terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Preparação de uma nova guerra


Thierry Meyssan*

A chegada de novas armas e de novos combatentes à Líbia anuncia uma nova guerra contra a população. Na realidade, a situação jamais acalmou desde o ataque da OTAN conforme a estratégia Rumsfelf/Cebrowski de guerra sem fim. Ao franquearem uma etapa suplementar, os protagonistas nada resolvem, mas ampliam o conflito.

Todos estão de acordo em reconhecer que a situação dramática actual da Líbia e do Sahel é a consequência da intervenção ilegal da OTAN em 2011. No entanto, raros são aqueles que estudaram este período e tentaram compreender como se chegou a isso. À falta de reflexão, dirigi-mo-nos, pois, para uma nova catástrofe.

Importa conservar no espírito vários factos que se obstinam em esquecer:

-- A Jamahiriya árabe líbia, criada por um golpe de Estado notavelmente pouco sangrento, não foi uma tomada de Poder por um ditador neurótico, mas uma obra de libertação nacional face ao imperialismo britânico. Foi também a expressão de uma vontade de modernização que se traduziu pela abolição da escravatura e uma tentativa de reconciliação entre as populações árabes e negras de África.

-- A sociedade líbia está organizada em tribos. Portanto, é impossível lá instalar a democracia. Muamar Kaddafi havia organizado a Jamahariya árabe líbia no modelo das comunidades de vida imaginadas pelos socialistas utópicos franceses do século XIX. O que significava criar uma vida democrática local, mas deixar de lado esse ideal a nível nacional. Além disso, a Jamahiriya morreu por não ter política de alianças e, portanto, não poder defender-se.

-- A Coligação (Coalizão-br) que atacou a Líbia foi liderada pelos Estados Unidos, que mascararam o seu verdadeiro objectivo aos seus aliados durante todo o conflito e os colocaram perante o facto consumado (leading from behind, ou seja, "dirigindo por trás"-ndT). Depois de terem clamado durante meses que, acima de tudo, estava fora de questão envolver a OTAN, foi esta a estrutura que comandou as operações. Washington jamais tentou proteger os civis, nem instalar um governo às suas ordens, mas, pelo contrário, instalar rivais e impedir a paz por todos os modos (doutrina Rumsfeld / Cebrowski).

-- Não houve, jamais, qualquer revolução popular contra a Jamahiriya, mas, sim intervenção da Alcaida no terreno, o despertar da divisão entre a Cirenaica e a Tripolitânia e a intervenção coordenada pela OTAN (os Aliados no ar, a tribo Misrata e as Forças especiais catarianas no solo).

Desde logo, a rivalidade entre o governo de Trípoli e o de Bengazi remete-nos para a divisão do país de antes de 1951 em dois estados distintos, a Tripolitânia e a Cirenaica, depois ao despertar dessa divisão durante a agressão da OTAN. Contrariamente à reacção que espontaneamente se tem, não se trata hoje em dia de apoiar um lado contra o outro para restabelecer a paz, mas, pelo contrário, de unir os dois campos contra os inimigos do país.


Actualmente, o governo de Trípoli é apoiado pela ONU, pela Turquia e pelo Catar, enquanto o de Bengazi é apoiado pelo Egipto, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, França e Rússia. Fieis à sua estratégia, os Estados Unidos são o único país a apoiar, ao mesmo tempo, os dois campos para que eles se matem indefinidamente.

O princípio de uma intervenção militar turca foi adoptado pela Grande Assembleia Nacional, em Ancara, a 2 de Janeiro de 2020. O que pode ser interpretado de três maneiras que se complementam:

-- A Turquia apoia a Confraria dos Irmãos Muçulmanos no Poder em Trípoli. O que explica o apoio do Catar (favorável à Confraria) ao mesmo governo e a oposição do Egipto, dos Emirados e da Arábia Saudita.

-- A Turquia desenvolve as suas ambições regionais, apoiando-se, para isso, nos descendentes dos antigos soldados otomanos de Misrata. É por isso que ela apoia o governo de Trípoli após a tomada da capital, em 2011, pela tribo Misrata.

- A Turquia utiliza os jiadistas que já não pode mais proteger em Idleb (Síria). É por isso que os transfere para a Tripolitânia e daí partirá ao assalto de Bengazi.

A intervenção turca é legal pelo Direito Internacional e baseia-se na solicitação do governo de Trípoli, legalizado pelo Acordo Skhirat (Marrocos), a 17 de Dezembro de 2015, e pela Resolução 2259, de 23 de Dezembro de 2015. Pelo contrário, todas as outras intervenções estrangeiras são ilegais. Isto, na precisa altura em que o Governo de Trípoli é composto pelos Irmãos Muçulmanos, Alcaida e Daesh (E I). Assiste-se, pois, a uma inversão de papéis, encontrando-se agora os progressistas no Leste do país e os fanáticos no Oeste.

De momento, apenas alguns soldados turcos estão já do lado do governo de Trípoli, mas há soldados egípcios, emiradenses, franceses e russos do lado de Bengazi. O anúncio do envio oficial de alguns soldados turcos suplementares não mudará grande coisa a este equilíbrio, mas já a transferência de jiadistas pode envolver centenas de milhar de combatentes. Isso pode virar o tabuleiro de xadrez.

Lembremos que, contrariamente à narrativa ocidental, foram os combatentes líbios da Alcaida, e não os desertores sírios, que criaram o chamado Exército sírio livre no início da guerra contra a Síria. A viagem de regresso destes combatentes é previsível.

Só as milícias sírias turcomanas e a Legião do Levante (Faylaq al-Sham) começaram a por-se a caminho, ou seja, cerca de 5. 000 combatentes. Se esta migração continuar via Tunísia, ela poderá durar vários anos até a total libertação da província de Idleb (ou Idlib-ndT). Isto seria uma excelente notícia para a Síria, mas uma catástrofe para a Líbia, em particular, e para o Sahel em geral.

Iríamos acabar na Líbia com a mesma situação da Síria: os jiadistas apoiados pela Turquia face às populações locais apoiadas pela Rússia; as duas potências evitando, cuidadosamente, enfrentarem-se directamente, tanto mais que a Turquia é membro da OTAN.

Ao instalar-se em Trípoli, a Turquia controla agora o segundo fluxo de migrantes para a União Europeia. Ela poderá, portanto, reforçar a chantagem que já exerce sobre Bruxelas com o seu próprio fluxo a partir da Turquia.

Na ausência de fronteiras físicas, os Exércitos jiadistas não deixarão de se espalhar pelo deserto, da Líbia para todo o conjunto do Sahel.

Eles tornarão os países do G5-Sahel (Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger e Chade) ainda mais dependentes das Forças anti-terroristas francesas e do Africom. Eles irão ameaçar a Argélia, mas não a Tunísia, já nas mãos dos Irmãos Muçulmanos e administrando o trânsito de jiadistas em Djerba.

As populações sunitas do Sahel serão então depuradas e os cristãos sahelianos serão expulsos como o foram os cristãos do Oriente.

Chegará um momento em que os Exércitos jiadistas atravessarão o Mediterrâneo; Estando as ilhas italianas (nomeadamente Lampedusa) e Malta a cerca de 500 milhas náuticas. A VIª Frota dos EUA intervirá imediatamente para os repelir, em virtude dos Tratados do Atlântico Norte e de Maastricht, mas o caos atingirá inevitavelmente a Europa Ocidental. Não restará, então, aos Europeus que derrubaram a Jamahiriya árabe da Líbia mais do que os olhos para chorar.


*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

Imagem: O Presidente Fayez Al-Sarraj finalizando o plano de intervenção turco com o seu Sub-secretário de Defesa, o General de brigada Salah Al-Namrush.

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