Ficamos avisados: ai dos povos
cujos dirigentes resolverem combater o cataclismo económico gerado pelo novo
coronavírus recorrendo às bem conhecidas «ajudas» do FMI e das suas extensões
troikianas.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
A directora-geral do Fundo
Monetário Internacional, Kristalina Georgieva, pronunciou uma sentença em
poucas palavras que vale mais que mil imagens: «A Organização Mundial
da Saúde [OMS] existe para proteger a saúde das pessoas; o FMI existe para
proteger a saúde da economia mundial.»
Ficamos avisados: ai dos povos
cujos dirigentes resolverem combater o cataclismo económico gerado pelo novo
coronavírus recorrendo às bem conhecidas «ajudas» do FMI e das suas extensões
troikianas para consumo interno da União Europeia!
Quando o Fundo Monetário
Internacional fala em «proteger a saúde da economia mundial» sabemos que isso
não passa de uma metáfora, porque a directora-geral de turno, que sucedeu a
Christine Lagarde, entretanto transferida para a chefia do Banco Central
Europeu, está realmente a pensar na acumulação dos lucros das grandes empresas
e na dinâmica especulativa do casino financeiro.
É o saber de experiência feito,
potenciado pela dimensão da hecatombe porque, para os ogres do capitalismo, os
tempos de grandes crises são também os das grandes oportunidades. Era
precisamente isso que o banqueiro David Rockefeller queria transmitir quando
afirmava que «tudo o que precisamos é da grande crise adequada e as nações
aceitarão uma nova ordem mundial».
Ora uma «ordem mundial» como
a pretendida pela família Rockefeller só pode ser a que garanta a actuação
plena do capitalismo selvagem, isto é, o estabelecimento de mecanismos firmes
que mantenham o neoliberalismo cada vez mais a salvo das preocupações com as
pessoas.
Georgieva explicou muito bem que
uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Da economia trata o FMI; das
pessoas que cuide a OMS, seja dos efeitos do coronavírus, da fome – que mata
nove milhões anualmente – do ébola, da malária e de outras pragas decorrentes
do crescimento da miséria mundial que tem no FMI um dos seus principais
causadores.
A «nova ordem», o «novo normal»
Desenganem-se, portanto, os que
vêem nestes tempos de peste uma ameaça para o capitalismo. O capitalismo não se
suicida, não morre de morte natural nem de uma qualquer virose.
Desde 2008 que se vem debatendo
com uma crise teimosa que dava sinais de explodir a todo o momento quando
entrou em cena o SARS-CoV-2 e mudou radicalmente as regras do jogo. A partir
daqui pode diluir-se a bolha de crise na tormenta generalizada com epicentro na
saúde pública enquanto se vai talhando um «novo normal» – eventualmente uma
«nova ordem» rockefelleriana – do qual sejam extirpados muitos dos
obstáculos sociais que ainda tolhem a implantação da plena anarquia económica.
Qualquer de nós tem a noção de
que se vêm agudizando, há mais de uma década, as contradições entre as
necessidades do neoliberalismo económico e o funcionamento das chamadas
«democracias liberais»; esta situação gerou até a cunhagem do curioso termo de
«iliberalismo», isto é, a crescente inclinação da ditadura económica para a
ditadura política sem disfarces.
A ordem mundial pré-vírus
caracterizava-se cada vez mais pelo antagonismo entre o globalismo neoliberal,
assente na democracia formal que emana, essencialmente, das forças que fazem
mover o Partido Democrático dos Estados Unidos; e o «iliberalismo» ou
«populismo» ou «nacionalismo», um «moderno» fascismo puramente
neoliberal do ponto de vista económico que ganhou maior influência desde que as
hordas de Trump tomaram conta do Partido Republicano dos Estados Unidos.
As «democracias
liberais» ainda determinam as políticas oficiais de Bruxelas, mas o peso
das correntes «iliberais» – sem rodeios, neofascistas – faz-se sentir
sobretudo no Centro e Leste da Europa, com algumas metástases latinas.
Não será excessivo recordar que a
ditadura política é o terreno preferido da ditadura económica como expressão
plena do neoliberalismo. O pujante triunfo do neoliberalismo económico nos anos
80 do século passado arrastou e transfigurou correntes políticas que ainda
mantinham referências sociais e acabaram por se converter aos mecanismos
ditatoriais do mercado.
A geminação ideológica do Partido
Trabalhista britânico de Tony Blair com o Partido Conservador de Margaret
Thatcher – admiradora de Pinochet – foi a transformação mais emblemática deste
processo. E deixou raízes tão profundas que ainda recentemente as correntes
manobradas por Blair deram um golpe interno nos trabalhistas para acabar com a
gestão de inspiração social-democrata de Jeremy Corbyn.
As excepções como regra
A pandemia de coronavírus desabou
sobre a crise anunciada do neoliberalismo e a agudização do combate fratricida
entre as suas correntes «democrática» globalista e neofascista.
E mudou muita coisa, a mais
essencial das quais será a criação da oportunidade para que o neoliberalismo
económico tire proveito da crise desbravando ainda mais o caminho para o
autoritarismo político. É o que ressalta de muitas afirmações sobre a extensão
das medidas sociais de excepção por tempo indeterminado e as elucubrações a
propósito daquilo a que já chamam «o novo normal», acompanhado pelo seu cortejo
de restrições sociais e cívicas – com efeitos políticos – e de intrusão na
privacidade dos cidadãos.
«A vigilância intrusiva será um
pequeno preço a pagar pela liberdade básica de estar com outras pessoas»,
escreveu Gideon Lichfield na edição de 17/20 de Março da Technology Review do
Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT).
«Milhões que fazem brilhar de
gula os olhos de credores e especuladores e que não cairão dos céus sem pesadas
contrapartidas que, como acontecia nos tempos pré-Covid-19, também no «novo
normal» serão sustentadas pelos mesmos de sempre e às ordens de troikas
que podem até assumir outras designações para desempenharem as mesmas missões.»
Regressando à sentença da
directora-geral do FMI não será exagerado prever que o «novo normal» na
economia, tendo como objectivo a sua «saúde», irá gerar uma concentração ainda
maior de riqueza em cada vez menos empresas e pessoas; o desmoronamento do
sector de pequenas e médias empresas que, uma vez falidas, cairão nas bocas
insaciáveis dos tubarões; a extinção de mais direitos laborais, o
aprofundamento da desregulação do mercado de trabalho e uma vaga de desemprego
com dimensões trágicas; novas formas de produção, como o teletrabalho, com
menos direitos; cortes salariais e dos custos de trabalho nos países
desenvolvidos e o maior empobrecimento ainda dos países em vias de
desenvolvimento; a escalada vertiginosa das dívidas soberanas; a imposição de
mais privatizações.
Nos Estados Unidos e na União
Europeia há promessas de milhões e milhões para fazer frente às consequências
da crise económica; e o FMI, como vimos, está a postos. Milhões que fazem
brilhar de gula os olhos de credores e especuladores e que não cairão dos céus
sem pesadas contrapartidas que, como acontecia nos tempos pré-Covid-19, também
no «novo normal» serão sustentadas pelos mesmos de sempre e às ordens de
troikas que podem até assumir outras designações para desempenharem as mesmas
missões.
A aliança entre a futurologia e a
prática
Também nunca será excessivo
recordar que a deflagração de uma pandemia está, há muitos anos, nos horizontes
dos futuristas neoliberais – o que é válido tanto para os globalistas como para
os «iliberais». Não surpreenderá, portanto, que as entidades competentes saibam
como proceder quando se trata de cuidar da «saúde da economia», quiçá para
fazer dela a «grande crise adequada» de que falava David Rockefeller.
No traumático ano de 2008, o
Centro de Análises e Perspectivas da CIA publicou um relatório sobre as
«tendências globais para 2025» no qual antecipou «a emergência de uma
doença respiratória altamente transmissível e para a qual não existirá
contramedida adequada e que poderá desencadear uma pandemia mundial».
Nove anos depois, na edição de
2017 da Conferência de Segurança de Munique, o inevitável profeta Bill Gates
assegurou que «uma pandemia mundial fortemente mortal acontecerá durante as
nossas vidas».
Entre as profecias e a realidade,
entretanto, vão-se detectando misteriosas coincidências. Em 2015, a
revista Nature Medicine publicou um trabalho sobre «os esforços
bem-sucedidos para projectar um vírus com a proteína de base SHCO14 do
coronavírus dos morcegos-ferradura da China para infectar células das vias
respiratórias humanas sem necessidade de um hospedeiro intermediário».
A manipulação foi efectuada no
principal laboratório de guerra biológica nos Estados Unidos, localizado em
Forte Detrick, Maryland. O ex-vice-ministro da Defesa da Alemanha, Willy Wimer,
revelou nesse mesmo ano que os Estados Unidos chegaram a patentear esta
descoberta.
Ficaram por explicar, entretanto,
muitos dos aspectos e motivações que envolveram o «exercício
anti-epidémico» de divulgação «reservada» designado «Crimson
Contagion», organizado já em 2019 pelo Departamento norte-americano da Saúde em
12 Estados norte-americanos, como a seu tempo noticiou o New York Times.
Em 22 de Março de 2020, o New
York Times escreveu o seguinte: «Washington – O surto do vírus
respiratório começou na China e rapidamente se espalhou pelo mundo através de
passageiros aéreos com febres elevadas. Nos Estados Unidos, foi detectado pela
primeira vez em Chicago e 47 dias depois a Organização Mundial da Saúde
declarou uma pandemia. Mas então já era tarde demais: 110 milhões de americanos
iriam ficar doentes, com 7,7 milhões de hospitalizados e 586 mil mortos. Esse
cenário, com o nome de código de "Crimson Contagion" e
imaginando uma pandemia de gripe, foi simulado pelo Departamento de Saúde e
Serviços Humanitários do governo Trump numa série de exercícios que ocorreram
de Janeiro a Agosto» (de 2019).
Todos estes factos nos conduzem à
certeza de que em termos económicos – a saúde é um caso à parte – o sistema
capitalista neoliberal não foi apanhado de surpresa perante as circunstâncias
em desenvolvimento, pelo que muitas das medidas que correm mundo não terão sido
preparadas sobre o joelho.
Até os métodos principais de
enfrentamento da pandemia – confinamento com distanciamento social e
«imunização colectiva» com «trabalho não pára» – traduzem, grosso modo, as
linhas de fractura entre globalismo e «iliberalismo».
Um sinal de que, entretanto, os
barões neoliberais não foram apanhados desprevenidos é revelado pelo Instituto
de Estados Políticos dos Estados Unidos: em 23 dias da fase inicial do surto,
as elites ricas dos Estados Unidos extraíram proveitos de 282 mil milhões de
dólares – um bom bocado mais do que o PIB anual português.
As missões dos cidadãos
Não sabemos se esta é a «grande
crise adequada» de que falou o banqueiro David Rockfeller. Que é uma crise
longa parece não haver dúvidas, basta ouvir a frequência com que nos vão
preparando para «a segunda vaga» ou «a terceira» ou mesmo «a quarta».
A revista Science acaba
de publicar um artigo produzido pela Universidade de Harvard segundo o qual o
confinamento social deverá prolongar-se até 2022, por insuficiência de
imunização; e a pandemia assumirá a forma de uma gripe pandémica circulando
sazonalmente após a grande vaga inicial.
Já percebemos, porém, o caminho
que as coisas estão a tomar nos domínios do condicionalismo dos comportamentos,
dos ataques à privacidade e das restrições às liberdades.
Não há alternativa, dizem-nos. Há
um preço a pagar – são sempre os mesmos a arcar com os custos mais elevados e
não existe nenhuma garantia de que agora seja diferente.
Nada impede, porém, os cidadãos
de redobrarem a vigilância sobre as crescentes tendências autoritárias, sobre a
normalização do excepcionalismo nas suas várias designações técnicas.
O capitalismo não será vítima do
vírus; pelo contrário, está preparado para tirar proveito dele enquanto as
pessoas continuam a morrer. Por outro lado, o neoliberalismo debate-se numa
espécie de «guerra civil» entre as suas facções – ainda que ambas convirjam
cada vez mais no sentido da imposição do autoritarismo.
Existe, neste quadro, um imenso
espaço para a acção e a mobilização anticapitalista. É missão reforçada dos
cidadãos estarem atentos a cada direito social, cívico e humano que tentem por
entre parêntesis, a cada passo contra a privacidade, a cada prolongamento do
excepcionalismo primeiro porque tem de ser e depois porque tem sido assim.
Há que denunciar cada investida
deste tipo, mesmo quando embrulhada nas melhores intenções, cada golpe nos
direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. O direito à luta não prescreve,
a vigilância democrática tem de ser à prova de vírus, o distanciamento social
não pode capturar o direito à mobilização cidadã como refém.
O neoliberalismo quer tirar
partido de um vírus que há muito guardava na cartola? Então há que inverter-lhe
o jogo, por muito que as forças sejam desiguais.
Exclusivo O Lado Oculto / AbrilAbril
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