António Galamba –
jornal i, opinião
Assiste-se à
criação de um modelo de país com dois sistemas, uma saúde para ricos e uma
saúde para os que não podem pagar
Consagrada a tese
de que o que tem de ser tem muita força, enunciada com propriedade irrevogável
no Congresso Nacional do CDS-PP, não é de estranhar que as consequências da
estratégia política da maioria tenham crescente visibilidade mediática.
A saúde é dos
sectores que mais sofrem com o excesso de austeridade. John Keynes já dizia que
"a longo prazo, todos estaremos mortos". Caminhamos para que, no
presente, possam acontecer mortes evitáveis.
Qualquer que seja a
perspectiva ideológica ou a procura pragmática de soluções sustentáveis, não é
admissível que existam bloqueios no acesso à saúde e que a vida humana possa
ser posta em causa.
Portugal, com o
contributo de diferentes partidos, soube criar um serviço nacional de saúde de
qualidade (SNS), com profissionais competentes e, no essencial, com uma
distribuição dos cuidados geograficamente equilibrada, que garantiu o acesso à
assistência médica em tempo útil.
Hoje, com os
sucessivos casos que são públicos, é evidente a mudança de paradigma. Haverá
lóbis, desperdícios e redundâncias a corrigir, mas o caminho que está a ser
seguido só conhece um sentido: o dos cortes cegos e que vão muito além dos
preconizados pela troika. Assiste-se à criação de um modelo de país com dois
sistemas, uma saúde para ricos e uma saúde para os que não podem pagar, em que
as medidas da troika surgem como oportunidade e pretexto para delapidar o SNS.
Na verdade, estes
cortes sem qualquer alteração estrutural ou reforma substancial conduziram a
uma epidemia de bloqueios, pré-rupturas e rupturas que põem em risco o acesso
dos cidadãos aos cuidados de saúde, degradam as condições de trabalho dos
profissionais e destroem os serviços prestados, que até há pouco tempo
constituíam referência para muitos outros países.
Vejamos. O
Memorando inicial estabeleceu, para 2012, um corte de 550 milhões de euros, mas
o governo resolveu duplicar o corte para 1000 milhões.
Em 2013, os cortes
no sector da saúde situaram-se nos 214 milhões de euros.
Em 2014, a receita
prossegue e não se augura nada de bom: a carta de Pedro Passos Coelho enviada à
troika apontava um corte de 127 milhões de euros na saúde dos portugueses, mas
o que se verifica no Orçamento do Estado para 2014 é que o corte será superior
ao dobro do acordado, 278 milhões de euros.
O Memorando inicial
previa para 2012 e 2013 cortes de 925 milhões de euros, não estabelecendo
quaisquer cortes para 2014 e 2015. O governo da maioria PSD/CDS, em apenas três
anos, terá concretizado uma amputação de despesa de 1619 milhões de euros. Isto
é, 75% acima do previsto.
É claro que quem
tem um seguro ou quem pode aceder aos cuidados sem bloqueios pode continuar a
falar da estratosfera da reforma do Estado, como se, no quadro de referência da
actual maioria, não estivesse a falar de cortes com impacto real na vida dos
portugueses.
É claro que a
narrativa do governo e da maioria pode ser desmentida diariamente pela
ambulância de emergência que não sai, pela colonoscopia que não é marcada, pelo
medicamento que não é comprado, pela taxa moderadora que não pode ser paga,
pelo aumento das listas de espera para consultas, exames e cirurgias, e por
muitos outros futuros adiados que podem até nunca chegar a acontecer.
E pode até
acontecer que, na ânsia de uma história de sucesso alavancada nos sacrifícios
das pessoas, se movam montanhas, do mascarar da realidade à alteração de
ratings em vésperas de eleições europeias, mas nada, mesmo nada, justifica o
risco de perda de vidas.
Político (PS) - Escreve
às quintas-feiras
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