quarta-feira, 6 de julho de 2022

UMA VALA NA HISTÓRIA E CULTURA DE LUANDA – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Ceguinho seja eu. Surdo que nem um pneu. Maneta total e perneta absoluto. Descabeçado. Idiota. Mais burro do que o burrinho da Chicala e tão besugo como o senhor comendador do sisal lá para os lados do Cubal. Hoje vi com estes que a terra comeria se eu não fosse cremado, uma reportagem sensacional da TPA. Abertura das notícias na abertura da semana. O ministro da Injustiça e dos Atentados aos Direitos Humano foi à zona dos Ramiros, estrada da Barra do Cuanza, visitar a vala onde foram enterradas “as principais figuras do 27 de Maio de 1977”

O repórter da TPA garantiu-nos que “o espaço vai ser um marco de homenagem e respeito pelas vítimas”. Aquilo, há 45 anos, era um matagal. Como os exploradores de ossadas chegaram ali? O jornalista explica: “Existem provas escritas e orais que este é o ponto da execução dos principais rostos do 27 de Maio”. Os rostos. O resto nunca existiu. Aliás, dos 30, 40, 50 100 mil mortos está tudo reduzido a esta vala dos Ramiros. E o Executivo esconde quantas certidões de óbito foram emitidas. Quantas famílias procuram os desaparecidos. 

A TPA não tem dúvidas: “ As vítimas foram trazidas, mortas e enterradas nesta vala comum!” Está dito, redito e que ninguém se atreva a duvidar porque é logo apontado como sabotador da unidade nacional. Familiares das ossadas foram em marcha fúnebre até à vala dos Ramiros. Membros do Executivo também marcharam. Que remédio! Um padre deu uma palavra de conforto espiritual aos familiares das vítimas. Em nome do pai, do filho e do espírito de santo. O repórter, com ar de vendedor de caixões e ossadas, disse muito despachado: “Esta vala sinaliza as feridas abertas”.

Depois falaram familiares e membros do Executivo. Mas ninguém foi identificado. Nem a governadora provincial de Luanda que fez esta declaração bombástica, nada condizente com o momento de vender ossadas: “Este é um local voltado para a História e Cultura da cidade de Luanda”. Se me for permitida uma sugestão, no monumento que vão erguer, coloquem 13 tábuas, cada uma com as teses de Nito Alves, escritas pelo Rui Coelho.

O arquitecto que descobriu a vala também falou sob anonimato (a TPA não o identificou). E ele disse claramente: “Chegámos aqui porque seguimos o rasto de um tanque bebedouro para os animais”. O ministro coordenador das ossadas garantiu ao repórter: “Esta visita foi muito importante!”

Se vossas excelências não se importam eu gostava de informar que todos os terrenos, desde a base dos paraquedistas portugueses até à Barra do Cuanza pertenciam à sociedade Gomes & Irmão. Todo aquele território era destinado à criação de gado em pastagens livres. Existiam imensos bebedouros. Em 1977, ainda andavam por lá manadas com milhares de cabeças de gado. Que só tinham de enfrentar um perigo: Os felinos selvagens. Alguns têm o mau hábito de escavar a terra para desenterrar os mortos. Depois as hienas e os abutres fazem o resto. 

O senhor ministro da Injustiça e dos Atentados aos Direitos Humanos, com um ar compungido, pingando ossadas por todos os poros, disse a frase sacramental tipo abre-te sésamo, cofre: “Estamos aqui para cumprirmos uma orientação do senhor Presidente da República no sentido de darmos este passo muito importante para as famílias”. Um anónimo familiar de rosto do 27 de Maio garantiu: “Estamos aqui com espírito de História para fazermos a História”. Ai fezes, fezes.  

De repente, o repórter da TPA saiu dos Ramiros e avançou para o Sambizanga. Antes tivesse partido uma perna e fosse levado para o Hospital Américo Boavida. O azougado jornalista mostrou um sítio, plano fechado, e garantiu que “aqui era um terreno baldio e depois o antigo mercado Roque Santeiro. Os camaradas vieram para cá numa combi. Eram os comandantes Bula, Dangereux, Nzaji, Saidy Mingas e Garcia Neto. Depois foram queimados. Mais tarde levaram um segundo grupo e também foram queimados.” Mas não disse quem eram os “segundos”. Porém esclareceu que foram enterrados no Cemitério do Alto das Cruzes.

 Lamento imenso informar que aquele terreno era baldio no século XIX. No início do século XX começou a ser habitado. A partir dos anos 30 do século passado, a Câmara Municipal de Luanda fez ali a lixeira da cidade, a céu aberto. As meninas e meninos do meu tempo sabem que o velho Sambizanga era chamado musseque Lixeira. Portanto, os principais rostos do 27 de Maio de 1977, as vítimas, os donos das ossadas, mataram os camaradas e atiraram com os corpos para a lixeira da capital angolana.

Alguns foram despejados no lixo, ainda vivos. O comandante Gato (Ciel da Conceição) contou-me com todos os pormenores, esse momento trágico. O Centro Tchiweka de Documentação tem nos seus arquivos uma entrevista com o comandante Gato, o único que escapou com vida. Ele contou-me este pormenor: “O comandante Eurico foi esventrado com um punhal e atirado para cima de mim. Só depois começaram a disparar. Tive a sorte de ter o camarada Eurico como escudo. Ele, em agonia, disse-me: - Gato, tu estás melhor do que nós, vai para a estrada e avisa os nossos camaradas que estamos aqui”. O comandante Gato foi mesmo dar o alerta. Não querem ouvir o seu depoimento à Tchiweka?

A parte mais dolorosa fica para o fim. A TPA nunca referiu o nome do comandante Eurico. Sabem quem foi? Até 1974 era o comissário político da Frente Norte que incluía a I Região Politica e Militar do MPLA. Depois de 1974 e até 1976 continuou nessas funções, em Cabinda. O Presidente Agostinho Neto chamou-o para o Estado-Maior General das FAPLA, como chefe do Pessoal. A sua missão foi arrancar com o processo de transformação do exército guerrilheiro em forças armadas nacionais. Como ele conhecia todos os combatentes da Frente Norte, recusou patentear vigaristas que se apresentavam como comandantes da I Região. Por isso foi assassinado pelos rostos e vítimas do 27 de Maio.  

Hélder Neto era um quadro do Ministério da Defesa. Trabalhava no domínio das informações, actividade importantíssima num país que estava em guerra contra forças armadas estrangeiras no Norte no Sul e Sudeste de Angola. 

O que levou a TPA a ignorar o comandante Eurico e Hélder Neto? Lamento imenso ter de escrever isto: O comandante Eurico era filho de um mestiço e de uma senhora branca. Hélder Neto eras filho de um senhor branco e de uma senhora mestiça. Clarinhos. Por isso foram assassinados pelos rostos e vítimas do 27 de Maio. Racismo no canal público de televisão. Abraçar e perdoar. O amor salva! Eu já não tenho salvação. Sou ceguinho, surdo, mudo, maneta e perneta. Que ninguém ponha em causa a unidade das ossadas!

*Jornalista

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