Inocência Mata* -
AfroPress
Começo por lembrar
um livro do britânico Paul Gilroy, Against Race: Imagining Political
Culture beyond the Color Line [ii] (2000), um livro provocativo em que
ele, para mostrar a perversidade da identidade com base na cor da pele,
renuncia, irônicamente, à raça. A questão que se põe é: renunciando à raça,
liquida-se o racismo?
Lembro esse livro
por causa de uma interessante matéria num diário português [iii] – Portugal onde era (e ainda é em
muitos espaços, mesmo na academia) “tradição” combater o racismo não falando
dele, tradição, aliás, durante muito tempo “seguida” por Brasil (quem não se
lembra do discurso oficial de que no Brasil não há racismo?).
Ora, a matéria
parece ter chamado, há poucos dias, a atenção de muita gente, entre ela uns
tantos ex-alunos meus – e este facto deixa-me contente (porque revela que, de
certo modo, despertaram para a problemática e já não se portam como um “colour
blind”, isto é, começaram a ver a realidade para além do idealismo das
palavras): pois como dizia, para além de um e-mail que um amigo, que vive em
Londres mas sempre atento ao que se passa em Portugal, me enviou, recebi a
mesma matéria de três ex-alunos de um seminário de Pós-Graduação da Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa denominado Multiculturalismo e Dinâmicas
Interculturais, em que passamos em revista sociedades em que a
multiculturalidade, nem sempre vista de forma positiva, tem sido gerida de
modos muitos diferentes.
Sendo o Brasil um
caso impositivo (pela sua proximidade e pela sua forte presença no nosso
horizonte histórico), obviamente que o caso brasileiro é muitas vezes citado
nas nossas sessões.
O título da matéria
jornalística é “Quem quer ser negro no Brasil” e faz-se de histórias de vida,
cada uma mais interessante do que a outra. Mas para mim a mais sensível é a
primeira, uma história de vida de uma jovem cuja vida, ainda curta (ela tem 32
anos), dinamiza uma história de uma intensa densidade paradigmática da condição
do negro no Brasil.
A história está bem
contada pelas jornalistas, a matéria é de uma inteligência tão sensível que
comove: é a história de Ariana, de Salvador, a “caçula” de 12 irmãos, negra e
favelada, que foi a primeira a ir para a universidade. E se tornou médica. Foi
esta primeira história que me obrigou a ler de uma “assentada” o artigo…
Antes de prosseguir
quero contar uma experiência: quando comecei a visitar o Brasil, o que faço
hoje com muita frequência para meu gáudio (porque gosto muito de ir ao Brasil,
de trabalhar no Brasil e de interagir com colegas brasileiros, alguns grandes
amigos, dos melhores que tenho), incomodava-me a forma como os meus colegas e
amigos me apresentavam, quer para familiares quer para amigos seus que não
fossem nossos colegas: “Olhe, esta é a Inocência, ela é africana, professora na
Universidade de Lisboa, professora de literatura, ela tem doutoramento em isto
e aquilo, escreveu isto e aquilo”. Como aquilo me incomodava!
É que eu, quando
apresento alguém, um amigo a outro amigo ou não, não me lembro de desfiar as
habilitações literárias desse amigo: digo de onde é e, dependendo do contexto,
o que faz. De resto, é um amigo. Até que um dia lhes disse que me sentia
incomodada com a forma como eles me apresentavam. E um deles me respondeu: “Vou
ser honesto com você, Inocência. A gente está protegendo você. É que dizendo
que você é africana [o que sou] valoriza logo você e ainda mais se você é
professora universitária. É que aqui a gente diz que não, mas as pessoas são
muito preconceituosas (diga-se de passagem que este colega foi, ainda nos
anos 90 do século XX, dos poucos que já pensavam assim pois o normal, entre a
maior parte dos meus colegas, mesmo os não brancos, era o discurso de que no
Brasil a discriminação é social – e não racial).
Bem, ser confundida
com empregada doméstica não é coisa estranha para mim no Brasil (nem para a
médica cubana de quem uma jornalista, Micheline Borges , disse ter “cara de
empregada doméstica” e não de médica [iv]! -, pois como dizia, basta(va) entrar
sozinha num prédio, normalmente de um colega meu que felizmente tem um nível de
vida acima da maioria…
Fecho parênteses
sobre a minha aprendizagem como professora universitária negra no Brasil para
voltar ao artigo cuja introdução (lead, na linguagem jornalística) é este:
Uma médica que nos
hospitais é confundida com empregada de limpeza e cresceu a ouvir “negro não
presta”. Um magistrado que foi o primeiro negro num tribunal superior do país
em Brasília. Um doutorado a quem pedem para arrumar o carro. Uma festa popular,
Iemanjá, onde o Brasil misturado parece o país da democracia racial. Breve
geografia do racismo à brasileira e a pergunta: pode o Brasil eleger um
Presidente negro em breve?
Lembram-se da
polémica do Obama se ele fosse africano? Lembram-se por que a polémica
incomodou tanta gente, eu incluída? Uma das razões foi precisamente não se ter comparado
um continente, a África – em que existem vários Obamas, deve lembrar-se – com
um outro, a Europa, em que não há Obama nenhum e que deveria haver, senão
Obamas, pelos menos mais políticos com visibilidade, mais deputados, mais
ministros… Para já não falar de juízes, como Joaquim Barbosa, o primeiro negro
a presidir ao Supremo Tribunal Federal.
Quando é que numa
sociedade em que as relações são racializadas não há racismo?
Na foto: Inocência
Mata
*É Professora da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa na área de LAC - Literatura Artes
e Culturas
[i] Crónica lida aos microfones da
RDP-África no dia 27 de Março de 2014, Adaptada.
[ii] Cambridge, Massachusetts: Harvard
University Press, 2000.
[iii] Jornal Público, (Lisboa), 23 de
Março de 2014.
[iv] Um colega e amigo meu brasileiro,
negro, disse-me que realmente o Brasil estava mudar. Por dois motivos:
primeiro, “Minha amiga, primeiro você deve ver que ela disse o que geralmente
aquela elite preconceituosa (e não apenas) diz – portanto, o pecado dela foi
ter dito o que muita gente pensa; mas o Brasil está a mudar porque há 10 anos
não haveria essa indignação toda. Seria: Ah, ela não devia ter dito, mas não é
preciso esse sururu todo, ela não disse por mal”. E não é que eu própria já
ouvi condescendências dessas a propósito de afirmações semelhantes?! Mas eu só
gostava de saber como é cara de médico…
- Gentileza: Alberto Castro
- Gentileza: Alberto Castro
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