segunda-feira, 18 de março de 2024

Portugal | O bicho entrando na maçã

Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião

Os resultados das eleições legislativas do passado domingo deixaram qualquer democrata preocupado. A preocupação não pode transformar-se em susto. A situação política que temos exige muita ação, e o medo gera tolhimento.

É preocupante a grande expressão da extrema-direita na Assembleia da República (AR), por razões várias: i) os efeitos de instabilização deste órgão de soberania e dos papéis que lhe estão atribuídos; ii) o descrédito para a AR, que pode resultar da chafurdice política que ali vai ser tentada; iii) a participação na AR como alavanca para o ataque aos outros órgãos de soberania, minando os alicerces do Estado social de direito democrático; iv) a utilização deste palco maior da organização do Estado, para a difusão de chavões fascistas como “Deus”, “Pátria”, “Autoridade” e de conceitos indefinidos, que pretensamente dizem tudo, mas não clarificam nada, como são exemplos: “pessoas de bem”; “subsidiodependência”, “esbulho fiscal”, “ideologia de género”.

A ameaça fascista não é um fenómeno conjuntural nos planos nacional, europeu e mundial. O bicho há muito entrou na maçã e vai contaminando-a. É grave que os problemas concretos das pessoas contem menos para a governação que os fundamentalismos tecnocráticos de instituições sem escrutínio democrático.

António Costa não geriu a maioria absoluta de que dispunha com os objetivos que havia apresentado aos portugueses. Secundarizou o papel das representações coletivas, em particular dos sindicatos. E acabou a executar as políticas que conduzem à velha frase “a vida das pessoas não está melhor, mas a do país está muito melhor”, ou seja, as pessoas a sofrer quando lhes eram anunciados êxitos económicos.

Marcelo Rebelo de Sousa foi fazendo exercícios de encantamento e jogos táticos, à espera de uma oportunidade para entregar o poder à Direita. Fê-lo com maestria, muitas vezes substituindo a falta de programa e de ação dos partidos da Direita que, se fossem obrigados a agir, até podiam travar o crescimento da extrema-direita. Preparou tudo para que fosse o povo a decidir autocastigar-se, em nome da vantagem das eleições, porque “é o povo quem mais ordena”. Marcelo não sabia que as suas opções na gestão dos processos políticos nos Açores e na Madeira e, em particular, a precipitada convocação de eleições criavam condições excecionais de atuação à extrema-direita?

Também há muitos anos se nota incapacidade do sistema de Justiça em comunicar de forma aberta (adequada às limitações institucionais) com os cidadãos. Esta incapacidade (só?) torna o sistema um produtor de nuvens escuras que favorecem a ação dos inimigos da democracia. Por outro lado, observa-se, a olho nu, o bicho a infiltrar-se em representações coletivas e instituições, minando-as por dentro.

Muitas pessoas têm profundas razões para estarem descontentes. São duras as injustiças e a inviabilização de sonhos que se devem ter numa sociedade democrática. Um desafio se nos coloca: é preciso construir esperança para todos, a partir dos contextos em que cada um se encontra.

As forças democráticas não estão a conseguir ser espaços de acolhimento e de ação para camadas jovens e outras. Há que conhecer melhor os objetivos programáticos da extrema-direita, os instrumentos, mecanismos e camuflagens que utiliza para os concretizar. O diálogo paciente com as pessoas precisa desses esclarecimentos e de apresentação de programas alternativos.

* Investigador e professor universitário

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