Em
artigo publicado na Afropress, Inocência Mata, professora da Universidade
de Lisboa, uma das maiores especialistas lusófonas em Literatura
Africana Contemporânea e em Estudos Pós-coloniais, responde
ao sociólogo angolano Paulo de Carvalho: ''o elogio da mestiçagem é uma
das mais perversas formas de luta contra a discriminação racial.''
Note-se
que em recente entrevista ao diário angolano O País sobre o racismo
em Angola, ecoada na Afropress, Carvalho apontou a cor de pele como passaporte
para o sucesso no Brasil, condenou o lusotropicalismo ao mesmo tempo que
defendeu a mestiçagem como futuro da humanidade.
Alberto Castro
…
Algumas ideias sobre a mestiçagem
Inocência
Mata* - Afropress
A
propósito do artigo “No Brasil, ter pele mais clara é passaporte para o
sucesso”, de Alberto Castro…
Não
somos multirracialistas, somos não racialistas.
Nelson
Mandela (Conversas que Tive Comigo).
Talvez
não dissesse nada sobre a entrevista do sociólogo angolano Paulo de Carvalho
(que teve a gentileza de ma enviar logo no dia seguinte), publicada no
semanário angolano O País (Luanda, 16 de Outubro de 2014), se o meu
amigo Alberto Castro não a tivesse transformado em ponto de partida para um um
artigo sobre a questão racial, em Angola e no Brasil, “No Brasil, ter pele mais
clara é passaporte para o sucesso, diz sociólogo angolano” (AfroPress, 18 de
Outubro de 2014).
E,
ao fazê-lo, sublinhou um dos pontos para mim mais polémicos da entrevista do
Paulo (houve alguns outros relacionados com a “avaliação” do racismo em
Angola): a ideia de um futuro mestiço da humanidade! Já ouvi esta ideia muitas
vezes, expressa por pessoas que genuinamente acreditam estarem assim a lutar
contra o racismo – tal como as pessoas que genuinamente acreditam lutar contra
a discriminação assumindo-se como colour blind, advogando uma colour
blindness ao dizerem que não reconhecem cores ou que não há raças! Pois
não há em termos genéticos (e isso já nem se discute), mas “raça” não é uma
categoria biológica, mas sim dicursiva, isto é, uma categoria social
organizadora de sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que,
recorrendo à definição de Stuart Hall[i], utilizam um conjunto frequentemente
pouco específico, de diferenças em termos de características – cor da pele,
textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. - como marcas
simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro e com
repercussões ideológicas no edifício sociocultural. Mas não é por não ser uma
“categoria científica”, como tantas vezes oiço (querendo-se “científica”
referir-se às ciências naturais), que ela é menos eficaz nos efeitos que causa
nas relações humanas!
Voltemos
à entrevista comentada no artigo e à ideia da "mestiçagem como futuro da
humanidade". Devo dizer que me incomoda IMENSO esta ideia pois ela
levanta dois grandes problemas:
1.
parece que a mestiçagem é algo "novo', que apareceu com o colonialismo - e
que mestiço é apenas é apenas filho de pessoas de "raças"
diferentes (sendo que o paradigma, neste cntexto, do mestiço é o mulato). O
HOMEM É UM ANIMAL MESTIÇO, portanto dizer que a mestiçagem é o futuro da
humanidade é outra forma racialismo, no caso de luso-tropicalismo, como se a
mestiçagem fosse um upgrade da "raça" - e muitos de nós,
africanos e não apenas, conhecemos a afirmação "adiantar a raça",
decorrente da mais sórdida ideologia colonial ;
2.
por outro lado, isto parece-me um programa de eugenia: quem não for mestiço
daqui a x tempo é estigmatizado. Afinal, o que é a MESTIÇAGEM?! Por isso é
oportuna a consideração de Nelson Mandela sobre a África do Sul como uma nação
arco-íris (na verdade, expressão da autoria do arcebispo Desmond Tutu):
Não
somos multirracialistas, somos não racialistas. Estamos lutando por uma
sociedade em que as pessoas parem de pensar em termos de cor... Não é uma
questão de raça, é uma questão de idéias[ii].
Com
efeito, que mal há em haver negros, brancos, amarelos; escuros, menos escuros,
chocolate, menos café, brancos, arosados, avermelhados, verde ou azul à
pintinhas?! Por que todos têm de ter uma cor para deixar de haver
discriminação?! A discriminação não decorre da diferença, mas da hierarquização
dessas diferenças. A defesa da mestiçagem é uma forma de racialismo! Acho que o
meu amigo Paulo caiu naquilo que quis criticar, ainda imbuído de um racialismo
(que vem da ideologia colonial) e não é por ser "ao contrário",
portanto imaginando-se um “racialismo bom”, que é mesmo perigoso. Este é
quanto a mim um mito tão perigoso quanto o da “raça pura”!
Com
efeito, o elogio da mestiçagem é uma das mais perversas formas de luta contra a
discriminação racial. Lembra-me aquele indivíduo que, acusado de preconceito ou
de racismo, afirma: "Eu até tenho um amigo negro!" E não pensem que
isso é passado: aconteceu comigo há dias alguém "efocar" a bisavó
negra para me dizer que não era racista! Ou a sua origem africana para afirmar
a sua postura não racista (como se o boer "profundo" não fosse
africano!). A mestiçagem é, na verdade, um tropo muito menos inocente do que o
seu equivalente "cruzamento de raças" na medida em que é apresentado
como uma mais-valia dos encontros coloniais (vale, à propósito ler mais, como
por exemplo o livro de Robert J.C. Young, Desejo Colonial: Hibridismo em Teoria Cultura e
Raça, 2005, para se ver a outra face da tão celebrada mestiçagem de
componente europeia).
Como
já referi, tinha recebido o artigo por próprio Paulo, mas não fiz qualquer
comentário porque não concordo com muitas afirmações (e gostaria de ter tido
tempo para enviar essas discordâncias ao Paulo). Porém, para mim, esta questão
é a mais perigosa, porque sedutora e de uma “correcção política” pastoral – e
por isso mesmo mais perigosa. Tão perigosa quanto o mito da raça pura...
*Inocência Mata (na foto) - Professora
do Departº de Língua e Cultura Portuguesa da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa
[i] Stuart Hall. A Identidade
Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP & Editora, 6ª edição, 2001
(p. 63).
[ii] Nelson Mandela. Conversas que
Tive Comigo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2010 (p. 125).
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