sábado, 4 de setembro de 2021

Gestores públicos condenados a pagar 2,6 milhões do seu bolso

PORTUGAL

Quantia entrou nos cofres públicos após acórdãos do Tribunal de Contas, a título de multa ou de devolução de dinheiro. Processos versam desfalques de centenas de milhares de euros, mas também falhas em contratos de valor relativamente baixo.

Cheques rasurados ou emitidos em nome próprio e de familiares, transferências bancárias para pagar despesas pessoais ou faturas saldadas sem que o fornecedor tenha prestado o serviço. Nos últimos cinco anos, o Tribunal de Contas condenou 90 gestores públicos a devolver ao Estado, do seu próprio bolso, 1,8 milhões de euros. Acrescem 169 condenações a multa (807 mil). Alguns processos envolvem desfalques de centenas de milhares de euros, mas outros há que envolvem quantias muito menores.

As condenações do Tribunal de Contas abrangem presidentes de institutos públicos e escolas profissionais, gestores universitários, autarcas ou administrativos de escolas ou cooperativas [ler ao lado]. Em todos os casos, usaram dinheiro do Estado de forma ilegal ou, de alguma forma, sem cumprir a lei - seja em proveito próprio ou não. Alguns processos foram, inclusive, parar a tribunais criminais, por suspeita do crime de peculato.

Evitar julgamento

Tal como nos tribunais criminais, a iniciativa da ação cabe aos delegados do Ministério Público que trabalham na esfera do Tribunal de Contas. Uma vez instruído o processo, o Ministério Público pode levar os gestores públicos a tribunal, pedindo a sua condenação a dois tipos de pena: multa (infração de natureza sancionatória) ou devolução de dinheiro utilizado de forma indevida (infração de natureza reintegratória).

Confrontados com a intenção do Ministério Público de os levar a julgamento, podem escolher pagar de forma voluntária. É o que cada vez mais acontece, sobretudo quando estão em causa multas. De acordo com o Tribunal de Contas, em 2016, os acusados tomaram a iniciativa de pagar três mil euros. Desde então, o valor subiu todos os anos, até ultrapassar os 173 mil no ano passado. Também as devoluções feitas antes de ir a julgamento estão a subir, mas num valor mais modesto: 63 mil euros, em 2020.

A larga maioria do dinheiro, porém, acaba por ser paga por decisão de um juiz, após julgamento. Mas aqui não é clara uma tendência. Nos últimos cinco anos, foi em 2018 que o tribunal presidido por José Tavares ordenou a devolução da maior quantia: mais de 845 mil euros. Desde então, baixou para 388 mil euros em 2019 e 221 mil no ano passado. O mesmo acontece nas multas: o ano de 2019 foi o de maior cobrança: 214 mil euros. Já no ano passado, desceu para menos de 90 mil.

O dinheiro devolvido é, depois, entregue à entidade lesada. Já as multas são receita do Tesouro.

Nos últimos anos, dezenas de acórdãos do Tribunal de Contas (TdC) condenaram gestores públicos a devolver dinheiro às entidades para as quais trabalharam e/ou pagar multas por falhas na gestão do dinheiro do Estado. Aqui ficam alguns exemplos recentes.

Golpe de 200 mil na cooperativa CASES

Entre 2011 e 2013, a então responsável pelo gabinete financeiro da Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES) apropriou-se de quase 200 mil euros. A estratégia passava obter da direção da CASES autorizações para fazer pagamentos a fornecedores habituais, em montantes usuais. Depois, fazia pela Internet as transferências - mas em vez de inscrever o IBAN dos fornecedores, registava o seu ou de familiares.

Em sua defesa, alegou que o desfalque foi feito num período da sua vida pessoal conturbado, mas o argumento não colheu junto do TdC, cuja sentença, já de 2020, transitou em julgado. Em paralelo, foi também condenada, num processo instaurado pela CASES. A sentença, disse a instituição, já transitou em julgado. À falta de acordo para o pagamento, está a preparar uma ação executiva

Escola de Barrancos perde 46 mil euros

Transferências bancárias para pagar contas pessoais ou cheques emitidos em nome de fornecedores, mas rasurados para que pudesse levantar o dinheiro: são estas as acusações que levam o TdC a condenar a antiga chefe dos serviços administrativos do agrupamento de escolas de Barrancos a devolver 45 698 euros.

A partir de uma denúncia do diretor do agrupamento, o caso foi parar à Inspeção-Geral da Educação e ao Tribunal de Contas, cujos juízes deram como provado que, em 2013, 2015 e 2016, a administrativa deu a assinar aos responsáveis pela escola um total de 32 cheques, emitidos em nome de fornecedores. Depois, rasurou os cheques, escreveu o seu nome e levantou-os. Além disso, passou outros cheques em seu nome ou no do seu companheiro, no valor de 20 mil euros.

Por último, copiou as senhas de acesso ao banco online que os responsáveis da escola guardavam num cofre. Com elas, não só transferiu dinheiro para a sua conta como pagou contas de telecomunicações ou energia de uma loja que explorava - em mais de sete mil euros. No Tribunal de Beja, foi condenada por peculato, mas, quando o TdC proferiu a sua decisão, a sentença ainda não tinha transitado em julgado.

Contrato de IPDJ leva a devolver 1492€

As dúvidas sobre criação do Instituto do Território (IT), durante o Governo de Passos Coelho, levaram a Assembleia da República a pedir uma auditoria ao Tribunal de Contas. A julgamento foram dirigentes de quatro entidades públicas: a empresa de estacionamento de Lisboa EMEL, o laboratório LNEC e os institutos de Habitação e do Desporto e Juventude (IPDJ). Condenado a devolver dinheiro, porém, foi só um: Augusto Baganha, presidente do Instituto de Juventude e Desporto: 1492 euros, mais juros. Em causa, diz o tribunal, está o facto de o IPDJ ter pagado todo o valor previsto no contrato para 2015, apesar de o IT não ter realizado todas as ações previstas, como o 2.o congresso de atividades náuticas para pessoas com deficiência. Ao não deduzir o valor correspondente ao não-executado, lê-se na sentença de 2019, atuou com culpa, por negligência.

Ao JN, Augusto Baganha disse que a equipa que dirigiu está "de consciência tranquila". "O acordo foi cumprido na totalidade ou na esmagadora maioria e resultou em benefício para o desporto. Por isso, recorri" da decisão, afirmou. No julgamento, o IPDJ argumentou, ainda, não ter pessoal suficiente para acompanhar os mais de 400 contratos-programa em vigor na altura. O recurso manteve a decisão inicial.

Universidade de Évora paga obras não feitas

A sentença ainda não transitou em julgado, mas condena dois responsáveis da Universidade de Évora a devolver 18 mil euros. O texto assinado pelo Tribunal de Contas refere obras de construção civil adjudicadas por ajuste direto e pagas integralmente, apesar de não terem sido feitas na totalidade; e falta de documentos necessários, como a justificação da escolha da empresa à qual as obras foram entregues (é sempre a mesma, não identificada), autos de consignação, registo da fiscalização das obras ou a conta-corrente da empreitada. O texto refere, ainda, a participação da universidade no capital de entidades como a ZEA - Sociedade Agrícola ou o Parque da Ciência e Tecnologia do Alentejo, sem visto prévio do TdC, entre outros. Dos nove demandados, só dois foram condenados a devolver dinheiro: um antigo administrador paga 12987 euros, sozinho, mais 5269 euros, de forma solidária com um trabalhador dos serviços técnicos.

Por que razão os gestores são obrigados a devolver dinheiro do seu bolso?

Há dois tipos de sanção financeira. A multa aplica-se, entre outros, quando o gestor não cobra dinheiro devido ao Estado, viola as regras de elaboração e execução de orçamentos, ultrapassa os limites de endividamento, executa ações sem visto prévio (quando é exigido) ou viola a lei da contratação pública. Já a reposição (reintegração) está prevista para os casos em que desaparece dinheiro do Estado, em que é desviado ou é pago de forma indevida.

Quem recebe o dinheiro devolvido?

O dinheiro é entregue ao Tribunal de Contas, mas não fica nos seus cofres: é enviado para a entidade pública para a qual o gestor trabalhava. Já o valor das multas é receita do Estado.

Pode haver recurso para tribunais judiciais?

Não. É possível recorrer, mas só dentro do Tribunal de Contas (o caso é visto por outros juízes conselheiros que não os envolvidos na 1.ª instância).

Alguém condenado a devolver dinheiro em dois tribunais - o de Contas e um judicial - paga duas vezes?

Não, só terá de o fazer uma vez. Se tivesse de devolver a mesma verba duas vezes, estaríamos perante um caso de enriquecimento sem causa por parte da entidade pública da qual o valor foi desviado.

O que acontece se a pessoa não toma a iniciativa de pagar?

Se a pessoa condenada não pagar de forma voluntária, é instaurada uma ação de execução, por parte dos tribunais tributários.

Alexandra Figueira | Jornal de Notícias | Imagem: Leonardo Negrão / Global Imagens

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