quarta-feira, 13 de março de 2024

Portugal | Golpe de Estado

Não é hora de rodriguinhos, de tiradas politicamente correctas, de hipérboles linguísticas, de palavras mansas.

José Goulão | AbrilAbril | opinião

O que aconteceu durante os últimos meses teve um desenvolvimento dramático no domingo 10 de Março, e consumou um golpe de Estado; abrem-se problemas e situações ainda mais nefastas para o povo português.

Um golpe de Estado não acontece apenas quando esbirros de um qualquer Pinochet, movidos pelos fascistas do neoliberalismo económico, instauram um regime político militarizado para que um país e o seu povo sejam despojados de vidas, bens e direitos. Golpe de Estado é também aquilo que está a acontecer em Portugal desde 2022, através de interferências desnecessárias no chamado «regime democrático». Se é ou não é plenamente democrático sabemos perfeitamente que não, mas deixemos por ora isso de lado para posteriores considerações.

Sem qualquer carga simbólica, mas porque este desfecho é perseguido há 50 anos, com rampa de lançamento em 25 de Novembro de 1975, o afilhado do último ditador abriu terreiro para que as bestas derrotadas em 25 de Abril de 1974 voltem a ter poderosas rédeas de poder em Portugal.

Em duas eleições que decidiu ordenar à revelia dos portugueses e de quaisquer normas democráticas, o venerando Chefe de Estado, espécie de Thomaz com a agravante de ter capacidade de intervenção determinante nos centros de decisão, deu asas ao fascismo lusitano permitindo a multiplicação por 27 das representações dos seus heterónimos na Assembleia da República, bastante mais semelhante agora a uma Assembleia Nacional. Se o leitor não fez as contas saiba que a IL, o salazarismo snob, cresceu oito vezes, de um para oito deputados, em 2022, mantendo agora esse grupo: o salazarismo caceteiro, tão acarinhado pelos meios de intoxicação social levando em triunfo o trauliteiro da bola reconfigurado em picareta falante sob os sorrisos babados de oligarcas e especuladores domésticos e estrangeiros, cresceu doze vezes em 2022 e quadriplicou a sua representação no passado domingo, atingindo 48 deputados.

Entre eles vêem-se operacionais e herdeiros do banditismo de 1974 e 1975 que assassinaram democratas e destruíram bens e instalações de partidos democratas, principalmente do Partido Comunista Português, alvo principal da sua sanha e também inimigo a abater pela cáfila de comentadores e analistas, deuses infalíveis da opinião única que chocam com desvelo os ovos da besta fascista. Caceteiros, admiradores, amigos e seguidores dos envolvidos na vaga terrorista de 1974 e 1975 são agora respeitáveis «eleitos», «senhores deputados» que, por muito que haja juras de serem mantidos à margem dos círculos governamentais – diz o povo que quem mais jura mais mente – são figuras que nunca deixarão de se fazer convidadas em cada recanto por onde se move a renovada classe política. Além de integrarem a miríade de cenários políticos que a comunidade informativa, opinativa e censória vai obrar com fartura durante uma cegada que parecerá interminável.

25 de Novembro 2.0

O núcleo duro do 25 de Novembro de 1975, aqueles que queriam verdadeiramente o regresso ao passado e não impedir que Portugal caísse sob uma «ditadura comunista», deram no domingo mais um significativo passo em frente e, por muito que se esmerem nos testemunhos de gratidão, nunca conseguirão prodigalizar os agradecimentos suficientes ao chefe de Estado, Marcelo afilhado de Marcello.

Em 25 de Novembro aglutinaram-se os que não quiseram acompanhar a dinâmica revolucionária e os que desejavam à viva força erradicar o 25 de Abril como se nunca tivesse existido. Um saco de gatos anticomunista manipulado pela CIA (tal como o golpe de Pinochet dois anos antes) mas dentro do espaço europeu, onde já pareceria mal fazer desaparecer pessoas ou fuzilá-las a eito num estádio.

Configurou-se então o «Centrão», o golpe brando que, através de quase 50 anos, deixou Portugal no estado em que se encontra hoje, um satélite da NATO, uma província da União Europeia sem capacidade para decidir sobre instrumentos democráticos fundamentais; um subúrbio económico esvaziado, com mecanismos públicos e sociais periclitantes, dependendo exclusivamente de uma actividade aleatória como o turismo; um pregoeiro de leilão que saldou todo o aparelho produtivo e transformou o país no mais desequilibrado e desigual da Europa, na cauda de praticamente todos os indicadores de referência. 

Em 10 de Março, exactamente um dia antes de se completarem 49 anos sobre outra tentativa de golpe, a do fascismo spinolista inspirada no modelo de Pinochet que os militares de Abril corajosamente fizeram abortar, abriu-se uma nova fase da execução do 25 de Novembro para erradicar completamente do país as referências do 25 de Abril de 1974. A jornada de luta e resistência em que se transformarão as celebrações da efeméride no próximo mês demonstrarão que o fascismo poderá ter colocado mais uma vez a carroça à frente dos bois. Nesse dia e, certamente, nos tempos que teremos pela frente, o dinamismo e a convicção popular saberão contribuir para minorar ou mesmo apagar os efeitos que a escória eleitoral resultante de um processo distorcido por um sofisticado aparelho de envenenamento e propaganda derramou sobre a sociedade. A resistência política e social, como sempre, irá separar as águas entre Abril e Novembro, demonstrando à classe política que não é dona exclusiva do poder e muito menos da democracia.

A doença do anticomunismo

Basta olhar os números eleitorais e escutar a barragem de fogo dos media corporativos – e mesmo dos públicos, que vegetam à imagem do país – para se concluir que hoje como em Novembro de 1975 o anticomunismo é a ferramenta fulcral do reaparecimento do fascismo e das elucubrações marcelistas. 

O Partido Socialista, que tanto se pôs a jeito – e ainda consegue chamar «centro democrático» à direita – deverá começar a sentir na pele que o fascismo com o peito cada vez mais inchado não irá poupá-lo, obviamente com o PSD como testa de ferro.

O Partido Comunista Português tem sido, porém, o único alvo a abater para que o 25 de Abril desapareça de vez da memória, consciência e vida dos portugueses. Digamos que o PCP é a última fronteira, a barreira que sobra para que o neoliberalismo fascista já instaurado nos planos económico e financeiro, graças ao eficiente aparelho policial de Bruxelas, tenha finalmente a sua correspondente política.

Daí que tenha valido e continue a valer tudo contra o PCP. Silenciamento do seu discurso e até da sua existência, deturpação ostensiva e constante da sua mensagem, calúnia contra as suas intenções, o seu programa e a acção dos seus dirigentes, o encorajamento e o  apoio grosseiro do divisionismo à esquerda, a censura pura e simples, a agressividade, a manipulação e desigualdade de tratamento contra a sua campanha eleitoral. 

Os exemplos recentes deste ramo essencial da estratégia golpista de inspiração fascista é o tratamento factualmente mentiroso e omisso das posições do PCP em relação ao problema ucraniano. A intoxicação mediática conseguiu o milagre de fazer crer que os comunistas portugueses estão ao lado do capitalismo oligárquico russo que, com a ajuda ocidental, arrasou a herança económica e social da União Soviética. Alcançar a quadratura do círculo é um feito só ao alcance dos que fazem da mentira, da censura, da liquidação do pluralismo e da liberdade de opinião o seu modo de vida. A defesa da paz na Ucrânia e em todo o mundo pelo PCP é interpretada como um apoio a Putin. Fazer do absurdo verdade é, desde sempre, uma trama do nazifascismo. Ao mesmo tempo, apoiar o regime golpista de Kiev é uma posição que, segundo o aparelho dominante, decorre da democracia. Isto é, a nossa democracia sustenta o nazismo, o racismo e a xenofobia dos nazi banderistas. Por estas e outras, não nos espantemos que as variantes do salazarismo somem 56 deputados no Parlamento, quase um quarto do hemiciclo.

A estratégia de fazer desaparecer o PCP da cena pública, apagando-o na comunicação social como caminho para o eliminar da política e do Parlamento, está em permanente movimento. Por ironia do destino, se o venerando chefe de Estado não tivesse inventado estas eleições – onde estão as provas das acusações ao primeiro-ministro cessante, António Costa, que espoletaram o processo? – e se não tivesse havido uma campanha eleitoral, o país ainda desconhecia praticamente que o novo secretário-geral do PCP é Paulo Raimundo e não Jerónimo de Sousa.

O apoio dado a correntes artificiais da esquerda fiéis à autocracia do europeísmo, do federalismo e de uma ecologia dolarizada à moda do Fórum Económico Mundial é outra estratégia orientada exclusivamente contra o PCP e aos seus aliados na CDU, de maneira a pulverizar votos e deputados nessa área. A mediatização, quase ao nível dos grupos fascistas, proporcionada a uma organização conduzida por indivíduos fala-baratos e sem ética política, como demonstraram anteriormente dentro de  partidos que os acolheram e promoveram, é outra manifestação da falta de princípios própria da estratégia de vale tudo no anticomunismo. Ao mesmo tempo, a classe média urbana que o poder europeísta despreza sentiu-se contente da vida por poder votar numa «esquerda» fofinha.

Desenganem-se, porém, os sectores para quem o combate do PCP e da CDU depende da dimensão da sua representação parlamentar. A sua luta política e social extravasa em muito as instalações da Assembleia da República. Em mais de metade dos seus 103 anos de existência o PCP não teve lugares no Parlamento; quando citado na propaganda do fascismo foi apenas para ser caluniado; e, contudo, nenhuma organização contribuiu tanto para fazer amadurecer as condições que derrotaram o salazarismo. Não admira, portanto, que seja o alvo a abater pelo fascismo e os seus instrumentos «democráticos». 

O PS, parte essencial do 25 de Novembro e da estratégia para apagar o país do mapa e de manter a maioria do povo em níveis de desenvolvimento muitas vezes indignos, vítima da política insultuosa e totalitária de Bruxelas, está prestes a tomar conhecimento de que a direita em bloco, falando já em revisão constitucional à sua revelia, não tenciona agradecer-lhe os serviços prestados.

Na comunicação social corporativa, entretanto, os socialistas começaram a perceber logo na noite eleitoral que a música vai tocar de maneira diferente daqui em diante. A agressividade de comentadores contra representantes do PS é um sinal que não deve ser negligenciado. E a manobra opaca e conspirativa contra António Costa diz tudo sobre a maneira como chegámos a esta situação que até um destacado membro do PSD, o presidente da Câmara Municipal de Cascais, qualifica como «um imbróglio».

Ao longo de décadas, o PS foi anulado pela NATO, tornou-se um pião do fundamentalismo federalista da União Europeia e tombou, como a maioria dos seus congéneres, para o lado do neoliberalismo e da ditadura de mercado, deixando entre parênteses ou espezinhando as referências sociais. O quadro, porém, não é irreversível desde que haja noção da envergadura da ameaça fascista e admita que os seus inimigos principais não são os comunistas e aliados. Há um tempo para governar e um tempo não apenas para a oposição, como enfatizou o secretário-geral socialista, mas para a resistência. O quadro político e a alteração de forças foi um tsunami e não uma picuinhice de mais ou menos um deputado, mais ou menos meia dúzia de votos. O cenário mudou completamente no domingo e o fascismo não é representado apenas pelos chegas e il’s; no interior do PSD, sem falar no CDS agora por ele engolido, acoitam-se um sem número de salazaristas que não hesitarão em dar a cara se o momento se proporcionar.

É preferível prevenir que remediar. O golpe foi dado, porém está longe de consolidado. Abril está aí e não é apenas uma efeméride, uma memória: é um instrumento. Nunca é cedo demais para resistir e para demonstrar ao fascismo, insuflado por ventos que sopram de feição, que a democracia, para o ser verdadeiramente, terá de ser antifascista.

É para restaurar essa realidade que os antifascistas devem estar disponíveis e prontos. Ainda vamos a tempo. Tornemos o próximo 25 de Abril inesquecível.

Imagem: Le Monde Diplomatique

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