equipamento militar por parte da URSS…

 A cultura de impedimento aos parâmetros típicos da Guerra Fria por parte do MPLA e à manutenção vital dos parâmetros do Não Alinhamento Activo, levou a que a URSS e demais países socialistas componentes do Pacto de Varsóvia, não fornecessem material e equipamento aéreo e antiaéreo às organizações progressistas em luta armada de libertação nacional no espaço da África Austral, o que possibilitou, ao contrário do que aconteceu com o reforço do PAIGC na Guiné Bissau (que levaria à Proclamação da Independência em Madina do Boé, a 24 de Setembro de 1973), o domínio do espaço aéreo e das capacidades de movimento, taticamente rápido e tirando partido do efeito surpresa, assim como da capacidade de desflorestação por parte dos componentes do Exercício Alcora, entre os inícios de 1966 e o 25 de Abril de 1974.

CONTINUA

Martinho Júnior -- Luanda, 9 de Fevereiro de 2020

Livros cujas capas e conteúdos animam esta presente intervenção:
. O pensamento estratégico de Agostinho Neto, da autoria de Iko Carreira;
. Agostinho Neto, uma vida sem tréguas, 1922 a 1979, de Acácio Barradas;
. Angola, 1966 a 1974, Vitória Militar no Leste, de António Pires Nunes;
. Alcora, o acordo secreto do colonialismo, de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes;
. A PIDE no xadrez africano, Angola, Zaire, Guiné e Moçambique, conversas com o Inspector Fragoso Allas, de Maria José Tíscar.

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