São multidão — muitas, com menos
de vinte anos. Tomam as ruas. Exigem, batucam e dançam. Querem o direito ao
aborto e o fim de um mundo governado por homens ricos e tristes
Reportagem do Coletivo
Lavaca | Imagens: M.A.F.I.A |Tradução: Inês Castilho
Olhar o que se passa através dos
olhos da geração que está abarrotando as ruas argentinas hoje é ao mesmo tempo
uma tarefa simples e complexa. As jovens falam até pelas faces pintadas com
purpurina, mas o que dizem é tão interessante que faz falta algo mais que aguçe
a escuta para compreender o significado de cada palavra. Chiara, Laura e
Angelica chegaram com uma dezena de companheiras do ensino secundário. Uma
pintou a outra: os olhos, os lábios, as unhas ficaram verdes. Cada uma tem um
lenço amarrado no pescoço, nos cabelos ou no braço. É o uniforme desta geração,
advertiu Ofelia
Fernández no recinto do Congresso.
Tomaram o trem, caminharam desde
o bairro de Constitución e ao chegar à 9 de Julho se apropriaram, como todas,
da avenida.
Vão cantando, vão de mãos dadas e
vão contentes.
A chuva não as molha: as rega.
Florescem a cada passo.
O frio não as congela. As faz
arder.
Gritam cada vez mais forte e em
cada batucada – que há por todos os lados – sacodem as cadeiras para dançar ao
ritmo de um dia que elas estão tornando histórico, porque lhe impregnam com seu
ritmo. Qual é ele? “Tem que se mexer”, respondem. “São dias importantes e você
não pode ficar sentada. Está em jogo o nosso futuro e não podemos deixá-lo nas
mãos de ninguém.” Quem responde é Chiara, séria.
De onde vêm? “Vivemos num
subúrbio de Lomas, que está pior do que nunca porque as pessoas estão amargas,
mal.” O que entristece o bairro? “As pessoas não têm nenhuma esperança.” Vocês
têm? “Não sei se temos esperança, mas ao menos temos claro que as coisas
precisam mudar e não vamos esperar que sejam mudadas pelos mesmos que fizeram
todo esse mal.” A que responde é Laura. A quem se refere? Aos políticos, aos
mais velhos, a sua família? “A todos. Minha família me apoia, mas eu digo para
minha mãe que ela tem de fazer alguma coisa mais por si, que venha às
manifestações, que são pelo bem de todas. Ela foi afastada do trabalho, está
fazendo de tudo um pouco, e isso a cansa. Digo que se vier às marchas vai
renovar as baterias, mas a entendo: não tem um grupo que a apoie e isso torna
tudo mais difícil.
Nós estamos juntas o tempo
inteiro, falando de tudo, apoiando-nos em tudo, e isso deixa a vida mais fácil.
Nos dá força. Nos dá energia. Se uma cai, as outras a levantam.” O que faz com
que caiam? “Eu fico pra baixo quando tornam tão difícil coisas que estão tão
claras. Veja o que acontece hoje. Tem de ser muito careta para não se dar conta
de que, se tanta gente vem aqui, com este clima, é porque o aborto legal não é
uma moda, mas uma necessidade. Por que, então, não votam a lei? O que imaginam
que vai acontecer se não a aprovarem? Querem que festejemos que se caguem de
rir de nós? Às vezes penso que o fazem para provocar um desastre. Escuto os que
falam das “duas vidas” e não sei se rio ou se choro. São cínicos: acreditam que
não vamos nos dar conta de que a única coisa que lhes importa é que calemos a
boca. E não se dão conta de que isso é impossível: nós não vamos mais nos
calar.” Quem fala é Angélica.
As três têm 16 anos.
Quantas como elas há, hoje?
Dizer milhares é pouco.
Algumas sustentam cartolinas com
frases que impactam.
“Existo porque resisto”
“A pornografia é a escola da
violação”.
“Mulher, não gosto quando se
cala.”
“Basta é basta.”
“Nos queremos vivas, livres e sem
medo.”
Outras se abraçam para ocupar a
amplidão da avenida Maio ao ritmo de uma coreografia de cancan.
Muitas procuram um lugar para
entrar na coluna que ocupa mais de 15 quadras e, enquanto vêm passar bandeiras,
organizações e palavras de ordem, escolhem seu lugar. Não por acaso, apesar de
não estar à frente, a coluna da Campanha Nacional pelo Aborto legal, seguro e
gratuito é a mais bem nutrida: mais de duas quadras, maioria de jovens,
contidas por um tecido verde infinito que funciona como abrigo, mas também como
convite: verde é sua cor.
Cantam que o patriarcado vai
cair, que tirem seus comentários de nossos ovários, que não são nem suas
nem asus [ni tuyas ni yuta] e que Não é Não. Essas demandas são as que
unem as ativistas “soltas” e as manifestações artísticas que, ao longo da
Avenida de Maio, denunciam a violência com a convicção de que elas próprias vão
freá-la.
As ações comemorativas e
agitadoras do Ni Una Menos começaram
sábado em vários pontos do país. E mulheres de todas as coordenadas levantaram
firmes seus lenços verdes. A mensagem segue sendo Basta, mas neste caso o
pedido se dirige a um Congresso que deve representá-las e todavia não se
pronuncia a favor. Essa catarata de concentrações que uniu províncias terminou
hoje em frente ao Palácio Legislativo com uma maré que lhes lançou um só grito,
que teve uma só cor: verde furioso.
Pedimos, assim, algo muito
concreto: que o aborto seja legalizado.
As meninas cantam agora o que
deve ser cantado: “Agora que estamos juntas/ agora que sim, nos veem.”
Vê-las é compreender.
Não são especiais, não são
únicas, não são diferentes.
São.
E são muitas.
E estão dançando.
Vai cair.
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