quarta-feira, 22 de outubro de 2014

… ALGUMAS IDEIAS SOBRE A MESTIÇAGEM




Em artigo publicado na Afropress, Inocência Mata, professora da Universidade de Lisboa, uma das maiores especialistas lusófonas em Literatura Africana Contemporânea e em Estudos Pós-coloniais, responde ao sociólogo angolano Paulo de Carvalho: ''o elogio da mestiçagem é uma das mais perversas formas de luta contra a discriminação racial.''

Note-se que em recente entrevista ao diário angolano O País sobre o racismo em Angola, ecoada na Afropress, Carvalho apontou a cor de pele como passaporte para o sucesso no Brasil, condenou o lusotropicalismo ao mesmo tempo que defendeu a mestiçagem como futuro da humanidade.

Alberto Castro

… Algumas ideias sobre a mestiçagem

Inocência Mata* - Afropress

A propósito do artigo “No Brasil, ter pele mais clara é passaporte para o sucesso”, de Alberto Castro…

Não somos multirracialistas, somos não racialistas.

Nelson Mandela (Conversas que Tive Comigo).

Talvez não dissesse nada sobre a entrevista do sociólogo angolano Paulo de Carvalho (que teve a gentileza de ma enviar logo no dia seguinte), publicada no semanário angolano O País (Luanda, 16 de Outubro de 2014), se o meu amigo Alberto Castro não a tivesse transformado em ponto de partida para um um artigo sobre a questão racial, em Angola e no Brasil, “No Brasil, ter pele mais clara é passaporte para o sucesso, diz sociólogo angolano” (AfroPress, 18 de Outubro de 2014).

E, ao fazê-lo, sublinhou um dos pontos para mim mais polémicos da entrevista do Paulo (houve alguns outros relacionados com a “avaliação” do racismo em Angola): a ideia de um futuro mestiço da humanidade! Já ouvi esta ideia muitas vezes, expressa por pessoas que genuinamente acreditam estarem assim a lutar contra o racismo – tal como as pessoas que genuinamente acreditam lutar contra a discriminação assumindo-se como colour blind, advogando uma colour blindness ao dizerem que não reconhecem cores ou que não há raças! Pois não há em termos genéticos (e isso já nem se discute), mas “raça” não é uma categoria biológica, mas sim dicursiva, isto é, uma categoria social organizadora de sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que, recorrendo à definição de Stuart Hall[i], utilizam um conjunto frequentemente pouco específico, de diferenças em termos de características – cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. - como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro e com repercussões ideológicas no edifício sociocultural. Mas não é por não ser uma “categoria científica”, como tantas vezes oiço (querendo-se “científica” referir-se às ciências naturais), que ela é menos eficaz nos efeitos que causa nas relações humanas!

Voltemos à entrevista comentada no artigo e à ideia da "mestiçagem como futuro da humanidade". Devo dizer que me incomoda IMENSO esta  ideia pois ela levanta dois grandes problemas:

1. parece que a mestiçagem é algo "novo', que apareceu com o colonialismo - e que mestiço é apenas é apenas filho  de pessoas de "raças" diferentes (sendo que o paradigma, neste cntexto, do mestiço é o mulato). O HOMEM É UM ANIMAL MESTIÇO, portanto dizer que a mestiçagem é o futuro da humanidade é outra forma racialismo, no caso de luso-tropicalismo, como se a mestiçagem fosse um upgrade da "raça" - e muitos de nós, africanos e não apenas, conhecemos a afirmação "adiantar a raça", decorrente da mais sórdida ideologia colonial ;

2. por outro lado, isto parece-me um programa de eugenia: quem não for mestiço daqui a x tempo é estigmatizado. Afinal, o que é a MESTIÇAGEM?! Por isso é oportuna a consideração de Nelson Mandela sobre a África do Sul como uma nação arco-íris (na verdade, expressão  da autoria do arcebispo Desmond Tutu):

Não somos multirracialistas, somos não racialistas. Estamos lutando por uma sociedade em que as pessoas parem de pensar em termos de cor... Não é uma questão de raça, é uma questão de idéias[ii].

Com efeito, que mal há em haver negros, brancos, amarelos; escuros, menos escuros, chocolate, menos café, brancos, arosados, avermelhados, verde ou azul à pintinhas?! Por que todos têm de ter uma cor para deixar de haver discriminação?! A discriminação não decorre da diferença, mas da hierarquização dessas diferenças. A defesa da mestiçagem é uma forma de racialismo! Acho que o meu amigo Paulo caiu naquilo que quis criticar, ainda imbuído de um racialismo (que vem da ideologia colonial) e não é por ser "ao contrário", portanto imaginando-se um “racialismo bom”,  que é mesmo perigoso. Este é quanto a mim um mito tão perigoso quanto o da “raça pura”!

Com efeito, o elogio da mestiçagem é uma das mais perversas formas de luta contra a discriminação racial. Lembra-me aquele indivíduo que, acusado de preconceito ou de racismo, afirma: "Eu até tenho um amigo negro!" E não pensem que isso é passado: aconteceu comigo há dias alguém "efocar" a bisavó negra para me dizer que não era racista! Ou a sua origem africana para afirmar a sua postura não racista (como se o boer "profundo" não fosse africano!). A mestiçagem é, na verdade, um tropo muito menos inocente do que o seu equivalente "cruzamento de raças" na medida em que é apresentado como uma mais-valia dos encontros coloniais (vale, à propósito ler mais, como por exemplo o livro de Robert J.C. Young, Desejo Colonial: Hibridismo em Teoria Cultura e Raça, 2005, para se ver a outra face da tão celebrada mestiçagem de componente europeia).

Como já referi, tinha recebido o artigo por próprio Paulo, mas não fiz qualquer comentário porque não concordo com muitas afirmações (e gostaria de ter tido tempo para enviar essas discordâncias ao Paulo). Porém, para mim, esta questão é a mais perigosa, porque sedutora e de uma “correcção política” pastoral – e por isso mesmo mais perigosa. Tão perigosa quanto o mito da raça pura...

*Inocência Mata (na foto) - Professora do Departº de Língua e Cultura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

[i] Stuart Hall. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP & Editora, 6ª edição, 2001 (p. 63).
[ii] Nelson Mandela. Conversas que Tive Comigo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2010 (p. 125).

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