Há dois anos, a
reportagem entrava na mesma casa de onde o escritor moçambicano Mia Couto
dirige sua empresa de consultoria ambiental, seu “outro trabalho”. Há dois
anos, observava, nas paredes, obras do seu amigo Malangatana, o artista
plástico de Moçambique de maior prestígio no mundo, morto em 2011.
Enquanto deparava
com suas pinturas sobre o colonialismo português neste país, podia imaginar
quanto sangue havia sido derramado durante os 26 anos de conflitos quase
ininterruptos – dez anos de guerra pela independência e 16 da subsequente
guerra civil, que deixou uma conta de um milhão de mortos.
No início de 2012, a Revista do Brasil publicou aquela entrevista com Mia
Couto, sobre as duas décadas de paz que estancaram esse sangue. Em 1992, os
protagonistas da guerra civil, o governo de antiga inspiração marxista da
Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e o grupo opositor Resistência
Nacional de Moçambique (Renamo) assinaram em Roma o Acordo Geral de Paz.
Interromperam um cotidiano de desestabilização e instauraram uma democracia
pluripartidária, permitindo um forte crescimento econômico. Para Mia Couto,
aqueles 20 anos de paz que Moçambique comemorava eram um milagre. Mas esse
milagre parece ter acabado.
A reportagem volta ao seu escritório em Maputo, capital de Moçambique, para
conversar sobre a retomada do conflito entre a Frelimo e a Renamo e como isso
afetou sua literatura. Desde o final de 2012, uma crise política levou os dois
grupos a voltar a se confrontar militarmente. Em outubro do ano passado, o
grupo opositor chegou a encerrar o acordo de paz, voltando atrás dias depois,
mas nem por isso reduzindo o número de ataques a bases do governo e a estradas
– ao contrário, aumentando. A Renamo acusa a Frelimo, um partido que está há 39
anos no poder, de ter partidarizado o Estado, reclama mais participação nas
instituições e pede mais transparência nas eleições. A Frelimo, por sua vez,
critica a Renamo por ter continuado a ser uma força armada paralela ao Estado
mesmo depois da paz.
Enquanto isso, e apesar de as negociações por um cessar-fogo caminharem
positivamente, a região central do país é arena de combates constantes.
Estima-se que o novo conflito já matou aproximadamente mil pessoas e resultou
em cerca de um milhão de deslocados. O governo moçambicano tenta esconder que a
crise é séria, para não sujar a imagem de estabilidade e afastar os
investimentos estrangeiros, como de empresas brasileiras. Não há uma guerra
generalizada e declarada, mas Mia Couto crê que é não é outro o nome do que tem
ocorrido. "O romance que eu estava a preparar há dois anos ficou um bocado
conturbado com esta situação. Esses momentos obviamente afetam", admite.
Mia Couto foi membro ativo da Frelimo. Mas largou o partido no final da década
de 1980 e hoje é biólogo e um dos escritores de língua portuguesa mais
traduzidos do mundo. Seja como poeta, romancista ou contista, dificilmente
escapa à dura realidade social e política de Moçambique. E agora não é exceção.
Ameaçado de sequestro e afetado pelo difícil momento político, abandonou o que
seria seu novo romance. Confira a entrevista:
Moçambique está em guerra?
Acho que sim. Nós não temos de ter medo de dar nome às coisas. Para mim, guerra
não é uma coisa que tenha um grau: uma guerra que é pouca, uma guerra que é
muita... Tem guerra a partir do momento em que as armas se tornam o veículo
principal de obtenção daquilo que são os ganhos políticos de uma força
qualquer. Infelizmente, manteve-se uma situação pouco clara depois da
declaração de paz, em que um dos partidos políticos, que foi uma força armada,
não foi desarmado. A Renamo já antes fez várias ameaças de voltar à guerra. Não
é esta a primeira vez. É um caso recorrente. Agora voltou realmente à guerra. E
eu acho que podemos dizer que há uma guerra de baixa intensidade, mas está aí.
O senhor diz que a Guerra Civil Moçambicana não foi exatamente uma guerra
civil, mas uma guerra fomentada por países estrangeiros. Qual é o verdadeiro
motivo desse novo conflito?
Este conflito é resultado do fato de termos resolvido pela metade a situação.
Isso é só um capítulo de alguma coisa que não foi bem fechada. Para fechar bem
uma guerra, é preciso que haja uma reconciliação. Para explicarmos esse passado
tão recente, recorremos a explicações que apenas falam por metade do que foi,
explicações políticas ideológicas.
Mas não tentamos entender profundamente as razões daquela violência. Não foi
feito esse debate. Houve uma percepção das pessoas de que era melhor não mexer
muito nesse assunto, que era uma paz frágil e que era melhor não abrir aquela
caixa de fantasmas. Ao contrário do que fizeram sociedades como, aqui ao lado,
a África do Sul, que fez uma comissão formalmente instituída para apuramento de
responsabilidade, a comissão da verdade, aqui, escolheu-se o silêncio. Isso é
uma solução falsa. Ninguém esquece. Portanto, há aqui coisas não resolvidas,
que nunca se tornaram um passado claramente marcado.
O senhor não esqueceu...
É impossível esquecer. Por isto que esta guerra mesmo que seja agora em pequena
escala, esses incidentes militares, transporta-nos ineditamente pra esse clima
de horror que a gente quis apagar dentro de nós. Mas isto nunca se apaga. Uma
guerra nunca se esquece.
O último livro que o senhor lançou no Brasil, no final de 2012, A Confissão da
Leoa, trata da opressão sofrida pela mulheres em Moçambique. Como em outras
obras suas, há um confronto permanente entre a tradição e a modernidade. O
senhor diz que a guerra civil foi causada, por causa desse confronto. Vemos
isso acontecer de novo?
Esse é um outro tipo de conflito. Quer dizer, tudo isso se mistura também. Essa
guerra é também um bocadinho de crispação entre um certo tipo de modernidade e
um certo tipo de tradição. Mas o brasileiro está a viver isso, a Suécia vive
isso, a China vive isso... Todos vivem. O problema é saber como esse conflito é
determinado por razões do tempo exterior, do mundo exterior, que no fundo é um
mercado global.
Se essa paz que se alcançou é falsa, que tipo de paz pode ser concebida aqui em
Moçambique?
É preciso de uma paz que seja ela própria sustentável, que não seja só uma
reconciliação de forças políticas, formalmente estabelecida entre dois
partidos, mas entre os cidadãos desse país e entre o cidadão e sua própria
cidadania, que ainda está em construção. Isso é tudo novo em Moçambique. Muita
gente vive no mundo rural e não teve nenhum contato sequer com o Estado. É
preciso que Moçambique abrace um modelo de desenvolvimento que seja realmente
integrado, participativo, justo e equitativo.
É preciso que haja possibilidade de uma democracia que não seja só formal. Uma
democracia viva, que seja vivenciada pelas pessoas, que não vão lá só dar o
voto. A crise que Moçambique vive é uma profunda crise para chegar a um modelo
de fazer política que já sabemos que morreu, não é? E nós fazemos de conta que
está ainda vivo.
A qual modelo de fazer política se refere?
Esse modelo da democracia representativa, com os partidos políticos, os
sindicatos e essas coisas. Hoje, nós sabemos que o cidadão tem outra maneira de
intervir, não precisa de um partido pra se organizar e sair à rua. Vemos o que
aconteceu no seu próprio país em junho do ano passado.
No Brasil, há uma grande ignorância sobre o que se passa na África de um modo
geral. Como o senhor pensa que deve ser a relação entre Brasil e países irmãos
lusófonos, como Moçambique e Angola?
Nós achamos que somos parecidos, mas não queremos levar essa familiaridade até
o fim. Ficamos naquilo que é muito formal. E festejamos uma coisa que é muito
folclórica. Temos essa ideia de que nossa proximidade se dá, porque falamos a
mesma língua e temos uma história comum como colônias. Mas isso é meio mentira.
Falamos a mesma língua, sim, com algumas diferenças.
Mas a nossa história é bastante diferente. Fomos colônia de outra maneira. E
nos tornamos independentes de outra maneira. É preciso reconhecermo-nos como
primos, como parentes, cada um com sua própria história. Agora existe aquela
coisa de abraçarmo-nos como irmãos, etc, e de repente, ausentamo-nos
completamente, com o pretexto que temos um mundo diverso, com uma posição
geográfica diferente. Não vamos nos tratar como irmãos que se ajudam, mas como
irmãos que fazem negócios, com economias que partilham interesses.
A Vale está aqui hoje explorando carvão, e isso não se deve ao fato de
Moçambique ser amável e de o Brasil ser simpático. Não nos ajudamos mutuamente.
É mais verdadeiro dizer que são interesses econômicos, de ganhos de lucros. Eu
não tenho muita simpatia em relação a isso, mas eu prefiro o que é posto em
cima da mesa com toda a verdade a um discurso de solidariedade, de uma amizade
muito especial, que é falso.
Como esse momento político afeta sua literatura? Pode-se esperar algum livro
novo?
Sim. Tem aí duas coisas que estão por vir: um texto de poesia e um livro de
ensaios. O romance que eu estava a preparar há dois anos ficou um bocado
conturbado com essa situação. Esses momentos obviamente afetam. A escrita pede
uma certa tranquilidade interior. Nós temos que estar em sossego por dentro
para poder escrever. O romance ficou desarrumado, porque exige uma constância,
uma disciplina, uma proximidade permanente com os personagens.
O senhor parou de escrever por conta do conflito?
Por conta de várias coisas. Porque também minha vida é um pouco dispersa. Eu
sou biólogo, que é um outro trabalho, porque a escrita também é um trabalho. E
conforme os picos de intensidade, tenho que fazer uma espécie de retirada
provisória. Mas depois volto àquele texto, eu volto lá.
No ano passado, no auge da crise política, houve uma onda de sequestros em
Maputo. De alguma maneira, muita gente relacionava isso com a crise política. E
o senhor foi ameaçado.
Minha família foi ameaçada. Felizmente, nunca chegou a acontecer. Mas nós
tivemos que tomar medidas pra nos proteger. Essa onda de raptos tem uma relação
com o conflito, mas acho que nós não entendemos bem. Para o Brasil, não seria
uma coisa nova, mas, para nós, era um coisa que não existia. Não tínhamos a
tradição desse tipo de crime. E de repente surgem raptos com intensidade maior
e coincidem com o momento de instabilidade política. Aconteceram de foram
massiva nas cidades, e isso causou uma enorme desestabilização. Mas até agora,
nós não estamos a perceber bem o que aconteceu.
O que o senhor mais teme?
Essa memória mal resolvida da guerra. O que mais temo é que regressemos a uma
situação como aquela em que vivemos até 1992. É impossível explicar bem, eu
transmito isso a um brasileiro, e vocês têm paz desde há décadas, desde
sempre...
Mais ou menos. O Brasil tem uma taxa de 20,4 homicídios por 100 mil habitantes,
que é maior do que muitos países em guerra.
É verdade. O número de pessoas que morrem por dia no Brasil vítimas da
violência é quase uma outra guerra, uma guerra não declarada. É uma guerra
oculta. De qualquer maneira, em Moçambique, essa é uma outra guerra, que tem
uma dimensão, uma intensidade, partilhada como uma ameaça brutal, que eu não
quero voltar a viver nunca mais.
O senhor acha que pode haver de novo uma guerra generalizada?
Não tanto como aquela que houve, mas pode haver uma situação de
ingovernabilidade, em que se deixa de haver caminho.
Fonte: Rede Brasil Atual, em Vermelho
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